Sempre que escrevemos um texto com críticas à utilização de alguma prática sem lastro na ciência, surgem inúmeros comentários furiosos, como se estivéssemos interessados em interferir na liberdade individual dos cidadãos. Não é isso. Caso alguém tenha uma epifania e decida lamber as solas dos sapatos para se proteger da COVID-19, apesar de ser uma ideia totalmente descabida, o direito de agir de modo irracional segue resguardado, salvo em caso de danos a terceiros. Não é aceitável, porém, que alguma organização pública, mantida com recursos da sociedade, apoie bobagens de maneira institucional.
O mesmo comentário feito acima para práticas danosas também vale para as inócuas, mas que poderiam dar alguma satisfação. Sob o pretexto de não fazer mal e ser barato, poderíamos defender a distribuição de pirulitos no SUS para confortar os brasileiros durante a pandemia. Ora, qual o problema de gastarmos uma mísera fração do PIB para distribuir pirulitos?
Existem pelo menos dois problemas atrelados à "pirulitopatia": o endosso governamental a uma prática inócua, e a análise de que se trata de um gasto desprezível para o Erário. Em um sistema onde faltam equipamentos básicos, a avaliação de pouco ou muito caro deve ser feita com base na razão custo/eficiência: se a eficiência é zero, então a razão é infinita - não importa que o custo seja pequeno, comparado ao PIB – e, neste caso, o pirulito, apesar de agradável, é caríssimo para o Estado, porque sua eficácia é nula.
O primeiro exemplo da sola de sapato é obviamente exagerado, mas o segundo não é. Não existe muita diferença entre um pirulito feito basicamente de açúcar e as bolinhas de açúcar homeopáticas (o pirulito tem a vantagem de ter um sabor agradável). Homeopatia é um exemplo bem conveniente para ilustrar as incongruências lógicas de algumas instituições que dizem defender a ciência. As parvoíces da homeopatia já foram abordadas exaustivamente nesta revista, e a dissonância cognitiva institucional foi recentemente abordada em um texto da Revista Questão de Ciência e do jornal Folha de São Paulo.
A falsa polêmica sobre a utilização da cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ), fomentada principalmente por cientistas que preferiram pular etapas de avaliação dos seus trabalhos pelos pares e se dirigiram diretamente à população e a jornalistas, criou uma situação no mínimo exótica. Ao mesmo tempo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta para o perigo da utilização de tratamentos para a COVID-19 que não tenham sido investigados de modo robusto, a mesma OMS reconhece que "a medicina tradicional, complementar e alternativa" tem muitos benefícios. Situação semelhante acontece com o Conselho Nacional de Saúde (CNS), Conselho Federal de Medicina (CFM) e universidades.
A medicina tradicional, complementar e alternativa é composta, por exemplo, por práticas como homeopatia, acupuntura, reiki e florais. Apesar das inúmeras pessoas que conhecem a avó de uma amiga da vizinha que tenha se curado de alguma alergia com alguma dessas práticas, o fato é que não existe nenhum estudo científico, em alguma revista séria, endossando a utilização dessas práticas para qualquer coisa.
É claro que existem diversos artigos que normalmente são invocados pelos simpatizantes dessas práticas como provas irrefutáveis de seus poderes milagrosos ou, no mínimo, como indícios de que “alguma coisa tem aí”. A mesma tática de debate, chamada de Gish Gallop, também está presente em defensores da HCQ: de uma única vez são apresentadas centenas de artigos, na sua esmagadora maioria ruins ou irrelevantes, na tentativa de evitar uma refutação imediata. Quando proveniente de um cientista, assumindo que ele conheça o que é método científico, a prática provavelmente está associada à má-fé. Na população em geral, e nas caixas de comentários de redes sociais repletas de Gish Gallop, a prática costuma vir associada, infelizmente, à ausência de letramento científico.
Voltando à questão esquizofrênica, onde se preconiza o respeito à ciência e, ao mesmo tempo, reconhecem-se práticas que deixariam Mandrake com inveja, o CNS se baseou em um "Mapa de Evidências" para recomendar que gestores públicos usem e divulguem práticas integrativas e complementares. Esse tem um site com um banco de referências selecionadas por um robô que agrega estudos científicos com base em palavras-chave. No site é possível fazer buscas por artigos de urinoterapia, reiki, cristaloterapia, risoterapia, entre outras terapias.
O curioso é que o sistema dá a impressão (que pode até ser falsa) de atuar de forma indiscriminada, pegando tudo que aparece pela frente. Olhando apenas para as listagens de literatura científica produzidas, temos a impressão de ver não uma seleção criteriosa – minimamente que seja –, mas o conteúdo de uma rede de arrasto que varreu o leito oceânico da literatura.
No site estão agregados desde trabalhos bons a outros com problema de espaço amostral, com desenho experimental deficiente e com análise estatística ruim. Tem de tudo. A seleção do que deve ser considerado ou descartado fica a cargo do leitor. Trata-se, portanto, de uma etapa anterior de uma metanálise. Em uma metanálise, são reunidos os artigos que não têm falhas graves, são comensuráveis em termos metodológicos e, a partir deles, é apresentada uma conclusão.
É difícil inferir as reais intenções de um trabalho que, em essência, replica o que algoritmos de busca bem pouco sofisticados fazem. Com base, porém, na existência de dossiês de homeopatia que se tentam vender como documentos definitivos de evidência da eficiência da prática, é possível arriscar que o site, ao despejar centenas de trabalhos como "evidências" (o nome do site é Mapa de Evidências), é uma versão institucionalizada de Gish Gallop.
Evidências dessas práticas? Para ficar em apenas dois exemplos, aqui podem ser encontradas metanálises de acupuntura separadas por enfermidades e aqui uma declaração do EASAC - European Academies' Science Advisory Council sobre a homeopatia. Se lido com denodo e paciência, o “Mapa das Evidências” mostra o que todos os estudiosos sérios dessas práticas já sabem – que quanto melhor a qualidade do estudo, quanto mais criteriosa a seleção do que deve ou não ser considerado, menor o suposto benefício oferecido pela prática (para citar um caso exemplar, veja-se esta metanálise de quiropraxia). Numa espécie de reiteração da fábula de Frankenstein, a criatura destrói o mundo de seus criadores.
Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)