O Conselho Federal de Medicina (CFM) informou ao presidente Jair Bolsonaro que “não recomenda, mas autoriza” que médicos receitem hidroxicloroquina (HCQ) a pacientes diagnosticados com COVID-19, ou mesmo aqueles com sintomas da doença mas ainda sem diagnóstico – desde que esteja claro que o paciente não tem gripe comum, dengue e nem contraiu o vírus H1N1.
Do ponto de vista semântico, a frase – nas palavras do presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro: “Uma autorização. Não é recomendação” – soa, para dizer o mínimo, intrigante. Ainda mais no contexto da prática médica. O que, exatamente, quer dizer uma “autorização” sem “recomendação”? Que o CFM sabe que oferecer hidroxicloroquina contra COVID-19 é um erro (e por isso “não recomenda”), mas por algum motivo acha que está tudo bem – “autoriza”? Coisas que já ouvi meu médico “autorizar sem recomendar”: bebidas alcoólicas, carnes gordurosas e refrigerantes. Mas isso geralmente não vem na receita médica, no estilo “tome dois dedos de uísque três vezes ao dia”.
Pode-se imaginar, talvez, que a “autorização sem recomendação” tenha sido a saída encontrada pelo CFM para aliviar a pressão sobre os médicos que vêm sendo assediados por pacientes e familiares para receitar hidroxicloroquina. Agora, eles têm respaldo oficial caso decidam ceder. Infelizmente, isso significa que os médicos que insistem em fazer a coisa certa, agora, estão mais desprotegidos ainda: foram desertados pelo próprio Conselho.
A coisa certa
E o que seria a coisa certa? As melhores mentes da Medicina mundial parecem unânimes em afirmar que a hidroxicloroquina, usada no contexto da atual pandemia, é provavelmente inútil e quase certamente perigosa.
Exemplos: a Associação Americana de Cardiologia publicou um guia alertando para os riscos cardíacos do uso combinado da hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina (HCQ + AZ). (Considerations for Drug Interactions on QTc in Exploratory COVID-19 (Coronavirus Disease 19) Treatment). O periódico científico British Medical Journal (BMJ) publicou artigo constatando o perigo do uso desta combinação, e criticando a decisão precoce do governo americano de liberar estes medicamentos, antes de testes clínicos que comprovem sua eficácia e segurança.
Diversos preprints publicados recentemente trazem resultados preocupantes acerca da observação de arritmias cardíacas e aumento da taxa de mortalidade de pacientes tratados com HCQ + AZ. Trabalho publicado pelo grupo da Fiocruz e Instituto de Medicina Tropical de Manaus sinalizou aumento da taxa de mortalidade no grupo tratado com dose de 600mg de cloroquina duas vezes ao dia com azitromicina, e não encontrou benefícios para o grupo dosado com 450 mg diários de cloroquina.
Estudo francês com 181 pacientes com necessidade de ventilação mecânica não observou diferença na progressão da doença em pacientes tratados com HCQ, mas oito pacientes no grupo tratamento apresentaram alterações em eletrocardiograma e tiveram que ser removidos da pesquisa. Recentemente, estudo retrospectivo realizado pela “US Veteran Health Association” não encontrou benefícios do uso da HCQ + AZ para progressão da COVID-19 e necessidade de ventilação e UTI, mas notou substancial aumento da taxa de mortalidade em relação ao grupo controle.
Os estudos anteriores, que descreviam supostos benefícios, e que serviram para embasar o desenho de testes clínicos e a decisão recente do Ministério da Saúde de liberar a HCQ para pacientes em condição grave no SUS, foram alvo de duras críticas da comunidade científica, que apontou falhas metodológicas graves que invalidam seus resultados, como já comentamos aqui, aqui e aqui.
O primeiro trabalho publicado sobre o tema foi criticado até mesmo pelo próprio jornal e editora responsáveis pela publicação, e está sob investigação. E finalmente, acaba de ser publicada uma rápida revisão sistemática, que analisou a literatura vigente sobre o uso de HCQ + AZ. Embora o volume de artigos incluídos seja pequeno, a revisão aponta claramente para a ausência de benefícios.
A interpretação mais gentil é de que a HCQ, associada ou não à azitromicina, não traz benefícios notáveis para o tratamento de COVID-19. São necessários estudos controlados para dar uma resposta definitiva. Até o momento, a evidência indica riscos cardíacos, principalmente em pacientes graves, que muitas vezes já trazem comprometimento cardíaco prévio, e estão em fase avançada de uma virose que também ataca o coração.
Por conta destes resultados, hospitais em Michigan (EUA), Suécia e Nice (França) cancelaram o uso destas medicações, e o NIH (National Institute for Health), nos EUA, publicou diretrizes recomendando não utilizar estas substâncias para tratamento de COVID-19, justificando sua decisão pela falta de evidência que demonstre eficácia, e a constatação de risco cardíaco.
Política
Não deve ser novidade para os leitores mais antigos desta Revista Questão de Ciência que o Conselho Federal de Medicina, historicamente, tem como prioridades máximas a geração de renda dos membros da classe que representa, em primeiro lugar, e a conveniência política de sua cúpula, em segundo. O paciente? O paciente é um detalhe.
A bizarra elevação da homeopatia a especialidade médica, na década de 1980, ainda durante a ditadura, é um caso exemplar: abriu novos mercados para a categoria e agradou aos generais homeopatas (a aliança entre a homeopatia e o positivismo nas Forças Armadas é um capítulo curioso da história intelectual do Brasil).
No caso atual, o CFM parece inovar, pondo interesses políticos particulares acima, até, dos interesses da categoria: o médico que decide se guiar pela melhor evidência científica está, a partir de hoje, abandonado por seu Conselho, assim como os brasileiros foram abandonados pelo Governo Federal.
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência e e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)