Tenho calafrios cada vez que o presidente faz um pronunciamento em rede nacional ou resolve passear por Brasília, indo a farmácias, visitar o filho "04" e entrar em padarias para tomar lanche, como se a despensa da cozinha do Palácio do Planalto estivesse completamente desabastecida. No passeio mais recente, foi ainda pior, dada a cena da limpada de nariz no braço, seguida de cumprimento a uma senhora idosa. Pensei em outra senhora idosa, Dona Olinda, 93 anos, mãe da criatura, que deve ter ficado envergonhada, como todas as mães, diante de exibição pública de porquice do filho.
Felizmente, meus calafrios não são calafrios febris, mas vêm da certeza de que no dia seguinte um bando de brasileiros vai seguir o péssimo exemplo presidencial, sair de carro, ir à praia e lotar supermercados para comprar ovos de Páscoa como se não houvesse SARS-CoV2, como se 4 bilhões de Homo sapiens não estivessem em isolamento em todo o mundo e como se o presidente não negasse a gravidade da situação, ao lado de outros grandes estadistas como os tiranos da Nicarágua, Belarus e do Turcomenistão. Nem mesmo a mudança de atitude de seu ídolo Donald “I love you” Trump em relação à pandemia faz o já apelidado BolsoNero (The Economist), Capitão Cloroquina (Ricardo Kotscho) e Bolsovírus arredar pé de seu negacionismo infectocontagiosos.
Seguidores presidenciais, mais irrealistas do que o rei, juram de pés juntos que o vírus não existe e tudo não passa de invenção da Rede Globo para derrubar o eleito. O poder da Globo é globalmente impressionante. A emissora do Jardim Botânico consegue obrigar a CNN, NBC, BBC, o Le Monde, o New York Times, a Forbes, The Ecoomist, o Wall Street Journal, as revistas científicas Nature, Science, New England Journal of Medicine, The Lancet, entre outras, a mostrar imagens e publicar reportagens e estudos sobre um SARS-CoV2 que não existe, e encenar situações como as de valas comuns para sepultamento de cadáveres imaginários, e fazer Hollywood filmar salas de emergência abarrotadas de doentes mundo afora. Mais ainda, convence Sua Majestade Elizabeth II a fazer um pronunciamento sobre a fantasiosa pandemia e força o primeiro-ministro Boris Johnson a se internar com a imaginária COVID-19! Gente, é muito poder!
Jair Messias Bolsonaro é, antes de mais nada, um negacionista da ciência, quando isso lhe convém. À época das eleições, após o atentado, seguiu o conselho dos médicos que recomendaram que não participasse de debates. Agora, ignora toda comunidade científica para dar ouvidos a Osmar Terra “Plana”, ex-ministro e médico que defende, como ele, o tal isolamento vertical – só idosos e grupos de risco em casa, enquanto o vírus se espalha e imuniza o resto da população. Cientificamente, isolamento vertical não existe e, países que tentaram essa estratégia, como Grã-Bretanha e Holanda, estão às voltas com a explosão de casos de COVID-19. Mas tente explicar isso ao eleito que sai dizendo que o brasileiro “é diferente", mergulha em esgoto e não pega nada...
A falta de disposição do presidente em aceitar verdades científicas que ameaçam suas ilusões pessoais é notória. Se os dados do Inpe o contrariam, demita-se o diretor do instituto e descartem-se os números. Se um obscuro químico de São Carlos anuncia, sem prova nenhuma, ter descoberto a cura do câncer, assine-se uma lei que passe por cima da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que a fosfoetanolamina sintética seja distribuída a granel. Agora, resolveu que quer passar para a história como o “pai da cloroquina” que não só acha que vai pôr fim à pandemia de COVID-19, como também vai lhe garantir a conquista do eleitorado do Nordeste. Se – e somente se – for provado que a cloroquina tem um mínimo de efeito contra a COVID-19, nem o Programa do Ratinho vai ter como fazer tanto teste de paternidade nos candidatos a “pai da criança”.
A insistência no fim do isolamento social e retomada da atividade econômica tem, obviamente, um objetivo eleitoral arriscadíssimo. Aparentemente, a estratégia é se eximir de responsabilidade pela recessão que virá – e será mundial. Se a atitude dos governadores, de insistir no isolamento, for bem-sucedida e houver um número “aceitável” de vítimas, o candidato à reeleição poderá dizer que sempre soube que a COVID-19 não passava de uma “gripezinha” e que as medidas exageradas dos Estados lançaram o país na crise.
Se o número for estratosférico, ele poderá dizer que nada que os governadores fizeram teve efeito, e que teria sido melhor que todos tivessem trabalhado e tomado a "clorocoisa". Falta o genial estrategista elaborar um discurso que afaste de si o fantasma dos milhares, ou dezenas de milhares, de brasileiros mortos pela COVID-19: eles não votam, mas seus parentes, sim. Em seus cinco pronunciamentos em rede nacional, o presidente brasileiro jamais se dirigiu às famílias das vítimas do SARS-CoV2 – até Trump inicia seus pronunciamentos diários cumprindo o ritual de lamentar as mortes em seu país.
Mas nem mesmo Trump, em plena campanha, arrisca-se a sair para ir a um McDonald’s, ou é visto abraçando e cumprimentando apoiadores aglomerados a seu redor. Na última terça-feira, a Folha de S. Paulo publicou matéria explicando que teve negado seu pedido de acesso aos resultados dos exames para COVID-19 feitos pelo presidente em março, quando 23 pessoas que integravam sua comitiva nos EUA contraíram a doença. "As informações individualizadas sobre o assunto dizem respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas", respondeu a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) da Secretaria de Governo da Presidência da República, que qualificou o resultado de “sigiloso”.
Para além do fato de que a "privacidade" de agentes políticos que ocupam cargos eletivos não tem como se sobrepor ao interesse público, a verdade é que só existem dois possíveis resultados para o exame, que o presidente declarou ser negativo. Se isso for verdade, esse cidadão idoso, 65 anos, não apenas se expõe à doença, nas aglomerações que promove em suas andanças, como expõe seus admiradores e a própria Presidência da República. Tudo que um país em crise econômica, política e às voltas com uma pandemia não precisa é de um presidente na UTI.
Na hipótese de o exame ter sido positivo – na já famosa entrevista com todo gabinete usando máscaras, aquela em que o presidente pendurou a sua na orelha, ele estava com rosto inchado e se virou para tossir –, a situação seria ainda pior. O eleito não só teria mentido, como teria, seguindo o roteiro clássico do negacionista da ciência, concluindo, a partir da experiência pessoal, que a COVID-19, que na terça já havia causado 125 mil mortes no planeta, não passa de “resfriadinho” ou “gripezinha”.
Assim, estaria imune ao vírus enquanto passeia alegremente por Brasília e estimula os trabalhadores do Brasil a jogar roleta russa com as próprias vidas.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros