Dia 06/04/2020: 1.244.421 casos diagnosticados e 68.976 mortes. Essas são as estimativas do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC) sobre o status da pandemia de Covid-19 no mundo. No Brasil, a mesma fonte apontava 11.130 doentes e 486 óbitos. De acordo com o Ministério da Saúde, que atualizou os dados às 17h00, temos 12.056 pessoas infectadas e 553 velórios, o que representa uma letalidade de 4,6%. O Gráfico 1 ilustra a variação da quantidade de casos positivos e ocorrências fatais no Brasil desde 26/02/2020 (data do registro oficial do primeiro caso).
Como pode ser observado, a curva de casos diagnosticados começa a subir a partir da segunda quinzena de março. O movimento é brusco e rápido, exponencial para usar corretamente o termo matemático. Já a variação da quantidade de mortes parece praticamente inalterada, como se estivesse constante ao longo do tempo. No entanto, dada a diferença entre as magnitudes das variáveis (casos e mortes), essa interpretação induz o analista ao erro. Para ter uma melhor ideia da variabilidade em perspectiva comparada, é mais prudente analisar a evolução do número de casos e mortes em escala logarítmica. O Gráfico 2 ilustra essas informações.
Não, não estamos torturando os dados até que eles confessem, com bem ensinou Darrell Huff no seu best-seller sobre Como Mentir com Estatística. A transformação logarítmica, ao desacelerar a distribuição, permite visualizar mais claramente eventuais relações que poderiam passar despercebidas a olho nu. Por exemplo, fica evidente que ambas as séries exibem tendência positiva. Ou seja, devemos observar um incremento sistemático tanto no número de doentes quanto na quantidade de óbitos nas próximas semanas. Até porque existe uma correlação positiva entre número de infectados e o montante de ocorrências fatais, tanto no nível internacional (considerando a comparação entre países), quanto no nível subnacional (considerando o contraste entre unidades federativas). O Gráfico 3 ilustra esse padrão.
No mundo, o incremento de 1% na quantidade de casos está associado a um aumento de médio 0,87% no número de óbitos (figura da esquerda). Nacionalmente, essa relação se mantém e o aumento de 1% no total de casos está associado a um incremento médio de 0,80% na quantidade de mortes (figura da direita).
E como anda o nível de contágio da Covid-19 no Brasil? Wanderson Oliveira, Secretário ministerial de Vigilância em Saúde, apresentou o coeficiente de incidência da Covid-19 no país, com o objetivo de melhor compreender a dinâmica espacial da doença. Tecnicamente, o coeficiente de incidência é calculado a partir do número de casos normalizado pelo tamanho da população, tal qual a taxa de mortalidade infantil ou a taxa de homicídios. O principal objetivo da padronização é garantir a comparabilidade entre unidades amostrais (no caso, os estados brasileiros) que exibem populações muito distintas. Assim, temos mais segurança ao avaliar a incidência do problema no Acre vis-à-vis a situação de São Paulo, por exemplo. O Gráfico 4 ilustra a variação dessa estimativa por unidade da federação.
A linha vermelha representa a marca de 5,7 casos por 100 mil habitantes, que é o coeficiente nacional[i]. Quanto maior a altura da barra, maior a incidência da Covid-19 (removidos os efeitos do contingente populacional). Distrito Federal (15,69), Amazonas (12,84), Ceará (11,09), São Paulo (10,60) e Rio de Janeiro (8,46) lideram o ranking. No outro extremo, temos Paraíba (0,87), Rondônia (0,79) e Piauí (0,70). De acordo com o Ministério da Saúde, quando a taxa de uma determinada localidade supera em 50% a média nacional, é motivo para preocupação. Valores entre 50% e a taxa nacional requerem atenção (ver aqui). Para além da quantidade de infectados, importa também mensurar a letalidade da doença. Os dados preliminares da Organização Mundial de Saúde sugerem algo entre 3% e 4%. O Gráfico 5 ilustra a variação do grau de letalidade da Covid-19 por unidade da federação.
A linha vermelha representa a letalidade da Covid-19 no Brasil (4,6%). Comparativamente, Piauí (17,4%), Pernambuco (13,5%), Sergipe (12,5%) e Paraíba (11,4%) lideram o ranking. Na ausência de erros de mensuração (cenário impossível), esses valores são assustadores. Na Itália, por exemplo, a taxa de letalidade atualmente é de 12,47%, já nos Estados Unidos a Covid-19 matou 10.989 pessoas dos 358.196 infectados, o que significa quase 3%. Por sua vez, Japão (2,1%) e Coreia do Sul (1,86%) exibem níveis mais reduzidos de mortalidade (RITCHIE e ROSER, 2020).
Todavia, como bem apontou o professor JOHN P.A. IOANNIDIS, os dados disponíveis sobre a quantidade de pessoas infectadas e sobre evolução da epidemia são fundamentalmente inconsistentes (ele utilizou a expressão unreliable, ou seja, não confiáveis). Para o epidemiologista de Stanford, precisamos de informação de qualidade para guiar o processo de tomada de decisão e planejamento de políticas públicas. Impossível não concordar. E que dizer sobre a associação entre coeficiente de incidência e taxa de letalidade? O Gráfico 6 ilustra a correlação entre essas variáveis por unidade da federação.
As linhas vermelhas representam as taxas nacionais (incidência e letalidade). O quadrante superior-esquerdo agrupa os estados com poucos casos e alta mortalidade. Note que todas as observações pertencem ao eixo Norte-Nordeste, sendo Piauí e Pernambuco os exemplos mais extremos da combinação entre poucos diagnósticos e muitos óbitos. Por sua vez, o quadrante superior-direito ilustra a situação de muitos casos e muitas mortes: São Paulo e Rio de Janeiro. O quadrante inferior-direito mostra os estados com muitos casos e baixa letalidade. Destacam-se aqui Distrito Federal, Amazonas e Ceará.
Por fim, o quadrante inferior-esquerdo conglomera unidades federativas que exibem níveis comparativamente mais reduzidos em ambos indicadores (menor quantidade de diagnósticos e menor número de mortes). Segundo informações divulgadas em 07/04/2020, o pico dos casos de Covid-19 deve ocorrer entre abril e maio[ii]. Operacionalmente, as ações de testagem em massa e isolamento social serão essenciais para explicar a mobilidade futura dos estados brasileiros no gráfico de incidência e letalidade.
No Brasil, a desigualdade institucional entre as unidades federativas vai influenciar a capacidade de testagem e, consequentemente, de diagnóstico de casos positivos. Verdade seja dita, o problema de subnotificação não ocorre apenas em terras tupiniquins e não é específico da COVID-19. Por exemplo, há evidências confiáveis de que o número de homicídios no País é subestimado. Veja, por exemplo, o relatório “Mapa de Homicídios Ocultos no Brasil”. Similarmente, até hoje o sistema de informações sobre mortalidade do DataSUS indica que a taxa de mortalidade infantil “pode exigir correções da subenumeração de óbitos neonatais precoces e de nascidos vivos, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.
Ou seja, temos dificuldade em mensurar mortes, sejam elas violentas e intencionais, sejam decorrentes de um novo vírus. Tecnicamente, um primeiro problema de medir errado a quantidade de casos é sobrestimar a letalidade (o valor vai parecer muito mais alto do que realmente é). Isso porque a taxa de mortalidade é calculada a partir da divisão entre o número de óbitos e a quantidade de casos confirmados da doença. Por exemplo, se 20 pessoas morreram e 100 foram diagnosticadas, a letalidade é de 20%. A subnotificação altera o denominador da taxa, o que por sua vez muda radicalmente a magnitude da mortalidade da COVID-19.
Outro problema da subnotificação diz respeito ao processo de tomada de decisão. Se, por exemplo, o governo decide transferir mais recursos para estados com maior letalidade, o erro de mensuração (subnotificação) vai produzir ineficiência alocativa de recursos públicos. A subnotificação pode ter origem técnica, quando a aferição é deficiente. Por exemplo, quando o sistema de saúde não dispõe de kits em número suficiente para atender à demanda.
No entanto, e aí é mais preocupante, a subnotificação pode ter origem política. Isso ocorre, por exemplo, quando existe uma orientação específica sobre a exclusão de casos e óbitos do sistema. Assim, o erro de medida será sistemático e, para além de problemas nos cálculos das taxas de mortalidade, será mais difícil de encontrar relações entre a quantidade de óbitos e outras variáveis consideradas relevantes como a capacidade do sistema de saúde e indicadores socioeconômicos.
Em síntese, “se você não pode medir, você não pode gerenciar”, é o ensinamento de Peter Drucker, considerado um dos pais da administração moderna. No caso da Covid-19, em que ações efetivas dependem de evidências robustas, a falta de medidas confiáveis será, literalmente, fatal.
Dalson Britto Figueiredo Filho é professor-assistente de Ciência Política na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Lucas Silva é cientista político e estudante de Medicina na Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas
Enivaldo Rocha tem graduação em Estatística (UFPE), mestrado em Estatística (USP) e doutorado em Engenharia de Produção (UFRJ). É professor titular aposentado da Universidade Federal de Pernambuco e membro do Grupo de Métodos em Pesquisa em Ciência Política (MPCP)
NOTAS
[i] Utilizamos estimativas populacionais de 2019, o Ministério empregou a projeção do IBGE para 2020. Ver: <https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/06/2020-04-06---BE7---Boletim-Especial-do-COE---Atualizacao-da-Avaliacao-de-Risco.pdf>.
[ii] A reportagem indica que o relatório técnico com essa estimativa foi publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Todavia, a última atualização do periódico no portal do Scielo é era de 03/04/2020 e, salvo melhor juízo, não contava com a referida publicação.