Artigo recém-publicado na revista Science sugere que sistemas jurídicos poderiam se tornar mais justos e eficientes com a adoção de protocolos experimentais para orientar tomada de decisão, com foco no uso de Randomized Control Trials – Ensaios de Controle Randomizados (ECRs).
Os ECRs são mais comumente conhecidos como Ensaios Clínicos Randomizados, já que seu uso costuma estar associado a protocolos experimentais em áreas biomédicas. O procedimento consiste em desenhar um experimento de modo que haja redução de viés ao se testar um novo tipo de intervenção. Isso é obtido ao se alocar participantes de maneira aleatória a dois tipos de grupo, o experimental (que recebe a intervenção que se deseja avaliar) e o controle (que recebe uma intervenção placebo ou nenhuma intervenção). A diferença significativa entre os grupos, avaliada por indicadores estatísticos, sugere sucesso ou fracasso da intervenção.
Os autores da matéria indicam que a crescente importância de políticas públicas baseadas em evidência, evidenciada recentemente como prêmio Nobel de Economia concedido a pesquisadores do J-PAL, ainda não foi absorvida por operadores do direito. Há avanços em relação a estudos legais empíricos (como tendências de decisão a partir de big data) e pesquisa experimental em políticas sociais (como avaliação post-hoc de decisões vinculantes de tribunais), sem que, contudo, a área jurídica se torne mais permeável a argumentação e, principalmente, metodologia científica. O artigo se concentra no modelo americano, substancialmente diferente do brasileiro, mas o argumento se aplica globalmente.
Apesar da defesa do uso de boas evidências científicas na tomada de decisões jurídicas, a princípio, não ser um ponto controverso, o artigo aponta que juristas costumam ter uma reação pouco receptiva à ideia de submeter suas práticas a estudos empíricos - ou mesmo usar dados empíricos para reorientar seus procedimentos, havendo especial aversão a ECRs. As objeções apontadas são de natureza diversa (como falta de financiamento e de advogados treinados em métodos experimentais), mas há consenso quanto ao principal obstáculo – o ético.
Em tentativas de propor ECRs em âmbito jurídico, o Access to Justice Lab (A2JL) esbarrou nos comitês de ética em pesquisa (Institutional Review Boards) em função desses órgãos (e da classe jurídica em geral) considerarem que esse tipo de protocolo violaria obrigações profissionais e direitos dos indivíduos involuntariamente envolvidos. Em exemplo do próprio texto, seria ético testar se a disponibilidade de um escore de avaliação de risco do indiciado ao juiz de um caso melhora a qualidade de decisões sobre fiança? Em outros termos, seria possível randomizar presos quanto ao tipo de informação encaminhada ao juiz que determina a possibilidade de responder em liberdade mediante fiança? As objeções levantadas indicam que há muito em risco para uma randomização (liberdade x encarceramento com base em um protocolo experimental), a ausência de possibilidade de consentimento voluntário da parte dos presos por crime e o possível impacto em terceiros (bystanders) no caso, por exemplo, de um criminoso solto em razão do protocolo assassinar alguém.
Os autores argumentam, em relação às potenciais questões éticas levantadas, que na área biomédica é consenso que poucas intervenções são tão obviamente efetivas que prescindem de testes científicos para avaliar validade, de modo que sejam minimizados ruídos (confounders) e se promovam conclusões causais. O mesmo se aplicaria à área legal, em especial nos casos em que os riscos são altos, com implicações concernentes à liberdade, segurança e acesso a necessidades humanas básicas. Quanto maior a consequência ao indivíduo, melhor deveria ser avaliado, de maneira científica, baseada em evidências, o mecanismo jurídico envolvido. O direito, sendo uma área do conhecimento deontológica (do dever fazer) necessariamente tem parte de sua fundamentação calcada em alegações filosóficas e normativas sobre direitos e deveres e, sobre esse aspecto, estudos empíricos pouco teriam a acrescentar. Contudo, completam os autores, quando intervenções buscam atingir resultados instrumentais definidos, evidência é de suma importância.
Sob esse ponto de vista, o uso de ECRs pode não apenas ser ético como ser mandatório. Havendo incerteza quanto à segurança ou eficácia de uma medida em relação ao procedimento padrão, a randomização não viola obrigações profissionais em função de não haver exposição voluntária de qualquer pessoa a risco conhecido. Ademais, tanto mais arriscado é aplicar à totalidade da população uma intervenção não testada, sob o risco da emenda ser pior que o soneto. Por fim, havendo a obrigação profissional de oferecer a seus clientes (ou cidadãos) o melhor atendimento possível, seria incoerente recusar o teste de intervenções inovadoras de potencial desconhecido. A possibilidade prática de uso desses mecanismos, inclusive dadas limitações constitucionais em muitos países, é outra história.
A proposta é interessante, mas carece de algum amadurecimento. Embora os argumentos técnicos sejam sólidos e, de fato, a prática jurídica tenha a ganhar com o uso de metodologias que busquem referenciais de causalidade, é necessário se preocupar com o que Justin Parkhurst chama de a Política das Evidências. Segundo Parkhurst, uma Política Pública Baseada em Evidências clássica não atinge seu potencial pleno em função de levantar debates dissonantes quanto ao mau uso e manipulação de evidências científicas por interesses políticos (víes técnico/technical bias) e, por outro lado, preocupações quanto a “políticas públicas baseadas em evidência” despolitizarem o debate público (viés de questão/issue bias).
A solução proposta é usar boa ciência, incluindo ciência política, psicologia e inferência causal, para criar boa governança de evidências – “um conceito que representa o uso de fragmentos de evidência tecnicamente válidos, sistemáticos e rigorosos em processos de tomada de decisão, que sejam representativos e alocáveis à população atingida”. Assim, para diminuir a resistência e promover um direito baseado em evidências, é necessário que a incorporação seja orgânica, especialmente considerando que, ao contrário das ciências da vida que possuem características universais, o mundo jurídico está intimamente ligado à cultura, aos costumes e à política locais.
No Brasil, dada a proliferação de Comissões de Direito Sistêmico (baseado na Constelação Familiar de Bert Hellinger) nas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil afora, da falta de base de metodologia científica dos operadores do direito, das consequentes fundamentações não baseadas em evidência e de demais inconsistências como a adoção de prova psicografada em processos, a inclusão de uma boa base científica no currículo jurídico nacional já teria um grande impacto na qualidade da tomada de decisões do futuro operador do direito. No mínimo vale um ECR.
Paulo Almeida é Psicólogo, Advogado, Doutorando em Administração e Diretor do Instituto Questão de Ciência