Mitos nas campanhas de prevenção de câncer

Artigo
21 nov 2019
Imagem
tubos de ensaio

Os meses de outubro e novembro são conhecidos pelas campanhas de conscientização do câncer de mama e próstata. O público escuta, anualmente, que mesmo aqueles sem sinais da doença devem realizar exames de check-up para a prevenção desses cânceres, como mamografia para o câncer de mama e PSA, para o câncer próstata.  

Isso é chamado de rastreamento: a busca por uma doença através de exames em pessoas sem sintomas da doença que está sendo rastreada. O problema é que as campanhas, na realidade, desinformam o público sobre o real efeito do rastreamento. Como veremos, não apenas faltam informações sobre possíveis danos do rastreamento, como muitas vezes, informações enganadoras são utilizadas.  Para piorar, estudos mostram que médicos – aqueles que deveriam ajudar as pessoas a tomar decisões sobre saúde – não estão bem informados sobre o rastreamento. 

Um dos equívocos das campanhas começa pela a utilização do termo prevenção. Prevenir um câncer significa reduzir as chances de desenvolver essa doença. Infelizmente, esses exames de rastreamento não diminuem as chances de uma pessoa desenvolver câncer de mama ou próstata. É um equívoco importante, porque confunde o público: em uma pesquisa americana, 68% das mulheres responderam erroneamente que mamografia previne o câncer de mama [1]. Pior ainda, em uma pesquisa realizada com estudantes e profissionais de saúde em congressos no Brasil, 37% responderam equivocadamente que a mamografia reduz a incidência do câncer de mama [2]. 

Outra informação relevante, ausente nas mensagens, é que o rastreamento desses cânceres também causa danos. Uma vez que estamos lidando com pessoas sem sinais e sintomas da doença, é na realidade mais fácil causar dano, piorando a saúde dessa pessoa, do que melhorar a de alguém que já está saudável. 

O dano mais comum do rastreamento é o resultado falso-positivo, levando à ansiedade das pessoas examinadas. Por exemplo, aproximadamente 50% das mulheres americanas sem sintomas, examinadas com mamografia anualmente, por 10 anos, receberão pelo menos um resultado falso-positivo [3]. Esses resultados, muito comumente, provocam ansiedade e levam à realização de outros exames. 

Mas esse não é o dano mais sério. A prática de exames de rastreamento para os cânceres de mama e de próstata em vez de reduzir (prevenir), na realidade, aumenta o número de diagnósticos de cânceres de mama e próstata. Esse excesso de diagnóstico é chamado de sobrediagnóstico: a detecção de um câncer que não é fatal, e não causaria sintomas. 

Sobrediagnóstico não é um resultado falso-positivo. Um resultado falso-positivo ocorre quando um exame sugere a presença da doença, mas a suspeita não é confirmada em exames subsequentes. No caso do sobrediagnóstico, a lesão preenche os critérios patológicos do câncer. Ele só não causaria nenhum problema e, se não fosse pelo rastreamento, esse câncer não seria descoberto [4].  O dilema do rastreamento do câncer é que, no momento da detecção, não é possível prever quais casos vão evoluir, ou não. Com isso, a maioria é tratada. Isso implica que, nos rastreamentos dos cânceres de mama e próstata, várias pessoas estão sendo tratadas agressivamente (com cirurgia, radioterapia, quimioterapia e terapia hormonal, ou uma combinação desses tratamentos) para cânceres que nem deveriam ter sido detectados.  

 Hoje, sabemos que o câncer é uma doença de comportamento heterogêneo, isto é, com diferentes velocidades de crescimento [4]. O rastreamento tende a detectar os casos de crescimento bem lento. Ou, também, aqueles que não evoluiriam, ou que regrediriam naturalmente. Já os casos mais agressivos, que são mais letais, crescem tão rápido que o rastreamento não é muito útil, já que, geralmente, causam sintomas no intervalo entre exames. A solução não é fazer mais exames ou fazer um exame de forma mais frequente, já que isso levará a mais sobrediagnósticos, sobretratamento e resultados falso-positivos. 

Apesar do sobrediagnóstico e sobretratamento não serem mencionados nas campanhas, muitas vezes seus efeitos são enaltecidos como benefício. É frequente ouvirmos que o câncer de mama tem 95% de chances de cura se diagnosticado nas fases iniciais.  Esse número é a sobrevida em 5 anos – o porcentual de pacientes vivos 5 anos após o diagnóstico –  uma medida bastante utilizada para medir o prognóstico do câncer. Porém, a estatística de sobrevida é aumentada artificialmente pelo rastreamento. 

O primeiro motivo do aumento artificial é o sobrediagnóstico, que aumenta o número de casos registrados da doença, assim como o número de pacientes curados. O segundo motivo é a antecipação do diagnóstico. Para que tenha sucesso, o rastreamento precisa antecipar o momento do diagnóstico. E essa antecipação aumenta artificialmente a sobrevida, porque os pacientes vivem mais tempo após o diagnóstico, mesmo quando suas vidas não foram prolongadas pelo rastreamento. 

Imagine o cenário onde um grupo de pacientes não rastreados é diagnosticado pelos sintomas aos 61 anos, e morre  de câncer aos 65 anos. Como nenhum paciente viveu 5 anos após o diagnóstico, a sobrevida em 5 anos foi 0%. Agora, imagine que as pessoas rastreadas são diagnosticadas aos 59 anos, mas também morrem aos 65 anos. Note que, em ambos os casos, a morte pelo câncer ocorreu no mesmo momento, independente se as pessoas fizeram ou não rastreamento; ou seja, o rastreamento não prolongou a vida. Mesmo assim, a sobrevida em 5 anos aumentou para 100%.   

Por esses motivos, a sobrevida não pode ser usada como evidência da eficácia do rastreamento [5]. Não é apenas o público que é enganado pelas taxas de sobrevida. Em uma pesquisa com médicos americanos [6], 76% responderam equivocadamente que melhoras taxas de sobrevida significa que o rastreamento é eficaz. Apenas a redução da mortalidade pode mostrar que o rastreamento salva vidas. Além disso, 49% também responderam que mais casos de câncer detectados pelo rastreamento representam eficácia. Isso é um equívoco, porque o rastreamento não deve diagnosticar mais casos do que seriam diagnosticados sem ele; o rastreamento deve antecipar o tempo do diagnóstico. Mas isso também não é tudo: só será relevante antecipar o diagnóstico se o tratamento precoce for mais eficaz.  Em uma pesquisa com estudantes e profissionais de saúde no Brasil [2], 95% dos participantes superestimaram os benefícios do rastreamento com mamografia em, pelo menos, 30 vezes. 

O Instituto Nacional do Câncer (INCA) recomenda a realização do rastreamento com mamografia a cada dois anos para mulheres entre 50 e 69 anos. Fora dessa faixa etária e periodicidade, o balanço entre riscos e benefícios é desfavorável [7]. Já para o câncer de próstata, o INCA não recomenda a realização de rastreamento, por considerar que os danos são maiores que os benefícios [8] e incluem sobrediagnóstico e sobretratamento, com consequências tais como incontinência urinária e impotência sexual.

O conhecimento científico de que rastreamento causa danos existe há algum tempo. Está na hora de pararmos com as mensagens que transmitem apenas uma visão exagerada de benefícios, em tom agressivo, e começarmos a informar corretamente a população e os profissionais de saúde. 

Termos e Mitos: 

Rastreamento: a busca sistemática de uma doença, como câncer de mama ou câncer de próstata, através de exames periódicos de check-up em pessoas sem sinais e sintomas da doença. 

Mito: não há exames capazes de prevenir cânceres de mama ou próstata. Pelo contrário, tais exames aumentam o número de diagnósticos do câncer de mama e próstata.

Sobrediagnóstico do câncer: a detecção de um câncer que não progrediria, não causaria sintomas e nem ameaçaria a vida do indivíduo. Um paciente com sobrediagnóstico morreria por outras causas sem nem saber que tinha câncer, mas descobriu a doença devido à realização de exames de rastreamento. 

Sobretratamento: uma consequência do sobrediagnóstico. É o tratamento desnecessário de pessoas que foram sobrediagnosticadas. 

Sobrevida em 5 anos: porcentual de pacientes vivos cinco anos após o diagnóstico. Com o aumento do número de exames de rastreamento, as sobrevidas em 5 ou 10 anos de diversos cânceres aumentaram significativamente. O que não indica eficácia do rastreamento. Também não pode ser usada para comparar o sucesso de sistemas de saúde de países ou regiões diferentes. Como a aderência e frequência do rastreamento é diferente por países e até regiões, as sobrevidas tornam-se incomparáveis.

Mito: que seria sempre possível descobrir o tumor com antecedência, ou que necessariamente o tumor só progrediu porque a pessoa não fez exames de check-up. A realidade é que exames de check-up não são muito úteis contra casos mais agressivos, já que provavelmente vão causar sintomas no intervalo entre exames.

É importante ficar atento aos sinais e sintomas de alerta e buscar logo atendimento médico. Isso vale também para pacientes que fazem os exames de rastreamento, já que há casos de câncer que causam sintomas no intervalo entre os exames, e também casos que não são detectados nos exames de rotina. Você não deve esperar o próximo exame caso perceba alguma alteração, mesmo que tenha feito um check-up recentemente. 

 

Felipe Nogueira é Doutor em ciências médicas pela UERJ, além Mestre e Bacharel em informática pela PUC-Rio. Divulgador da ciência e do pensamento crítico com artigos publicados nas revistas Skeptical Inquirer, Skeptic e no seu blog Ceticismo e Ciência. 

Arn Migowski é médico epidemiologista, Doutor em saúde coletiva pela UERJ, chefe da Divisão de Detecção Precoce do INCA e pesquisador do Instituto Nacional de Cardiologia.

 

REFERÊNCIAS

1. Domenighetti G, Avanzo BD, Egger M, et al. Women’s perception of the benefits of mammography screening: population-based survey in four countries. International Journal of Epidemiology. 2003 Oct; 32:816-21  

2. Migoswki A, Stein AT, Silva GA, et al. Adherence to national guidelines for early detection of breast cancer in Brazil: challenge regarding the implementation in primary health care. Conference: 21st WONCA World Conference of Family Doctors 2016.

3. Keating, NL, Pace LE. Breast cancer screening in 2018: time for shared decision making. JAMA. 2018 May 1; 319(17):1814-1815. doi: 10.1001/jama.2018.3388. doi:10.1001/jama.2018.3388

4. Carter, SM, Barratt A. What is overdiagnosis and why should we take it seriously in cancer screening? Public Health Res Pract. 2017 Jul; 27(3). doi: 10.17061/phrp2731722.

5. Migowski A. A detecção precoce do câncer de mama e a interpretação dos resultados de estudos de sobrevida. Cien Saude Colet. 2015 Apr; 20(4):1309. doi: 10.1590/1413-81232015204.17772014

6. Wegwarth O, Schwartz LM, Woloshin S, et al. Do physicians understand cancer screening statistics? A national survey of primary care physicians in the United States. Annals of Internal Medicine 2012 Mar; 156:340-9. doi: 10.7326/0003-4819-156-5-201203060-00005.

7. Migowski A, Silva GAE, Dias MBK, Diz MDPE, Sant'Ana DR, Nadanovsky P. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. II – Novas recomendações nacionais, principais evidências e controvérsias. Cad Saude Publica. 2018 Jun; 34(6):e00074817. doi: 10.1590/0102-311X00074817.

8. Instituto Nacional de Câncer. Rastreamento do Câncer de Próstata. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files//media/document//rastreamento-prostata-2013.pdf

Mais Acessadas

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899