A recente canonização da baiana Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), mais conhecida como Irmã Dulce, nome que adotou ao tornar-se freira, voltou a chamar atenção para o processo pelo qual o Vaticano cria seus santos, com especial ênfase na questão dos milagres.
Para ser um santo da igreja católica, há dois pré-requisitos absolutamente necessários: você tem que ser católico e tem que estar morto. Tendo superado esses obstáculos iniciais, há algumas opções. Uma é o martírio: além de estar morto, ter morrido pela fé católica (como vítima de perseguição religiosa, por exemplo). Outra é ter milagres reconhecidos oficialmente. Normalmente dois milagres são necessários, mas nem sempre: o papa João XXIII foi canonizado com apenas um milagre a seu crédito.
O conceito de “milagre” – um fenômeno maravilhoso, inexplicável de acordo com as leis da natureza – tem um longo pedigree no campo da epistemologia, o ramo da filosofia que estuda como chegamos a considerar que certas coisas merecem crédito, que contam como conhecimento, não apenas como convenção ou opinião.
A análise do problema dos milagres feita pelo escocês David Hume (1711-1776) é especialmente famosa. Hume concluiu que só é lícito acreditar na ocorrência de um milagre se esse milagre for menos improvável do que a pessoa que nos fala dele estar mentido ou ter se enganado. Isso vale, até mesmo, quando nós mesmos testemunhamos o evento miraculoso: afinal, o que é mais provável, que as leis na natureza tenham sido suspensas ou que estejamos iludidos ou alucinados?
No caso de fenômenos religiosos em geral, essa questão da credibilidade relativa das alegações pró e contra é resolvida por meio da fé, que fornece um critério claro de desempate: milagres da fé dos outros são mentiras ou ilusões, os da minha são reais, cada um na sua e não se fala mais nisso.
Os milagres invocados nas canonizações católicas, no entanto, têm uma camada extra de complexidade, porque são, supostamente, “comprovados”. À primeira vista, isso deve significar que têm validade objetiva. São fatos, não interpretações: uma comissão de médicos precisa proclamar que a cura (a maioria dos milagres envolvidos em canonizações são curas) é inexplicável em termos físicos/humanos/científicos.
Então, milagres citados em processos de canonização do Vaticano são, assim como a coca-cola, isso aí? Provas objetivas de intervenção sobrenatural no mundo dos mortais?
Não. Por dois motivos.
Primeiro, porque declarar que um fenômeno (no caso, uma cura) não tem explicação conhecida – mesmo supondo que nenhum outro médico sobre a face da Terra, com um conjunto de competências e de experiências diferente do dos membros da comissão que investigou o caso, fosse capaz de explicar o ocorrido – é apenas uma confissão de ignorância.
Dizer "não sei o que provocou a cura X, logo foi um milagre operado por intercessão do católico morto Y" faz tanto sentido quanto dizer "não sei o que causou aquela luz no céu, logo ela veio de um disco-voador pilotado por homenzinhos verdes".
Segundo, a questão da atribuição: o doente de X rezou para Y, e algum tempo depois foi curado. Faz sentido estabelecer uma relação de causa e efeito?
Em princípio, pode-se tratar apenas de um caso de post hoc ergo propter hoc, o erro lógico de supor que, só porque uma coisa aconteceu depois da outra, ela foi causada pela outra. É como imaginar que estou escrevendo esta postagem porque comi sanduíche de queijo no café da manhã. As causas precedem os efeitos, mas nem tudo que precede um efeito deve, necessariamente, ser lançado na lista de suas causas.
A hipótese de coincidência, em oposição à de causalidade direta, ganha força quando levamos em conta o fato de que candidatos a santo populares (como Irmão Dulce, por exemplo) costumam ser beneficiários de campanhas pró-canonização: basicamente, os fãs do candidato passam a sugerir a todas as pessoas que conhecem e que precisam de um "milagre" que rezem para ele, solicitando a intercessão.
Com milhares, ou milhões, de suplicantes, o surgimento de um ou dois casos que escapem ao poder explicativo das comissões investigatórias é uma certeza matemática.
Assim como nas eleições parlamentares brasileiras – onde, dado um determinado nível de investimento em publicidade de campanha, a conquista do mandato é virtualmente inevitável – deve haver um break-even de orações que também torna a beatificação, e posterior santificação, de um candidato um fato garantido.
Resumindo, o sistema de reconhecimento de santos e beatos do Vaticano é formado por uma máquina de geração de eventos, a campanha, que multiplica as súplicas (às vezes por séculos a fio, se necessário) até que a lei das probabilidades gere um pequeno saldo positivo, a respeito do qual um grupo de especialistas esteja disposto a manifestar ignorância.
Pode-se argumentar que santidade é algo que se constrói com esforço e sacrifício durante a vida, um testemunho de caridade e um exemplo para os demais seguidores da fé. Mas a canonização, em si, é só uma questão de probabilidade.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência