Sempre há uma pessoa, ou um grupo de pessoas, que contesta as descobertas de uma área qualquer da ciência. É um fenômeno que chamamos de negacionismo da ciência. Sejam os defensores dos combustíveis fósseis argumentando contra a ciência do clima, ou o pessoal que insiste em dizer que o HIV não causa aids, os negacionistas estão à nossa volta espalhando falsas informações que podem, inclusive, causar mortes.
As pessoas que fazem comunicação em ciência precisam se defender desse negacionismo e, para fazê-lo, é importante entender que formas ele assume. Aqui vamos tratar e cinco elementos que caracterizam o negacionismo, conhecidos pela sigla (em inglês) FLICC.
O negacionismo da ciência é exatamente o que parece, a negação de um fato científico feita de tal maneira que as pessoas que não são especialistas no assunto, não têm opinião formada a respeito ou ignoram os dados relevantes, são levadas a crer num ponto de vista que discorda da ciência estabelecida.
Se você é um fabricante de cigarros que quer convencer as pessoas de que cigarros são absolutamente saudáveis, as técnicas FLICC são as que você vai usar em sua mensagem. Na verdade, essas técnicas são empregadas pela maioria dos negacionistas da ciência e, uma vez que você aprenda a identificá-las, você terá mais uma ferramenta para distinguir ciência de verdade de pseudociência.
A sigla FLICC foi criada por John Cook em 2014 (e testada em 2017 neste artigo), mas as cinco técnicasjá haviam sido mencionadas previamente porPascal Diethelm e Martin McKee, em 2009, num paper do European Journal of Public Health (1), que, por sua vez, se baseavam numa espécie de codificação do negacionismo feita pelos irmãos Mark e Chris Hoofnagle, em um artigo do ScienceBlogs de 2007 (2). FLICC quer dizer:
F: Fake experts (Falsos especialistas) L: Logical fallacies (Falácias lógicas) I: Impossible expectations (Expectativas irreais) C: Cherry picking (Seleção a dedo ou “catação de piolho”) C: Conspiracy theories (Teorias da conspiração)
Encontramos as técnicas de FLICC o tempo todo, mas aqui vamos ver três casos comuns de negacionismo e aplicar cada técnica de FLICC à ciência do clima, às culturas transgênicas e às vacinas. Comecemos pelos falsos especialistas.
F: Falsos especialistas
A primeira coisa que sai da boca dos negacionistas é que algum “cientista importante” concorda com eles. Um exemplo é o "Architects & Engineers for 9/11 Truth", um grupo online com mais de 3 mil pessoas que acredita que o atentado de 11 de setembro foi “trabalho interno”. No entanto, analisando a lista de membros, dá para contar nos dedos os que realmente são especialistas. Os demais são simplesmente pessoas que assinaram a petição, sem qualquer credencial. Ainda assim, esse grupo se apresenta ao público como sendo formado por mais de 3 mil especialistas para quem, do ponto de vista da engenharia, não haveria como as Torres Gêmeas terem desabado a partir da colisão de dois aviões e, portanto, o que ocorreu foi uma demolição controlada. Falsos especialistas estão por toda parte, quase sempre se apresentam como experts, mas na verdade não têm experiência nenhuma no assunto.
Geralmente, os falsos especialistas negacionistas atacam os verdadeiros especialistas, a quem acusam de ser comprados ou vendidos para determinados grupos ou empresas:
Negacionistas do aquecimento global: cientistas chamados para contestar a tese de que o aquecimento global é causado pela atividade humana quase nunca são climatologistas; o mais comum é que sejam físicos ou engenheiros de outras áreas. Mesmo assim, ostentam suas credenciais, por mais irrelevantes que sejam.
Negacionistas de transgênicos: Se você olhar aqueles mais vocais entre os engajados em movimentos contra a agricultura moderna, raramente vai encontrar agrônomos ou biólogos moleculares. Geralmente são escritores, filósofos ou professores de outras áreas, quase sempre alinhados com o movimento em favor dos orgânicos. Mas basta vestir um jaleco branco e brandir um diploma que você consegue convencer os leigos a embarcar na sua conversa.
Negacionistas de vacinas: Vale a pena destacar que pouquíssimos ativistas antivacinas são médicos de verdade. Muitos deles se intitulam médicos, mas geralmente estão em profissões como quiropraxia e naturopatia. Mesmo quando pertencem àquela porcentagem minúscula de médicos antivacina, representam uma fração irrelevante da profissão e contrariam o que todos os outros afirmam.
L: Falácias lógicas
Estas são a ferramentas preferidas dos pseudocientistas, mas também são usadas praticamente por todo o mundo o tempo todo, em todas as esferas da vida. Falácias lógicas incluem ataques ad hominem (ataca-se o oponente enquanto pessoa, não seu argumento), falácia do espantalho (quando se atribui uma posição distorcida ao oponente, o que torna mais fácil refutá-la), falácia da bola de neve (em que se parte de uma proposição à qual encadeiam-se outras, até chegar a uma conclusão absurda), chamarizes e distrações (quando se introduz outro assunto para desviar a atenção do primeiro), falsas dicotomias, e centenas de formas logicamente inválidas para defender um argumento.
As falácias lógicas apelam à tendência do cérebro de pensar a partir de relatos anedóticos (casos isolados, sem validade científica) e não logicamente. Por isso, muitos argumentos logicamente falaciosos soam convincentes. O negacionista de ciência depende disso, porque não tem a ciência do seu lado, ao contrário do verdadeiro cientista que segue a evidência e, portanto, não precisa recorrer a argumentos logicamente inválidos.
Negacionistas do aquecimento global: Uma distração comum, usada por negacionistas do clima, é alegar que cientistas nem sequer conseguem prever como vai estar o tempo amanhã, então como podemos confiar no que dizem sobre o clima? Este é um chamariz – uma distração irrelevante – porque clima e tempo não têm nada a ver um com o outro. Pense no clima como o que você tem aplicado em poupança e investimentos, e no tempo como o dinheiro que você tem na carteira neste momento.
Negacionistas de transgênicos: Desde que a Monsanto se tornou a face mais visível das culturas transgênicas, o nome da empresa virou uma espécie de palavrão para denegrir a biotecnologia. Ao amarrar a tecnologia a todas as supostas ou imaginadas transgressões éticas e legais da empresa, os negacionistas recorrem a várias falácias: chamariz, ad hominem, a non-sequitur (em que a conclusão não decorre das premissas) e a que gosto de chamar de argumentum ad Monsantium (3) (algo como “Então, você ama a Monsanto?”).
Negacionistas de vacinas: Uma falácia da bola de neve que ouvimos frequentemente é que se o governo pode obrigar você a vacinar seus filhos, então isso levará a um controle total do governo sobre o seu corpo e todos nós seremos microchipados, etc, etc, etc.
I: Expectativas impossíveis
Outro estratagema dos negacionistas é exigir ,da ciência disponível, padrões impossíveis ou certezas absolutas, com a implicação de que se ela não alcança esses padrões, ela é, portanto, totalmente inválida e deve ser desconsiderada, em favor dos “fatos” preferidos pelo negacionista.
Isso é como dizer que, se a roupa de um bombeiro não é 100% à prova de fogo, sob quaisquer condições imagináveis, ela deve ser descartada, e o melhor é substituí-la por uma camiseta comum borrifada com óleos essenciais.
Nenhuma descoberta da ciência é 100% comprovada, e é nisso que reside a força do método científico. Toda descoberta permanece aberta a novas informações e aperfeiçoamentos, e é assim que a ciência se torna melhor e mais forte. Por definição, o processo científico nunca está completo: portanto, não há um padrão impossível a ser alcançado. É preciso ter cuidado para manter as expectativas dentro do razoável e do racional, não no impossível.
Negacionistas do aquecimento global: Tudo que se requer aqui é mostrar que, este ano, tivemos alguns dias mais frios do que no ano passado. Isso porque, se partirmos da expectativa de que o aquecimento global é verdade, então os dias estarão sempre mais quentes, ano após ano. Não é assim que o aquecimento global funciona, mas é fácil usar essa expectativa impossível para “mostrar” que a afirmação e que um aquecimento global é falsa.
Negacionistas de transgênicos: Podemos dizer, com absoluta certeza, que ninguém jamais vai ter uma reação alérgica a um produto transgênico? É claro que não podemos prever uma coisa dessas, mesmo depois de dezenas de trilhões de refeições com transgênicos terem sido consumidas sem nenhum problema de saúde registrado. É uma expectativa impossível.
Negacionistas de vacinas: As vacinas são positivamente e absolutamente 100% seguras? Não, e como uma porcentagem mínima de pessoas sofre reação adversa, há quem argumente que devemos jogar todas fora.
C: Seleção a dedo ou “catação de piolho”
É o processo de selecionar apenas os dados que sustentam seu achado preferido, descartando todos os dados que o contestam. Por exemplo, o defensor de cosmologias alternativas que discute apenas as conclusões de um ou dois malucos, e ignora completamente o trabalho vasto e consistente que sustenta o modelo padrão do universo. Para um público inocente, pode até parecer que não existem outros dados exceto os daqueles dos malucos. A catação de piolho quase sempre exclui informações que contradizem o que se deseja demonstrar, enquanto a boa ciência se empenha para levar em conta a maior quantidade possível de informações desse tipo, já que o trabalho de testar e descartar hipóteses é essencial no método científico.
Negacionistas do aquecimento global: é fácil escolher a dedo dados que sugerem ou que as temperaturas globais estão caindo, ou se mantêm constantes. Tudo que se precisa é escolher uma região específica, num período específico. Praticamente todos os vídeos do YouTube que negam o aquecimento global apelam para esse recurso.
Negacionistas de transgênicos: Quando a Academia Nacional de Ciências publicou, em 2016, um estudo importante mostrando que as culturas transgênicas tiveram menos perdas causadas por insetos do que as convencionais, os oponentes ignoraram esse fato e destacaram que alguns insetos desenvolveram resistência a essas plantas. A conclusão falsa é que os transgênicos tornaram o problema dos insetos mais grave.
Negacionistas de vacinas: É fácil selecionar os poucos casos de reações adversas a vacinas e apresentá-los como um provável efeito da vacinação, sugerindo falsamente que a imunização é proibitivamente perigosa.
C: Teorias da Conspiração
Quando você ouve uma teoria da conspiração é praticamente certo que está dando ouvidos a um negacionista da ciência. “Só gente que é paga pode discordar disso!” Negacionistas da ciência costumam usar palavras com conotação religiosa, como dogma ou ortodoxia, para descrever descobertas de que não gostam. “A ciência não gosta de ver seus dogmas contestados”, alegam, como se pesquisadores fossem pagos apenas para confirmar os cânones enraizados em seu grupo fechado. Eles conspiram – como dizem os negacionistas – para impedir a entrada de recém-chegados com grandes descobertas nesse clube fechado, porque isso ameaçaria os recursos que recebem para suas pesquisas. Porque, obviamente, fundações e investidores financiam pesquisas para que nada de novo seja descoberto ou aprendido e vão continuar assinado cheques enquanto tiverem como retorno apenas o bom e velho dogma. Nossa, faz muito sentido, não é?
Negacionistas do aquecimento global: Uma das teorias da conspiração mais familiares de hoje é dizer que os cientistas do clima estão deliberadamente publicando dados falsos, porque um ser misterioso está enchendo seus bolsos com um interminável fluxo de dinheiro, vindo do setor de energia renovável.
Negacionistas de transgênicos: Uma alegação comum é a de que produtores de sementes transgênicas conspiram para assumir o controle de todo estoque de alimentos do planeta, para dominar o mundo.
Negacionistas de vacinas: é claro que médicos e as Big Pharma estão mancomunados para administrar vacinas perigosas e manter todo mundo doente, para ter mais lucro.
Então, este é o FLICC aplicado a três pseudociências bem populares. Provavelmente, nada aqui é novidade para quem acompanha os podcasts do Skeptoid, e certamente ninguém fica surpreso ao saber que negacionistas da ciência se apoiam todos nas mesma técnicas, não importa qual ciência estejam negando. E agora que sabemos exatamente o quê procurar, podemos reagir imediatamente quando percebermos que estamos sendo FLICCados por um negacionista da ciência.
Brian Dunning é escritor e comunicador de ciência, criador do podcast Skeptoid e diretor executivo da Skeptoid Media. Este artigo foi publicado originalmente em Skeptoid, e traduzido com permissão do autor. O original pode ser encontrado aqui.
NOTAS
- Diethelm, P., McKee, M. "Denialism: what is it and how should scientists respond?" European Journal of Public Health. 20 Jan. 2009, Volume 19, Issue 1: 2-4.
- Hoofnagle, M., Hoofnagle, C. "What Is Denialism." Denialism Blog. ScienceBlogs, 7 Jun. 2007. Web. 28 Aug. 2019. https://web.archive.org/web/20070602173017/https://scienceblogs.com/denialism/about.php
- Dunning, B. "Argumentum ad Monsantium." SkepticBlog. The Skeptics Society, 8 Nov. 2012. Web. 25 Aug. 2019. <https://www.skepticblog.org/2012/11/08/argumentum-ad-monsantium/>