Em seu livro “Retorno ao Admirável Mundo Novo”, Aldous Huxley sugere que o futuro da espécie humana depende do estabelecimento de uma “educação para a liberdade” que dê aos cidadãos as ferramentas necessárias para enxergar além das falácias, mentiras, distorções e outras manobras manipulativas da opinião – pública e individual – que formam a espinha dorsal dos discursos da propaganda, da política e da pregação religiosa.
Escrevendo quando a memória dos efeitos da propaganda nazista ainda era quente e no momento em que o marketing político assumia que vender líderes e vender desodorantes não requeriam técnicas assim tão diferentes uma da outra – nenhum “debate de ideias” honesto e substantivo sendo necessário, em qualquer caso –, Huxley lamentava que essa proposta educacional fosse tão impopular:
“Certos educadores, por exemplo, desaprovavam o ensino de análise de propaganda porque isso tornaria os adolescentes indevidamente cínicos. E isso tampouco foi bem recebido pelas autoridades militares, que temiam que os recrutas pudessem começar a analisar as declarações de sargentos instrutores. E, depois, havia os clérigos e os anunciantes”.
Quase setenta anos depois do lamento de Huxley, a questão posta pelos adversários da “educação para a liberdade” – uma educação cética torna as pessoas críticas ou cínicas? – começa a ser respondida empiricamente. No fim de outubro, em Las Vegas, ocorreu a primeira LiliCon, ou Convenção da Aliança Lilienfeld para o Ensino de Ceticismo Racional na Educação Superior (declaração de conflito de interesse: Natalia Pasternak, publisher desta Revista Questão de Ciência, é membro-fundador da Aliança).
Sinal, ruído, limiar
Ao todo foram feitas quinze apresentações na convenção, que reuniu pesquisadores e professores de diversas partes do mundo (EUA, Brasil, Canadá, Reino Unido, África do Sul). Mas aqui quero tratar especificamente de uma delas, a conduzida pelo professor de psicologia Anthony Bishara, da Faculdade de Charleston (EUA).
Bishara descreveu métodos e resultados de uma pesquisa que buscava responder à seguinte pergunta: será que uma educação em ceticismo científico ajuda as pessoas a realmente separar crenças verdadeiras de falsas, ou apenas as torna mais cínicas – menos propensas a aceitar qualquer informação nova ou surpreendente, seja ela justificada ou não? Em outras palavras, os cursos universitários sobre ciência e pseudociência estão formando pensadores críticos, ou apenas niilistas?
Ele deu o seguinte exemplo hipotético: "Eu não gostaria que meus alunos, ao final do semestre, começassem a questionar, ‘Ah, mas será que devo me vacinar? Bem, os especialistas dizem que sim, mas não sei. Não confio realmente nos especialistas’".
O pesquisador também mencionou o popular jogo online “Bad News”, que ensina as pessoas a reconhecer manchetes falsas e manipulativas. “Um estudo mostrou que ele realmente diminui a crença das pessoas em notícias falsas, mas, ao menos em sua versão original, também reduz a crença em manchetes verdadeiras, de veículos respeitáveis. Parece diminuir a confiança nas notícias em geral”.
A preocupação com o efeito líquido das intervenções de “inoculação” contra estratégias de desinformação – se deixam as pessoas mais preparadas para enfrentar falácias ou apenas mais receosas de todo e qualquer tipo de discurso – não é exclusiva de Bishara, e já rendeu até um comentário recente na revista Science.
Adotando os conceitos de “sinal” (para informação correta) e “ruído” (para pseudociência e desinformação), Bishara alerta que o ensino do ceticismo racional pode ter dois efeitos: o de elevar o limiar de credulidade – tornando mais complicado superar a barreira psicológica que dificulta a aceitação de qualquer nova informação, seja ela verdadeira ou não – e o de aprimorar a capacidade de discriminar entre sinal e ruído.
Em tese, esses efeitos podem se manifestar de forma independente um do outro.
Se a educação em ceticismo apenas eleva o limiar, talvez impeça as pessoas de gastar dinheiro em medicina alternativa, mas, por outro lado, pode fazer com que algumas afirmações bem fundamentadas, como a realidade da mudança climática, também sejam deixadas de lado. “Se tudo o que estamos fazendo é mover o limiar, temos uma situação complicada”, disse Bishara durante sua apresentação. “Mas, se conseguirmos separar sinal de ruído, seria uma vitória clara para nossas intervenções educacionais”.
Ele então descreveu um experimento que avaliou a discriminação entre sinal e ruído e a posição do limiar de crença de dois grupos de estudantes de psicologia: um que assistiu a uma aula regular de estatística e outro, a um curso de ceticismo. O curso de ceticismo utilizava materiais de leitura de publicações como a revista americana Skeptical Inquirer e livros de autores céticos, obras que “frequentemente destacam características comuns encontradas em afirmações sem fundamento e características comuns encontradas em afirmações bem fundamentadas”.
As medições da capacidade de discriminação e do limiar de crença foram feitas, por meio de questionários, antes e depois de cada curso, e então comparadas. Os alunos que fizeram a aula de estatística não mostraram mudanças, mas aqueles do curso de ceticismo mostraram tanto uma maior capacidade de discriminar entre fato e falsidade quanto um limiar de crença mais elevado, após o curso. Porém, crucialmente, a capacidade de discriminação cresceu mais do que o limiar.
Ao final de sua fala, Bishara deixou um alerta para pesquisadores da área: se os questionários aplicados para avaliar o impacto do curso de ceticismo não incluírem também perguntas sobre crenças bem fundamentadas, e se limitarem a avaliar a crença em alegações inválidas – como a eficácia da medicina alternativa, ou a existência de fantasmas – a distinção entre mudanças na capacidade de discernimento e mudanças no limiar de credulidade se perde.
A Aliança
Iniciativa criada para reunir professores de ceticismo e pensamento racional de todo o mundo, a fim de compartilhar experiências, técnicas de ensino, métodos e resultados de pesquisas, a Aliança Lilienfeld é uma criação da cientista social Katie Dyer e do físico Ray Hall, ambos da Universidade da Califórnia, em Fresno; de Natalia Pasternak, da Universidade de Columbia e do Instituto Questão de Ciência; e do psicólogo Rodney Schmaltz, da Universidade MacEwan (Canadá).
O nome da Aliança é uma homenagem ao psicólogo Scott O. Lilienfeld, que faleceu em 2020. Lilienfeld teve uma carreira altamente respeitada e produtiva em pesquisa, ensino e divulgação na psicologia, sempre promovendo o pensamento racional e o ceticismo e reforçando a necessidade de que psicoterapias fossem avaliadas cientificamente – inclusive, com um tratamento honesto de seus eventuais efeitos adversos. Livros que coescreveu ou coeditou, como "50 Grandes Mitos da Psicologia Popular" e "Ciência e Pseudociência na Psicologia Clínica", tornaram-se clássicos na área.
Em suas observações iniciais para a LiliCon, Rodney Schmaltz lembrou o profundo compromisso de Lilienfeld não apenas com o ceticismo e o racionalismo, mas também com a humildade intelectual. Ao final da conferência de 2024, foi anunciado que a segunda LiliCon ocorrerá na Universidade MacEwan em Edmonton, Alberta, Canadá, no verão de 2025.
A Aliança pode ser contatada online em https://sites.google.com/view/lilienfeldalliance/
Quanto a até que ponto os trabalhos da Aliança atendem à recomendação de Huxley, alguém poderia apontar que esperar para fazer isso no ensino superior talvez seja um pouco tarde demais – o que é uma apreensão perfeitamente razoável. Mas, como se diz por aí, antes tarde do que nunca.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)