Facada, tiro, conspiração

Apocalipse Now
21 jul 2024
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bandeira pirata

 

Uma operação “false flag” (literalmente, “bandeira falsa”) é uma agressão – um atentado terrorista, um ataque militar, uma tentativa de assassinato – em que o agressor apresenta credenciais falsas (hasteia uma falsa bandeira, por assim dizer), a fim de atribuir a culpa a terceiros. Numa “false flag” clássica, é a suposta “vítima” que ataca a si mesma, a fim de construir pretexto para promover retaliação contra o acusado.

Coisas assim existem e já foram registradas na História. No Brasil, o caso mais conhecido provavelmente é o da bomba no Riocentro, em 1981, quando militares tentaram explodir um show do Dia do Trabalho para culpar a esquerda e, assim, interromper o lento processo de redemocratização do país. Não deu certo porque o pessoal era incompetente e a explosão veio antes da hora.

Nos Estados Unidos, é famosa a Operação Northwoods, um plano apresentado ao presidente John F. Kennedy, em 1962, para que a CIA orquestrasse atentados em solo americano que seriam atribuídos a agentes de Fidel Castro – justificando, assim, uma declaração formal de guerra contra Cuba. Kennedy vetou a ideia.

O fato de haver “false flags” reais não significa, no entanto, que “false flag” seja uma explicação plausível para toda e qualquer agressão – nem, principalmente, a melhor explicação para todo e qualquer evento em que, por acaso, talvez não tivéssemos, e nem tenhamos, nenhuma simpatia pela vítima. Algo que o pessoal que está tecendo teorias conspiratórias em torno do tiro na orelha de Donald Trump (e ressuscitando a infame narrativa da “fakeada” em Jair Bolsonaro) deveria levar em conta.

 

Redução

Todos temos a tendência de, ao analisar eventos e comportamento humanos, dividi-los em duas grandes categorias: os autênticos e os redutíveis. Um evento ou comportamento autêntico é exatamente aquilo que aparenta ser: eu entro na lanchonete porque estou com fome e gosto de cheeseburguer, o atirador atinge a orelha de Trump porque desejava matá-lo e errou. Já um redutível é algo que fazemos ou que acontece por (ou reduz-se a) alguma outra razão: eu entro na lanchonete porque não quero encontrar o amigo inconveniente que vi do outro lado da rua, o atirador atinge a orelha de Trump porque tudo foi combinado.

Num mundo ideal, a distinção entre o autêntico e o redutível deveria ser feita com base na análise cuidadosa do contexto e da evidência; no mundo real, no entanto, ela muitas vezes é regida por preconceito, preguiça, vaidade e conveniência ou (no caso dos psicanaliticamente inclinados) relações etimológicas (reais ou imaginadas) e trocadilhos.

Qualquer pessoa que já tenha se envolvido numa discussão séria com um parceiro íntimo sabe como é irritante quando ele (ou ela) começa a tratar nossas queixas autênticas como redutíveis (“você só está dizendo isso por ciúme”, etc.), e como é tentador fazer o mesmo com as queixas incômodas que vêm em nossa direção.

Também, tratar a distinção entre autêntico e redutível como coisa que pode ser arbitrada por gosto ou intuição é uma forma fácil e barata de soar inteligente – o redutor é aquele que “enxerga a verdade por trás...” – e de garantir que “os fatos” continuarão a ser consistentes com os pontos de vista da tribo e da moda, não importa o que esteja acontecendo na realidade.

Nesse jogo, tudo o que favorece “os nossos” é autêntico, tudo que (parece) favorecer “os deles” é redutível. Os ativistas e militantes da “nossa” causa são apaixonados e autênticos, os da causa “deles” são mercenários financiados. Etecétera, etecétera.

A capacidade de executar malabarismos retóricos para dar a impressão de que verdades ideologicamente inconvenientes são “na verdade” redutíveis a algum tipo de idiotia ou calhordice é um talento que sempre esteve em alta demanda: carreiras muito bem-sucedidas nas Humanidades, na política e no jornalismo foram, e ainda hoje são, construídas inteiramente em torno disso.

 

Mas e os fatos?

Em termos subjetivos, a redutibilidade arbitrária deixa aberta uma ampla avenida que, se percorrida, leva à paranoia e a teorias de conspiração infundadas e delirantes. Em termos objetivos, destrói a capacidade de olhar de modo razoável e imparcial para a evidência. No caso da facada em Bolsonaro, de que já tratei em outro artigo, não apenas os supostos indícios de conspiração são muito fracos e inconsistentes, como existe a investigação conclusiva da Polícia Federal.

No caso do atentado contra o comício de Donald Trump – em que os tiros disparados pelo assassino, Thomas Matthew Crooks, além de ferir o ex-presidente, mataram pelo menos uma outra pessoa –, os eventos ainda estão sendo investigados e há várias perguntas em aberto: por exemplo, há evidência de que os agentes do Serviço Secreto haviam detectado o atirador pelo menos dois minutos antes de o primeiro disparo ser dado; por que não intervieram a tempo?

Mas, até agora, azar e incompetência, somados à cultura americana de violência política (basta lembrar as mortes de John e Bobby Kennedy, de Martin Luther King, o atentado contra Ronald Reagan, o assassinato, em 1901, do então presidente William McKinley, isso tudo só no século passado) e de acesso fácil a armas de fogo parecem ser as melhores explicações. Antes de Trump, outro ex-presidente, Ted Roosevelt, havia sofrido um atentado (em 1912) depois de deixar o cargo (Roosevelt foi presidente de 1901 a 1909).

O fato de essa ser a melhor explicação até o momento não garante, é claro, que não possa mudar,  à medida que novas evidências vão surgindo. Mas o racional é aceitar provisoriamente a melhor explicação disponível no momento, deixando a porta aberta para eventuais reviravoltas baseadas em novos fatos, e não ter a presunção de “sacar” a “verdadeira verdade” com base em conjecturas contrafactuais, alimentadas por preconcepções.

Muitas vezes, o praticante de redutivismo freestyle se põe na posição de alguém que “lê” a realidade subjacente às aparências, como um sagaz detetive de ficção “lê” pistas e indícios ocultos. A diferença crucial não é que o detetive ficcional é muito mais astuto do que nós de carne e osso, mas, sim, que tem o autor a seu lado – o problema que ele vai resolver foi arquitetado (e resolvido) previamente por um demiurgo camarada. Os feitos de lógica do detetive são, na verdade, feitos de retórica do escritor.

E mesmo detetives ficcionais tendem a ser mais cautelosos que o redutor das redes sociais. Em 1891, na primeira história curta protagonizada por Sherlock Holmes, Arthur Conan Doyle pôs as seguintes palavras na boca de seu mais famoso personagem: “Ainda não tenho dados. É um erro capital teorizar antes de se ter dados. Sem perceber, começamos a distorcer os fatos para ajustá-los às teorias, em vez de distorcer as teorias para ajustá-las aos fatos”. Era um bom princípio 130 anos atrás. Continua sendo até hoje.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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