Se o compromisso com a meta de limitar o aquecimento global antrópico a não mais do que 1,5º C acima da média pré-industrial neste século for para valer, e não mero jogo de cena, os governos do mundo deveriam adotar uma moratória na prospecção e desenvolvimento de novos campos de gás natural, carvão e petróleo: a abertura de novos projetos pressupõe que os Estados não cumprirão suas obrigações no enfrentamento da mudança climática. Este é o argumento central de um “Policy Forum” – artigo de opinião, mas uma opinião apoiada em fatos, dados e números – publicado no fim de maio pela revista Science.
Não exatamente por coincidência, a temperatura média global atingiu, em maio, o maior nível já registrado acima da média da era pré-industrial, com um excesso de 1,63º C. Este foi o décimo-segundo recorde anotado em 12 meses consecutivos. É isso mesmo: há 12 meses que, a cada mês, a temperatura planetária bate recorde. Parte da culpa é do El Niño, mas só parte.
Os autores do Forum, acadêmicos baseados na Inglaterra e Suíça, calculam que a demanda por combustíveis fósseis tolerada pela meta de 1,5º C pode ser perfeitamente bem atendida pelos campos já em operação ou em fase de desenvolvimento, defendem que a comunidade internacional adote uma regra de banimento da abertura de novas áreas de exploração, e oferecem até um nome para a campanha: “No New Fossil”.
O projeto parece utópico à primeira vista, mas é sustentado por um bom argumento: dada a necessidade óbvia de descarbonização da economia global, é mais viável – política e economicamente, ao menos no curto prazo – evitar a abertura de novos campos do que desmobilizar os já existentes. A segunda opção envolve a destruição de empregos que concretamente já existem, sustentam eleitores e suas famílias, e também da rentabilidade de investimentos já realizados.
É mais fácil, argumentam os autores, mobilizar a opinião pública para impedir novos projetos do que para desativar os que já estão aí: traduzindo para a situação brasileira, evitar a abertura de poços de petróleo na Amazônia é uma causa mais popular do que seria, digamos, um apelo para desativar a Bacia de Campos.
O Brasil, aliás, não é citado no “Policy Forum” (que destaca o compromisso a Colômbia com a Aliança Beyond Oil and Gas), mas é difícil, para quem está familiarizado com a situação local, perceber a acusação difusa de hipocrisia ambiental, dirigida a ninguém em particular mas implícita no texto, e não pensar nas palavras recentes da nova presidente da Petrobrás e na gula por extrativismo da nova-velha esquerda nacional-desenvolvimentista.
Novas normas
Os autores do Policy Forum dedicam a seção final do artigo a uma discussão da natureza das normas internacionais – não apenas leis e tratados, mas “normas de comportamento apropriado” que se difundem entre populações e Estados, e da chance de a proposta “No New Fossil” emergir como uma nova norma. O propósito parece ser o de desarmar ao menos parte das previsíveis críticas ao caráter “utópico” ou “irrealista” da ideia.
Usando como ponto de partida o clássico ensaio “International Norm Dynamics and Political Change”, de Martha Finnemore e Kathryn Sikkink, apontam que há diversos exemplos históricos de normas que se estabeleceram com sucesso mesmo quando confrontavam o que, na época de sua adoção, eram importantes interesses econômicos e geopolíticos – casos como o fim do tráfico internacional legal de escravos, a abolição do “direito” de possuir escravos e a proibição do teste de armas nucleares.
“Grupos de pessoas compromissadas, agindo frequentemente por meio de organizações da sociedade civil, produziram essas mudanças ao destacar o dano que essas atividades causavam e mobilizar apoio nas elites e em movimentos sociais de massa”, aponta o Policy Forum. Mais adiante, os autores lembram que propostas de novas normas “são mais persuasivas quando enquadradas em termos de exigências claras para que agentes poderosos parem ou proíbam atividades danosas”.
Outras vantagens que fazem do “No New Fossil” uma causa promissora para defender e promover, segundo seus proponentes: trata-se de um compromisso que, uma vez assumido, torna-se fácil de verificar, uma norma quase impossível de adotar apenas “da boca para fora” (não dá para, digamos, construir plataformas de perfuração de petróleo off-shore e passar despercebido); e, dados os variados tipos de dano que projetos de exploração de combustíveis fósseis causam – ambientais, sociais, de saúde –, é uma causa que permite unir diversos grupos da sociedade civil.
Os autores batem reiteradamente na tecla de que uma norma fácil de entender, articular e verificar – como a proibição clara e explícita da abertura de novas fontes fósseis – tem um poder mobilizador muito maior sobre a opinião pública e, uma vez implementada, uma chance muito maior de sucesso no enfrentamento da crise climática do que “metas de longo prazo para reduzir emissões de gases do efeito estufa ou para eliminar gradualmente o uso combustíveis fósseis, porque líderes podem muito facilmente ‘comprometer-se’ com essas metas de modo apenas retórico, seguros de que alguma outra pessoa estará no poder quando chegar a hora mostrar os resultados”.
Jogo de galinha
Claro, é exatamente essa facilidade cínica associada aos regimes de metas que os tornam tão atraentes. Se um banimento total da abertura de novos campos de exploração vier a ser adotado, muitos governos e empresas terão de ser arrastados, esperneando, para o novo regime, constrangidos por um movimento robusto da opinião pública mundial, que leve a uma transformação do que se considera boa etiqueta ambiental. Transformação que, sem dúvida, enfrentará resistências.
Quanto a isso, os riscos de a urgência da descarbonização acabar acentuando o duplipensar político em relação à mudança climática não devem ser subestimados. No caso brasileiro, não devemos nos surpreender, por exemplo, se algumas das mesmas figurinhas carimbadas que culparam o “negacionismo climático neoliberal” pela recente tragédia gaúcha reaparecerem daqui a pouco para acusar a resistência à exploração de petróleo na Margem Equatorial, ou mesmo a proposta “No New Fossil” como um todo, de ser algum tipo de conspiração do Norte global para manter o Sul subdesenvolvido.
Em 2022, um estudo detectou que em pelo menos cinco países (Egito, México, Nigéria, Arábia Saudita e Turquia) a crença de que o aquecimento global é uma fraude era mais popular na esquerda. O retorno de Aldo Rebelo ao mainstream é uma possibilidade real.
Entre a ação responsável e o negacionismo descarado, há o que talvez se possa chamar de negacionismo morno – aquele que reconhece que o problema é real, mas que a solução cabe aos “outros”.
Essa conversa lembra muito a cena de “play chicken” (“jogo de galinha”, literalmente), consagrada no filme “Rebelde Sem Causa”, de 1955, e imitada em inúmeros outros: dois carros em rota de colisão frontal, acelerando um em direção ao outro. Nenhum dos motoristas quer desviar para não ser declarado chicken (“galinha”, ou seja, covarde), mas ambos sabem que, se alguém não desviar, haverá um desastre.
Já é um jogo idiota quando disputado por adolescentes imaturos. Ainda mais, então, quando no volante estão adultos responsáveis pelo destino de povos inteiros.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)