Engana-se quem imagina que os militares que usurparam o poder no Brasil em abril de 1964 dedicaram-se apenas a censurar a imprensa e a prender, matar e torturar cidadãos brasileiros (“crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos”, relata, com base em farta documentação, o livro Brasil: Nunca Mais). Nas horas vagas, entre um pau-de-arara e outro, eles também investigaram discos voadores.
É fato histórico, pouco conhecido, que o único órgão oficial dedicado a apurar casos de óvnis no Brasil foi instituído nos anos de chumbo da ditadura: o Sioani (Sistema de Investigação dos Objetos Aéreos não Identificados), criado pelo brigadeiro José Vaz da Silva em março de 1969, e que operou até 1972.
Para contextualizar: o AI-5, instrumento que suspendeu direitos civis e formalizou o poder discricionário e ditatorial do regime militar, havia sido decretado em dezembro de 1968. A Operação Bandeirante (Oban), esquema de repressão política (incluindo tortura e assassinato) integrado por militares e policiais, no estado de São Paulo, foi criada em julho de 1969. Em outubro de 1969, Emilio Garrastazu Médici, o mais sanguinário dos ditadores militares, seria “eleito” presidente do Brasil. Em 1970, Dilma Rousseff foi presa e torturada. Em 1972, Miriam Leitão, grávida, também foi detida e torturada por militares.
Leitão e Rousseff representam apenas dois casos – exemplares por serem mulheres que, depois, viriam a ter carreiras de destaque – entre milhares: de acordo com Brasil: Nunca Mais, dos mais de 7 mil brasileiros que, detidos pela repressão entre 1964 e 1979, chegaram a ser apresentados a um juiz (isto é, não foram “desaparecidos” clandestinamente antes disso), 1.918 denunciaram terem sido torturados. Mais de 80% dessas denúncias concentram-se no período 1969-1974.
Entre os inúmeros que não tiveram a oportunidade de se fazer ouvir em juízo encontra-se o ex-deputado federal Rubens Paiva, assassinado por um agente da ditadura em 1971. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, Rubens Paiva foi preso por integrantes do CISA (Centro de Informação de Segurança da Aeronáutica), órgão que, na mesma época, era uma das fontes que alimentavam o Sioani com informações sobre avistamentos de discos voadores.
Sociedade civil
A despeito (ou talvez por causa) do que ocorria ao seu redor, o brigadeiro Vaz da Silva tinha a esperança de que a caça ao que chamava de “objetos aéreos não identificados” (OANIs) pudesse unir militares e sociedade civil, galvanizando “a mocidade”. No Primeiro Boletim do Sioani, assinado pelo militar e que representa uma espécie de manifesto de lançamento do órgão, lemos:
“A juventude será mobilizada em torno desse assunto, que poderá dar origem a uma verdadeira CRUZADA. Universitários e colegiais, com quem estabelecemos contato, sentiram a responsabilidade com que estamos tratando o assunto e se entusiasmaram com a ideia de integração no SISTEMA.
(...)
“Despertaremos, assim, a mocidade para o interesse no estudo da astronomia, da astronáutica, do mundo que aí está nas palpitantes viagens cósmicas...”
Um pouco mais de contexto: em outubro de 1968, meses antes de o brigadeiro Vaz da Silva escrever sobre o entusiasmo de universitários e colegiais em colaborar com as Forças Armadas na pesquisa de discos voadores, mais de 900 estudantes, incluindo a liderança da União Nacional dos Estudantes (UNE), eram emboscados e presos, durante um congresso, por forças policiais.
Da forma como aparece descrita da dissertação de mestrado “A Força Aérea Brasileira e a investigação acerca de objetos aéreos não identificados (1969-1986)”, de João Francisco Schramm (de onde, aliás, vieram os trechos do Boletim Sioani citado acima), a estratégia e a atuação do órgão misturavam uma obsessão kafkiana pela burocracia, uma espécie de senso de “organização secreta” de história em quadrinhos (com a multiplicação de siglas absurdas e a invenção de jargões desnecessários) e um elitismo bacharelesco, mixórdia que parecia condenar a empreitada ao fracasso logo de cara.
As siglas e jargões, em particular, parecem ter saído da cabeça de um dos roteiristas da velha série de TV “Agente 86”. Para além da absolutamente desnecessária sigla “OANI”, somos brindados ainda com Sioani (“Sistema de Investigação”), Cioani (“Central de Investigação”), Zioani (“Zona de Investigação”), Nioani (“Núcleo”), Lioani (“Laboratório”), Tioani (“Transporte”), Rioani (“Rede”), Ioani (“Investigadores”) e Xioani, esta última referente aos “observadores” de OANIs. Falei “Agente 86”? Há algo do antigo seriado do Batman aí também, com a evocação involuntária da batcaverna, do batmóvel, do batsinal...
O elitismo bacharelesco, por sua vez, emerge no critério de triagem dos relatos de testemunhas de atividade OANI, que seriam avaliados de acordo com nível social, moral, educacional e cultural do relatante – e não, digamos, com a solidez da evidência trazida.
“É interessante notar que os fatores de influência que trazem crédito a um depoente não se associam apenas ao seu grau de escolaridade e posição social. Para o Sioani, haveria ainda de serem identificadas qualidades morais”, escreve Schramm em sua dissertação. O pesquisador anota ainda que “seus membros não detinham um treinamento voltado para esse tipo de investigação, tampouco a equipe do Sioani contava com a presença de físicos, astrônomos ou engenheiros aeronáuticos”.
O que fica é a impressão de uma iniciativa voltada mais para buscar histórias extraordinárias contadas por “cidadãos de bem” do que para realmente elucidar alguma coisa: checar credenciais (e também separar os sãos dos “psicopáticos”) tomava precedência sobre avaliar condições meteorológicas, astronômicas, etc. O erro aí, de aceitar indicadores (ainda que altamente preconceituosos, como classe social, estatuto “moral” e nível educacional) de sinceridade – a pessoa acredita no que diz – como indicadores de veracidade – a pessoa está certa no que diz – é óbvio, mas também, infelizmente, muito comum. Não deveria ter lugar em investigações oficiais do que quer que seja.
(Pelo lado dos subversivos, em 1970, exilado na Inglaterra, Caetano Veloso procurava por discos voadores no céu de Londres).
Resultados?
Em artigo para edição de 2009 da revista “Ideias em Destaque”, do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, o coronel da Aeronáutica Antonio Celente Videira diz que o Sioani resolveu mais de 95% dos casos que analisou.
Se real, o número representa uma taxa de resolução próxima à atingida pelo Projeto Blue Book da Força Aérea Americana, que em 1966 determinou que apenas 6% dos avistamentos de óvnis registrados entre 1947 e 1965 seguiam “não identificados”, e que “aparentemente (...) a maioria dos casos assim listados são simplesmente aqueles para os quais a informação disponível não oferece base adequada de análise”. Conclusão que reaparece no mais recente relatório federal dos Estados Unidos sobre Fenômenos Anômalos Inexplicados (UAP), a mais nova iteração da velha sigla UFO:
“... o volume e o caráter não identificado da maioria dos UAPs é uma consequência direta de lacunas de conhecimento operacional. Essas lacunas são resultado direto da insuficiência dos dados (...) Com base na capacidade de resolver os casos até agora, e com um aumento da qualidade dos dados obtidos, a natureza não identificada e supostamente anômala da maioria dos UAPs provavelmente vai se reduzir a fenômenos ordinários”.
Mas a dissertação de Schramm sugere um cenário diverso. Ao analisar os casos descritos no segundo boletim do Sioani, de agosto de 1969, o pesquisador encontra apenas relatos de histórias contadas por testemunhas, sem nenhum tipo de avaliação de evidências, esforço corroborativo ou análise conclusiva. Um dos casos anotados (Número 8) inclui o contato, supostamente no mundo real, de testemunhas com o que parece ser um típico disco voador de Hanna-Barbera, completo com cúpula circular, bojo arredondado, três perninhas e, claro, uma escadinha.
O Sioani foi encerrado em 1972, em meio a uma reorganização administrativa que tirou o brigadeiro Vaz da Silva do comando do que então era a IV Zona Aérea de São Paulo; o novo comandante não tinha, aparentemente, o mesmo hobby. Já a ditadura e seus crimes continuariam até os anos 1980. E seguem impunes até hoje.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)