O Dragão Cientificista contra o Santo Umbigueiro

Apocalipse Now
5 ago 2023
Autor
dragão

 

A palavra “cientificismo” é uma daquelas que pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes – “polissêmica”, como se diz por aí. Há, por exemplo, um sentido filosófico, positivo, adotado por Mario Bunge, que consiste em reconhecer que, na hora de descrever objetivamente o mundo material, “o enfoque científico dá mais resultados do que suas alternativas: tradição, intuição ou instinto (...), tentativa e erro, e contemplação do próprio umbigo”. Além desse, há pelo menos três outros: um pejorativo-caricatural, um pejorativo medieval e um crítico que, no fim das contas, merece consideração séria.

O pejorativo-caricatural é um atalho retórico. Com frequência, um sintoma de preguiça mental: diante de uma crítica ou comentário que tenha base científica, que cite a ciência ou mobilize valores e argumentos de fundamento científico a respeito de um tema qualquer, basta reagir acusando a intervenção de “cientificista” e pronto, a crítica/comentário/argumento está descartada liminarmente (poupando, portanto, o acusador e seus seguidores do trabalho extenuante de analisá-la a fundo) e o pobre crítico, marcado como um “positivista” simplório, digno de pena, pelos séculos dos séculos amém.

O pejorativo medieval é aquele aplicado por quem reage de forma indignada à mera sugestão de que a ciência pode ter algo de relevante a dizer sobre fenômenos tradicionalmente enquadrados como do domínio “do espírito”, “da cultura”, etc. Chamo-o de medieval porque representa, em roupagem contemporânea, o mesmo tipo de atitude dos cardeais que se recusaram a olhar pelo telescópio de Galileu e reconhecer que a Terra gira em torno do Sol, porque as verdades da Bíblia e da tradição já bastavam.

Já o uso crítico correto – que escapa à mera caricatura e ao reacionarismo medieval – da acusação de “cientificismo” faz referência à ideia de que existe algo de essencial ou definitivo na abordagem científica de qualquer evento, objeto, fato ou problema: que os aspectos revelados pela ciência são e serão sempre os mais importantes e a última palavra sobre tudo.

O cientificista, nesse sentido, falha em reconhecer que isso pode ser verdade em alguns casos e em outros, não. Ignora a questão fundamental dos diferentes níveis explicativos: todo fenômeno tem vários aspectos, e a forma correta de abordá-lo depende do aspecto que se mostra mais relevante no momento. Ferramentas adequadas para dar conta de um tipo de preocupação podem ser inúteis ou, pior, produzir resultados aberrantes quando aplicadas fora de contexto.

 

Van Gogh

Há algumas semanas, fui a uma exposição de pinturas de Van Gogh no Metropolitan Museum aqui de Nova York, que reuniu, numa única sala, quadros do grande pintor holandês que normalmente encontram-se espalhados por diversas coleções. O famosíssimo Noite Estrelada, com suas maravilhosas espirais celestes que, a olhos modernos, sugerem distantes galáxias, atraía quase todo o público. Graças a isso, consegui alguns minutos a sós, cara a cara, com uma pintura menos famosa, O Jardim Público. A composição dos elementos e a explosão de cores transmitiam uma euforia melancólica – ou seria uma melancolia eufórica? – que quase me fez chorar.

A ciência teria algo a dizer sobre o quadro? Claro que sim. Da composição química das tintas à neurociência de minha resposta emocional, e provavelmente muito mais. Essas coisas são relevantes? Talvez, dependendo da questão que se busca responder (se o quadro é autêntico, ou como meu cérebro funciona). Eram relevantes para mim nos minutos em que estive praticamente a sós com a pintura? De jeito nenhum. Minha experiência íntima e emocional de O Jardim Público foi apenas uma interação físico-química entre fótons e neurônios? Não há nada de “apenas” nisso aí, muito antes pelo contrário.

 

Umbigo

Acusar de “cientificista” qualquer tentativa de investigar cientificamente algum aspecto do quadro, ou da reação do público a ele, seria um uso pejorativo “medieval” do termo. Um uso pejorativo caricatural seria descartar como irrelevante, a priori, qualquer resultado de uma investigação assim. E um uso correto seria tratar como cientificismo, no sentido crítico, alegações de que tais resultados científicos, uma vez obtidos, esgotam o que se pode dizer sobre a obra, ou tornam todas as demais abordagens irrelevantes.

O que é incorreto e injustificado é tratar como “cientificistas” análises que consideram os resultados da ciência soberanos e inescapáveis exatamente em questões que são legitimamente científicas – por exemplo, quais as tintas que foram usadas na pintura ou, passando a temas mais candentes, se o modelo psicanalítico do inconsciente corresponde aos fatos, ou ainda se a acupuntura tem eficácia superior à de um tratamento placebo. Para perguntas assim, parafraseando Mario Bunge, as ferramentas do método científico funcionam melhor do que a contemplação do próprio umbigo.

Nem todo mundo concorda, claro – há aqueles para quem o umbigo é a autoridade máxima, se não em todas as questões que requerem abordagem científica para ser bem respondidas, ao menos em algumas favoritas privilegiadas. Isso em geral ocorre quando há divergência entre a avaliação do umbigo e a da ciência; quando ambas convergem, a do umbigo raramente é citada e a hierarquia correta, com a ciência em primeiro lugar, aceita de forma tácita.

Convicções formadas por experiência pessoal são difíceis de debelar, mesmo para quem, em abstrato, sabe e reconhece que existem níveis de evidência muito mais significativos. Para complicar, a cultura está saturada de narrativas em que o protagonista vence “confiando em si mesmo” e indo contra toda a lógica e razoabilidade – quem não se lembra de Luke Skywalker desligando o computador de bordo de seu Asa-X e usando a Força para mirar e finalmente atingir o alvo crucial na Estrela da Morte?

Mas heróis dotados de intuição infalível, assim como bilionários fantasiados de morcego e refugiados superpoderosos do planeta Krypton, são peças de ficção. O cientificismo positivo, bungiano, está aí para nos lembrar de que, quando a pergunta requer uma resposta científica, o umbigo é mau conselheiro.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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