Lobo gigante, segunda rodada

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21 abr 2025
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Imagem de divulgação de um dos "lobos gigentes" da Colossal

 

Nas últimas duas semanas a internet tem estado em polvorosa com a notícia da suposta “desextinção” do lobo-terrível, lobo gigante ou Direwolf, pela empresa Colossal Biosciences. Como eu já apontei aqui, não é bem verdade. Hoje, proponho sumarizar alguns pontos importantes. Vamos a eles. 

 

O íbex dos Pireneus

Segundo a CNN, a Colossal Biosciences disse que os seus “lobos” são "o primeiro animal do mundo a ser desextinto com sucesso". Na verdade, tudo depende de como você define “com sucesso”. Como muitas pessoas apontaram, talvez esse título pertença ao íbex dos Pireneus, cujo último espécime, uma fêmea chamada Celia, morreu no ano 2000. Em 2003, usou-se a mesma tecnologia empregada na clonagem da Dolly para gestar um filhote de íbex dos Pireneus em outra espécie de cabra. O genoma nuclear desse filhote era essencialmente igual ao de Celia, então há pouca discussão se ele deveria ser considerado ou não um membro da espécie que havia sido extinta. Infelizmente, porém, o filhote não viveu muito. Como o geneticista Adam Rutherford comentou, em tom jocoso:

“O filhote morreu sufocado, pouco após o nascimento, devido a pulmões malformados, mas viveu por alguns minutos — o que o torna o único caso, em 4 bilhões de anos de história da vida na Terra, de uma espécie que foi extinta duas vezes”.

 

Os animais da Colossal Biosciences

Definitivamente, a empresa não criou animais com um genoma de lobo gigante. A Colossal Biosciences fez 20 edições pontuais (mudanças de “letras” do DNA) espalhadas ao longo de 14 genes, segunda consta em matéria da revista Time. Vale lembrar que os lobos-cinzentos (que emprestaram seu genoma como base) têm cerca de 19.000 genes. Há outro aspecto importante que precisa ser considerado. Os genes são apenas uma porção do genoma. E a parte codificante (usada no processo de síntese de proteínas) é uma fração bastante pequena dos genomas dos eucariotos, como nós. Há regiões de controle dos genes — regiões que ficam fora das regiões que codificam proteínas — e é ponto pacífico que essas regiões estão envolvidas nas diferenças entre espécies. E sabemos muito menos sobre regiões regulatórias do que sobre genes, mesmo para espécie viventes. O que dizer então de espécies extintas?

De maneira bem sucinta, então: Romulus, Remus e Khaleesi são lobos-cinzentos geneticamente modificados. E o número de modificações é muito pequeno.

Lobos são animais com comportamentos sociais complexos, vivem em grupos organizados e estruturados. Essas características são fundamentais para o que entendemos como a natureza de um lobo. No entanto, quando se trata dos lobos gigantes — extintos há mais de 10 mil anos —, pouco se sabe sobre como funcionavam suas dinâmicas sociais. Ainda que a empresa Colossal consiga desenvolver um indivíduo com o genoma completo do Aenocyon dirus, isso não significa que ele apresentará os mesmos comportamentos da espécie original. Genes não agem isoladamente; eles interagem com o ambiente, e é dessa interação que os organismos emergem.

Os fósseis indicam que os lobos gigantes eram sociais, mas já perdemos a chance de observar como essas habilidades eram transmitidas entre gerações. Os animais gerados pela Colossal não têm progenitores da mesma espécie que possam ensinar comportamentos típicos, e não há como saber ao certo se suas ações refletem o modo de vida dos antigos lobos gigantes. Quanto à coloração, existe a possibilidade de que fossem brancos, mas as informações divulgadas até agora apenas apontam essa hipótese — sem confirmá-la.

 

O pré-print

Um desenvolvimento dessa saga é a disponibilização de pré-print sobre o genoma e relações de parentesco do lobo gigante. Um pré-print é uma versão preliminar de um artigo científico que é disponibilizada publicamente antes de passar pela revisão por pares. Vale ressaltar que não há menção a desextinção nesse pré-print, nem aos três lobos-cinzentos modificados.

Modelos que tentam reconstruir a história evolutiva dos canídeos (grupo que inclui lobos, coiotes e outros) mostraram que os lobos gigantes tinham tanto traços parecidos com os lobos modernos quanto uma herança genética mais antiga e distinta. Usando um método computacional para encontrar o melhor cenário possível de mistura genética entre sete espécies de canídeos, os pesquisadores descobriram que modelos simples, com nenhuma ou apenas uma mistura genética entre espécies, não explicavam bem os dados. O modelo que melhor se encaixou nos dados envolvia dois eventos de mistura genética e teve um bom suporte estatístico.

Alguns trechos do manuscrito são importantes de destacar (e recomendo que você compare o texto abaixo com o conteúdo gráfico da figura 3 do pré-print para melhor entendimento):

“Esse modelo identificou que os lobos gigantes receberam uma grande parte de sua ancestralidade (~39%) de uma linhagem que se agrupa com os canídeos sul-americanos, enquanto a ancestralidade restante (~61%) é atribuída a uma linhagem irmã dos dholes, coiotes e lobos-cinzentos”.

De forma mais específica:

“O lobo gigante do final do Pleistoceno descende de uma linhagem de canídeos que surgiu após a mistura de duas linhagens: uma linhagem ao longo do ramo que deu origem aos canídeos sul-americanos (subtribo Cerdocyonina), após sua divergência dos chacais africanos e de outros canídeos semelhantes a lobos (subtribo Canina), e uma linhagem de canídeo semelhante a lobo derivada mais recentemente, que divergiu após o surgimento da linhagem do cão-selvagem-africano (Lycaon) (Figs. 3, 4C)”.

Ainda segundo o pré-print, os pesquisadores também foram acessar algumas adaptações evolutivas do lobo gigante a nível dos genes. O time reporta:

“Identificamos vários genes no genoma do lobo-terrível que podem ter contribuído para uma de suas principais características evolutivas: seu porte avantajado”.

E mais adiante:

“Também encontramos diversos genes sob seleção diversificadora episódica nos lobos gigantes, anotados como relacionados ao desenvolvimento de células germinativas, função dos gametas e estrutura dos tecidos reprodutivos, o que pode ter contribuído para uma biologia reprodutiva distinta daquela observada em canídeos semelhantes a lobos”.

Não há qualquer menção à coloração do lobo gigante, contudo.

 

Propaganda é a alma do negócio

É difícil não ver toda essa movimentação da empresa como uma estratégica de marketing. A Time exibiu Remus em sua capa, com a palavra “extinct” cortada. Ainda na capa consta o seguinte:

“Este é Remus. Ele é um lobo gigante. O primeiro a existir em mais de 10 mil anos. Espécies ameaçadas podem ser mudadas para sempre”.

A manchete? “O retorno do lobo gigante”.

A Time não foi o único veículo de mídia a vender essa ideia, embora ela não sobreviva ao escrutínio. Mas, suspeito, todo esse alvoroço tem mais a ver com dinheiro do que com trazer espécies extintas de volta. Com tantas espécies disponíveis, a empresa escolheu o lobo gigante. Não acho que o envolvimento de George R. R. Martin, criador das "Crônicas de Gelo e Fogo", seja por acaso. Muito menos aquela foto dele segurando um dos lobos.

Tenho muitas divergências intelectuais com o biólogo evolutivo Jerry Coyne, mas eu acho que ele tem razão no comentário a seguir: “Ressuscitar espécies extintas é um projeto mais cosmético do que verdadeiramente genético, projetado para criar animais ‘uau’ que entretenham pessoas ricas e impressionem crianças”.

Riley Black também fez uma crítica muito certeira em seu artigo na Slate:

“Fatos, como amargamente aprendemos nas últimas duas décadas, têm pouco peso no momento. O marketing extremamente questionável da Colossal em relação à sua engenharia genética já levou Doug Burgum, o secretário do Interior pró-petróleo de Donald Trump, a insinuar que a lista de espécies ameaçadas será coisa do passado, se pudermos simplesmente renovar e ressuscitar espécies à vontade. ‘O status quo está mais focado na regulamentação do que na inovação’, publicou ele no X. Dizer que a Colossal representa o futuro da conservação é entregar aos ofensivamente ricos a responsabilidade de decidir o futuro da vida na Terra. Qualquer número de danos e agressões ambientais pode ser justificado se acreditarmos que tudo pode ser restaurado ao seu estado original com um pouco de inovação”.

É um caminho perigoso demais, e é por isso que me entristece muito quando vejo entusiastas da ciência, ou mesmo cientistas, agirem de forma tão ingênua perante uma campanha descarada de marketing.

 

A maior das questões

Dê uma olhada nos autores dos pré-print. Sim, você não está louco, George R. R. Martin é um dos autores. Portanto, cabe a pergunta: o que o Martin está fazendo nesse artigo ao invés de terminar "The Winds of Winter"?

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

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