Poltergeist aos 40 anos

Apocalipse Now
1 out 2022
Autor
poltergeist

 

Para relaxar num período de tensão pré-eleitoral, o que poderia ser melhor do que um velho filme de terror? Semana passada fui assistir a uma sessão especial de Poltergeist, o clássico de assombração escrito por Steven Spielberg e dirigido por Tobe Hooper (ou Spielberg?). Agora em 2022 faz quarenta anos que o filme foi lançado, daí a exibição especial.

Filmes de casa mal-assombrada já não eram exatamente novidade em 1982, com os clássicos The Haunting (1963), de Robert Wise (Desafio do Além, no Brasil), e The Legend of Hell House (1973), de John Hough (A Casa da Noite Eterna, entre nós), marcando os pontos altos do gênero nas décadas anteriores.

O que destaca Poltergeist dos antecessores é a decisão de inovar logo no ponto de partida: em vez de um grupo de estranhos (investigadores, herdeiros, hóspedes) entrando numa velha casa assustadora, de má fama e de maus bofes, temos uma família amorosa vivendo numa casa nova – bonita, moderna, recém-construída –, morada que, de repente, revela um “outro lado” perturbador.

Com isso, o filme lança um esquema original – família assustada em imóvel de vizinhança suburbana idílica que chama primeiro a polícia, depois um “cientista” do paranormal, depois um médium – que viria a se tornar um clichê em si, até degenerar nos reality shows de exorcismo doméstico que infestam os canais de streaming.

Esse esquema, no entanto, não nasceu apenas da imaginação do roteirista Spielberg. Embora o filme, felizmente, não carregue a famigerada descrição “baseado em fatos reais”, há razoável consenso de que a inspiração da história foi um caso “verdadeiro” de poltergeist que havia chegado às manchetes 24 anos antes.

 

Espírito inquieto

“Poltergeist” é uma palavra alemã que costuma ser traduzida como “espírito barulhento”. Geralmente é aplicada a supostos fantasmas que pregam peças nas pessoas, movendo ou arremessando objetos, ou produzindo ruídos sem origem clara. No romance de crime impossível de 1934 “The Eight of Swords”, o autor John Dickson Carr cria parte de seu mistério com um suposto poltergeist que teria arremessado uma garrafa de tinta na cabeça de um padre.

No caso específico que inspirou o filme, durante cinco semanas, no início do ano de 1958, a família do ex-sargento do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos e veterano da 2ª Guerra Mundial James Herrmann foi, supostamente, visitada por um desses brincalhões espirituais.

Os Herrmanns – James, de 43 anos, que após deixar as Forças Armadas se tornara executivo de uma companhia aérea; a esposa Lucille, de 38, e os filhos pré-adolescentes Lucille, 13, e James “Jimmy” Jr., 12 – viviam numa casa suburbana no pequeno município de Seaford, que na época dos acontecimentos tinha menos de 15 mil habitantes, localizado perto da cidade de Nova York.

O espírito, apelidado “Popper”, tinha o hábito de fazer saltar (“pop out”, daí o nome escolhido – nenhum parentesco com o filósofo Karl) tampas de garrafas. Qualquer tipo de garrafa: xampu, produtos de limpeza, até um frasco de água benta (a família era católica). Também arremessava pequenos objetos pelo ar. Ao todo, foram registrados 67 eventos “misteriosos” atribuídos a Popper. A polícia foi chamada, depois parapsicólogos. Figuras de diferentes filiações religiosas visitaram a casa, incluindo um padre católico que disse à imprensa que iria tentar um exorcismo. Inúmeros jornalistas interessaram-se pelo fenômeno. A revista Life e o jornal The New York Times cobriram o caso, assim como a revista Time, despertando a atenção de todo o país para o enigma da família Herrmann.

Até mesmo cientistas gabaritados apareceram para oferecer hipóteses mirabolantes: o físico Robert E. Zider, que se apresentou como especialista em partículas de alta energia do Laboratório Nacional Brookhaven, apareceu um dia com uma forquilha de madeira de salgueiro e começou a andar ao redor da casa. Segundo o NY Times, Zider usou a forquilha para mapear campos energéticos causados por fluxos de água subterrânea. A Time resumiu a hipótese do físico dizendo que ela se referia a um “bizarro campo magnético” produzido pela suposta água subterrânea.

Dos três parapsicólogos que investigaram o caso no local, dois (William Roll e J.G. Pratt, trabalhando em conjunto) deram declarações e publicaram trabalhos afirmando que o poltergeist de Seaford era produto de “psicocinese espontânea recorrente” (RSPK, na sigla em inglês), que seriam breves “explosões” inconscientes de energia mental, capazes de pôr pequenos objetos em movimento. A fonte do RSPK foi rastreada ao menino Jimmy, que sempre parecia estar por perto quando algum evento anômalo ocorria.

O terceiro parapsicólogo, Carlis Osis, também atribuiu o poltergeist a Jimmy, mais sua hipótese foi mais parcimoniosa (e plausível): o menino estava causando os distúrbios de propósito, abrindo e derrubando garrafas quando ninguém estava olhando ou arremessando objetos pela sala enquanto o resto da família estava com a atenção fixada na televisão.

Dado que adolescentes traquinas são documentados desde o início dos tempos e RSPK é algo cuja existência jamais foi comprovada, não é difícil estabelecer qual a melhor explicação. Para completar, o mágico cético Milbourne Christopher também avaliou relatos detalhados do caso (James Herrmann Sr. o proibiu de visitar o local) e concluiu que Jimmy poderia ter produzido todos os efeitos observados na casa, valendo-se de truques simples.

Além de mais parcimoniosa e de não violar nenhuma lei da natureza, a explicação de Osis e Christopher é psicologicamente plausível: James Sr. era um pai duro, que segundo testemunhas tratava os filhos como se fossem soldados em sua tropa dos Fuzileiros, e Jimmy guardava um profundo ressentimento disso. Curiosamente, como notam os autores Robert E. Bartholomew e Joe Nickell no livro “American Hauntings”, essa versão quase não apareceu na mídia, que preferiu promover a versão do mistério permanente e dos cientistas “aturdidos”.

 

O filme

Poltergeist tem o mesmo ponto de partida do caso real, a família suburbana de um profissional bem-sucedido, mas logo mergulha numa completa fantasia. Assim como outros filmes de terror da mesma época (por exemplo, The Thing – Enigma do Outro Mundo, de John Carpenter), tem momentos de susto quer dependem de efeitos grotescos de maquiagem e manipulação de bonecos monstruosos. E o final não deixa margem para dúvidas, mistérios ou ceticismo: a casa é literalmente engolida por forças sobrenaturais (e que ninguém reclame de spoilers de um filme de 40 anos).

Existe uma polêmica recorrente sobre até que ponto Spielberg, além de escrever o roteiro, interferiu na direção do filme. Ele estava legalmente impedido de assinar Poltergeist como diretor por causa de seu contrato para fazer ET, mas é fato conhecido que visitava o set de Tobe Hooper quase todos os dias, e o filme tem uma atmosfera spielberguiana – parece uma mistura de Contatos Imediatos de 3º Grau com Tubarão, se o tubarão fosse uma alma de outro mundo.

Os argumentos desse lado apontam ainda que a película é um ponto fora da curva na filmografia de Hooper (que faleceu em 2017); ele nunca mais (ou antes) fez algo nesse estilo (alguém até poderia dizer, “algo tão bom”). Seu outro filme mais famoso é The Texas Chainsaw Massacre, ou O Massacre da Serra Elétrica.

Também dá para acrescentar que o filme gira em torno do imperativo ético de proteger e resgatar “a inocência” (no caso, a menina Carol Anne, capturada pelas almas penadas) que, como Gary Arms e Thomas Ridley apontam, em ensaio para o livro “Stephen Spielberg and Philosophy”, parece ser um tema comum da filmografia spielberguiana.

Do outro lado, como escreve o crítico John Kenneth Muir em seu enciclopédico guia “Horror Films of the 1980s”, Poltergeist tem uma veia satírica – lança um olhar cínico sobre a suposta “perfeição” da vida suburbana e denuncia a cultura yuppie de busca do lucro e da ascensão profissional a qualquer preço – que parece fora de lugar na obra de Steven Spielberg. Spielberg, nota Muir, é sincero. Quando ele quer usar um filme para criticar alguma coisa, ele critica, sem recorrer a subtextos.

Já Hooper tinha uma queda pelo humor dissimulado. A abertura do filme, com a TV tocando o Hino Nacional americano, e o fato de que os fantasmas ou demônios depois vêm pela TV, acessam a realidade através da TV, é o tipo de crítica velada (ao imperialismo, ao patriotismo, ao papel da mídia) que não se espera de um filme de Spielberg.

Mesmo a questão da inocência, tão cara a Spielberg, é sutilmente subvertida: a personagem da pequena Carol Anne adere tão rigidamente ao estereótipo americano da “criancinha fofinha bonequinha perfeitinha” (e, vale a pena notar, é a única pessoa loira de olhos azuis da família) que chega a, em alguns momentos, parecer sinistra. Diabólica, até.

Esta foi a primeira vez que vi Poltergeist na tela grande. Todas as outras haviam sido (ironicamente, percebo agora) na televisão. O filme merece ser assistido assim, na sala escura do cinema. Sua mensagem final – provavelmente deixada por Hooper – de que a ilusão de sucesso pessoal e material do “cidadão de bem pai de família” muitas vezes se ergue sobre pilhas de cadáveres de gente esquecida e abandonada é, enfim, uma que não custa nada lembrar neste dia.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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