O mestre da picaretagem

Apocalipse Now
17 set 2022
Autor
gigante de Cardiff

 

O empresário circense americano P. (Phineas) T. (Taylor) Barnum (1810-1891) é hoje mais lembrado por uma frase que lhe é atribuída (mas que talvez nunca tenha dito), “nasce um otário a cada minuto”. Também empresta o nome ao Efeito Barnum, o curioso fenômeno psicológico em que pessoas tendem a receber afirmações vagas e lisonjeiras (“às vezes você se dedica demais aos outros e esquece de se cuidar”) como se fossem revelações profundas sobre si mesmas.

Esse efeito é a uma das principais fontes do aparente “espantoso insight espiritual” de médiuns, astrólogos e afins.

Alguns autores atribuem a conexão entre o efeito psicológico e o nome do empresário ao dito apócrifo sobre a taxa de reprodução dos otários, mas outros preferem associá-la ao princípio que Barnum aplicava a seu museu de curiosidades de Nova York e, depois, ao circo que montou: ter sempre “alguma coisa para cada um” – isto é, não importam os gostos e preferências dos membros do público, todos sempre encontrariam (ou deveriam poder encontrar) algo de divertido e interessante em seu estabelecimento.

Mas Barnum foi muito mais do que isso: um precursor da indústria cultural, um filósofo da “ética” da fraude (ninguém é realmente vítima de fraude ao pagar por uma coisa e receber outra, caso se divirta no processo, dizia ele, absolvendo a si mesmo e articulando o argumento central de gerações de embusteiros) e, papel que o torna especialmente relevante nos dias de hoje, um mestre absoluto – intuitivo, visceral – da manipulação da mídia e da opinião pública.

Não lhe importava que os jornalistas o chamassem de “Rei da Picaretagem” ou que as exibições de seu museu fossem denunciadas como fraudulentas, se isso aumentasse a exposição pública de seu nome, alimentasse o interesse do cidadão comum e estimulasse a venda de ingressos.

 

Autodenúncia

Uma técnica utilizada por Barnum, seguidas vezes, era a de denunciar-se a si mesmo. Um de seus primeiros espetáculos foi a promoção de uma senhora idosa negra, Joice Heth (c. 1756-1836) como a “babá de George Washington”, viva aos 160 anos de idade. Quando o público começou a diminuir, o empresário enviou cartas anônimas aos jornais “denunciando” que a mulher, na verdade, era um autômato com pele de borracha, esqueleto de osso de baleia, movida por molas.

Os detalhes da falsa denúncia não eram puro delírio, nem fruto do acaso. Heth estava no palco mesma época em que o famoso autômato jogador de xadrez vinha sendo exibido nos Estados Unidos, então a ideia de uma boneca mecânica com certeza mexeria com o interesse das pessoas. A carta gerou polêmica, e atraiu o público de volta.

O biógrafo Neil Harris elabora: “Foi no tour de Joice Heth que Barnum pela primeira vez se deu conta de que o exibidor não precisa garantir veracidade; só precisava ter probabilidade e construir dúvida. O público seria mais animado por controvérsia do que por certeza. A única necessidade era manter o assunto na imprensa. Qualquer coisa era preferível ao silêncio”.

O mesmo ciclo se repetiu no caso da Sereia de Fiji, um artefato grotesco construído a partir da união dos restos mumificados de um macaco e de um peixe. Comparsas contratados por Barnum para agitar a opinião pública, além de jornalistas e membros insuspeitos do público, digladiavam-se na imprensa disputando a “autenticidade” da relíquia, e criando um tipo de “audiência participativa ampliada” que não estaria fora de lugar nas redes sociais do século 21. Como escreve o historiador James W. Cook, em sua introdução a uma coletânea de textos de autoria de P.T. Barnum:

“Embora muitos espectadores usassem a sala do museu como principal área para avaliar a autenticidade da sereia, um público secundário participava de longe, analisando informes contraditórios por meio de uma rede crescente de jornais baratos que eram, eles mesmos, uma inovação nos anos 1830. Desse modo, a Sereia de Fiji ajudou a criar e construir tanto um novo tipo de audiência (conectada pelas fontes impressas) e um novo tipo de curiosidade popular (eternamente excitada, jamais satisfeita)”.

 

O fenômeno é de quase 200 anos atrás, mas basta trocar “fontes impressas” por “digitais” para ver que as inovações trazidas por Barnum seguem firmes conosco. À solta no Twitter, o empresário hoje faria mais estrago do que Elon Musk, e certamente seria muito mais divertido.

 

Descoberta bíblica

Talvez o ponto alto da capacidade de Barnum de manipular o público e faturar em cima da própria (má) reputação tenha sido atingido no caso do duelo dos gigantes petrificados.

A história do Gigante de Cardiff (cuja "exumação" ilustra este artigo) merece ser contada num texto próprio, já que é pitoresca em si e sugere algumas reflexões interessantes sobre percepção pública da ciência e divulgação científica. Enquanto a oportunidade não chega, um resumo: em outubro de 1869, um gigante de pedra de 3,11 metros e pesando 1,3 tonelada foi descoberto e desenterrado numa fazenda da cidade de Cardiff, interior do estado de Nova York, e “especialistas” locais – médicos e intelectuais da área – logo se dividiram entre declarar o achado um fóssil humano ou uma estátua, deixada por algum povo antigo.

Na verdade, claro, era uma estátua de lavra bem recente: parte de um esquema imaginado por um trapaceiro, chamado George Hull, para ridicularizar interpretações literais da Bíblia (principalmente o versículo “Naqueles dias, e por algum tempo depois, havia na Terra gigantes” – Gn 6:4) e enriquecer no processo.

O dono da fazenda onde o gigante foi “encontrado”, cúmplice de Hull, poucos dias depois já estava cobrando ingressos de quem desejasse ver o “gigante petrificado” (enquanto sua esposa vendia biscoitos e bebidas aos visitantes) e estava em negociações com empresários interessados em comprar a peça para exibi-la em salões, museus, etc.

Barnum fez um lance generoso por uma cota de 25% dos lucros do artefato (US$ 50 mil em dinheiro da época, ou quase US$ 1 milhão hoje), mas a oferta foi recusada. Então, dirigiu-se a um escultor e pagou US$ 100 (menos de US$ 2 mil, em valores atualizados) por uma réplica.

 

O duelo dos gigantes

Antes de exibir a cópia em seu museu, P.T. Barnum inundou Nova York com anúncios: “É uma Estátua? É uma Petrificação? É uma Fraude Estupenda? É o vestígio de uma Raça Antiga?” O material publicitário era deliberadamente ambíguo – não afirmava com todas as letras que se tratava do “verdadeiro” gigante de Cardiff, mas também não explicava, de forma clara, que não passava de uma cópia. A confusão só aumentou o zunzunzum na imprensa: afinal, quantos gigantes haveria? Um? Dois? Vários? Algum seria autêntico?

Os proprietários do gigante original (Hull e seus cúmplices haviam conseguido passar o mico adiante) entraram na Justiça para proibir a exibição do que viam como uma fraude e imitação, mas o juiz que leu o caso decidiu que só fecharia a mostra de Barnum se o gigante de Cardiff comparecesse pessoalmente à corte e “jurasse ser genuíno, uma petrificação legítima”.

Os proprietários então denunciaram que o gigante de Barnum havia sido feito a partir de um molde de gesso obtido ilegalmente a partir do original. O Rei da Picaretagem respondeu prometendo fazer uma doação substancial a uma instituição de caridade se alguém conseguisse provar que seu gigante era uma cópia de gesso. O noticiário em torno da disputa só fez aumentar a procura pelo Museu Americano de P.T. Barnum.

No fim, seu gigante acabou gerando muito mais receita – ao menos, em termos de venda de ingressos – do que o original. Quando o interesse do público pela novidade dos homens petrificados começou a diminuir e as evidências de fraude, a chamar cada mais atenção, Barnum ainda espremeu alguns últimos dólares da atração ao comprar uma segunda réplica e montar uma exibição “dos dois gigantes”, insinuando (sem afirmar) que havia reunido na mesma sala o gigante de Cardiff original e seu maior rival.

 

A grande lição

Phineas Taylor Barnum demonstrou que uma mentira pode seguir sendo lucrativa para o mentiroso mesmo depois de revelada – que, de fato, controlar o momento e o modo da revelação deve ser parte essencial do modelo de negócio do picareta bem-sucedido. Que controvérsias fabricadas açodam o interesse público e sustentam marcas, tanto pessoais quanto comerciais e institucionais. Que picaretas tendem a se devorar entre si.

Nada disso é exatamente novidade, mas é o tipo de informação que costuma só circular entre os que hoje em dia costumam receber o nome de “atores mal-intencionados” (expressão que sugere gente de teatro tentando montar uma peça muito ruim, mas que se há de fazer?). Pô-la ao alcance das pessoas, ainda mais num momento em que o “público secundário” – aquele que se envolve com a polêmica de longe, de forma mediada – é, potencialmente, toda a Humanidade, é necessário.

Barnum dizia que tanto céticos quanto crédulos ajudavam-no a enriquecer. Certa vez, ele abrigou, no subsolo de seu museu, um enorme tanque de água onde, supostamente, vivia uma baleia. Em um de seus textos, escreve que ganhava dinheiro tanto das pessoas que queriam ver a baleia quanto das que acreditavam que o que estava no tanque era uma espécie de enorme balão, inflado periodicamente por algum mecanismo, e esperavam “provar” isso por meio de observação cuidadosa.

Uma lição tremenda que se pode tirar disso é que é perda de tempo – inútil, patético, contraproducente – dar combate a um picareta notório no campo escolhido por ele e dentro de regras definidas por ele. Não se joga pôquer com um notório trapaceiro na casa dele, cercado pelos amigos dele, na mesa dele, usando o baralho dele e tratando as cartas que caem das mangas dele como detalhes irrelevantes. Soa como o mais puro bom senso, mas é incrível como o princípio é violado o tempo todo, na ciência, nas relações interpessoais, no comércio e – claro – na política.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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