A crença em teorias de conspiração tem sido identificada, por estudiosos e comentaristas, como um grave problema político e social do mundo moderno, parte do conjunto de fenômenos que inclui a chamada “infodemia” (disseminação indiscriminada de alegações, sem distinção entre o verdadeiro e o falso), “fake news” (disseminação de alegações falsas numa roupagem que faz com que pareçam verdadeiras) , “pós-verdade” (desprezo ideológico pela distinção entre verdadeiro e falso) e uma das causas do clima de crescente polarização e radicalização política.
É no mínimo curioso, portanto, que o maior levantamento já feito até agora sobre a prevalência de crenças conspiratórias na população dos Estados Unidos e de alguns países europeus mostre que a crença em conspirações específicas não tem aumentado de modo significativo ao longo do tempo. Em outras palavras, o mundo ocidental, a despeito das aparências, não tem ficado mais paranoico; ao menos, não de um modo que possa ser medido em pesquisas de opinião pública.
A fração de americanos que (por exemplo) acredita que John Kennedy foi vítima de uma grande conspiração foi de 50%, em 1966, para 56% em 2021. Já a parcela que acredita que a morte de Osama bin Laden foi forjada passou de 11% em 2011 para 5% em 2021. No cômputo geral, dentro de um “cardápio” de 37 teorias de conspiração, o efeito líquido da variação de crença, para cima ou para baixo, fica muito perto de zero e é, de fato, negativo.
Como assim?
Os autores do estudo (entre eles, o cientista político Joseph Uscinski, um dos principais estudiosos do assunto e autor de vários livros sobre o tema) também ficaram surpresos com o resultado e, no artigo em quer descrevem seu trabalho, pedem encarecidamente que “se tenha cuidado ao tirar grandes conclusões de nossos achados. Nosso estudo não deve ser usado para embasar alegações sobre, ou gerar desculpas para, elites políticas que usam teorias de conspiração como arma”.
Minha solução particular para o paradoxo colocado por Uscinski e colegas – vemos teorias de conspiração poluindo o debate público como nunca antes, mas no geral as pessoas não acreditam mais em conspirações, hoje, do que acreditavam em 1966 – é a de que a variável crucial não é quanta gente aceita a realidade de conspirações (embora, claro, esse seja um dado relevante) mas sim, o grau de urgência e de agência que a teoria implica.
Assim: se você acredita que a Nasa mentiu sobre o pouso de astronautas na Lua, não há muito que se possa fazer a respeito – exceto, talvez, vídeos no YouTube ou pedidos de liberação de documentos com base no FOIA, a Lei de Acesso à Informação dos Estados Unidos. Já se você acredita que “a esquerda” mantém criancinhas em cativeiro no subsolo de uma pizzaria, para extrair hormônios de seus corpinhos indefesos e praticar pedofilia, você pode pegar um fuzil e invadir a pizzaria para resgatá-las.
Ou, se você acredita que a COVID-19 é uma mentira inventada pela indústria farmacêutica, você pode se recusar a receber vacina. Se você acredita que determinado candidato à Presidência da República é um agente da conspiração comunista global, você pode votar no outro cara. E assim por diante.
Minha hipótese é de que o impacto político e social de uma teoria de conspiração depende menos do número de aderentes (embora, é óbvio, uma teoria com zero adeptos não vá fazer muito estrago) e mais do tipo de “consequência lógica”, de comportamento ou de “obrigação moral” que a adesão sugere.
Embora nenhuma teoria de conspiração seja perfeitamente inócua (algum dia, algum negacionista do Programa Apollo pode acabar mandando uma carta-bomba para a Nasa, e toda fantasia conspiratória colabora para corroer a confiança pública), há conspirações com cara de poltrona e conspirações com cara de passeata. O mundo moderno provavelmente está sofrendo de um excesso do segundo tipo.
Identidade
Existe ainda a ideia, bem prevalente, de que existe algo intrínseco à psicologia das pessoas mais conservadoras ou “de direita” que as torna mais suscetíveis a fantasias conspiratórias. Outro trabalho recente que tem Uscinski entre os autores enfraquece muito essa hipótese.
Também com base em pesquisas de opinião e em alguns experimentos (por exemplo, apresentando a mesma teoria geral, mas mudando a parte culpada, que poderia ser “os banqueiros” ou “as elites esquerdistas”), mostrou que afinidade ideológica não é vacina contra acreditar em conspirações, mas um filtro que seleciona quais conspirações vão soar mais plausíveis.
Os autores reconhecem e citam o corpo de literatura em psicologia que liga características e atitudes mais “à direita” no espectro político a um certo “modo conspiratório” de pensar, mas sugerem que os “estilos mentais conspiratórios” são mais diversos do que a pesquisa prévia sugeria – e abarcam mentalidades paranoicas com afinidade pela esquerda.
Em termos globais, a pesquisa mostra que uma mesma conspiração pode ser popular na direita ou na esquerda, dependendo do país. Segundo as pesquisas de opinião citadas no artigo, a falsa noção de que ao aquecimento global é uma farsa é “de direita” nos Estados Unidos, mas “de esquerda” no México, na Nigéria e na Turquia.
Questões de contexto pesam mais do que identidade política, algo que já estava ficando claro, por exemplo, na convergência entre espiritualidade “new age”, em geral identificada com a rejeição ao conservadorismo, e teorias conspiratórias nascidas na direita.
Elite? Que elite?
Estudo de autores europeus, publicado ano passado, propõe uma nova dimensão para analisar teorias de conspiração, e uma em que a distinção esquerda-direita talvez volte a fazer (algum) sentido: se a teoria é “de cima para baixo” (os conspiradores malignos são as elites) ou “de baixo para cima” (se são as minorias). As teorias “de baixo para cima” têm aceitação maior na direita do que na esquerda, enquanto as “de cima para baixo” têm, segundo os autores, uma prevalência em “U”: são aceitas por extremistas nos dois campos.
O fato de que tanto a extrema-esquerda quanto a extrema-direita aparecem predispostas a aceitar teorias que sugerem que “as elites querem nos ferrar” traz à tona a questão de quem, afinal, são essas “elites” ou, mais a propósito, quem os extremos identificam como “elite”.
Lembremos que a extrema-direita nos Estados Unidos mantém uma profunda desconfiança em relação ao “Estado profundo”, os funcionários públicos de carreira e as “elites liberais”. Aqui no Brasil, a paranoia direitista em relação às cortes superiores (STF, TSE) é bem documentada. Também, a rejeição de setores da esquerda nacional a pautas vistas como imposição das “elites globais”, como a da preservação ambiental, é conhecida.
A forma como a imprensa corporativa (isto é, os veículos tradicionais, mantidos por grupos empresariais bem estabelecidos) foi vista e tratada pelos dois lados do espectro político nacional, ao longo deste século, também é sintomática: de “imprensa golpista” (quando a esquerda ocupava o governo federal) a “extrema-imprensa” (agora que a extrema-direita encastelou-se no Planalto).
Todos esses resultados indicam que teorias irracionais de conspiração sempre estiveram conosco, que a fração da sociedade suscetível a elas é relativamente estável, e que a aceitação de uma ou outra teoria depende mais de afinidades político-ideológicas e motivações afetivas do que de predisposições psicológicas inatas (o fato de nem todo militante político ser também um conspiracionista sugere, no entanto, a existência de outros complicadores, para além da paixão partidária).
Indicam também – e aí é conclusão das vozes na minha cabeça –, que as teorias de conspiração atuais são mais perigosas, influentes e preocupantes porque, diferentemente dos delírios “clássicos” sobre John Kennedy e discos voadores, incentivam seus adeptos a adotar cursos de ação urgentes, imediatos e exagerados que põem a sociedade e a democracia em risco.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)