Na mesma semana em que o Telescópio Espacial James Webb apresentava suas primeiras imagens ao público (a imagem acima é do lançamento do telescópio ao espaço), visitei o Centro Espacial Kennedy da Nasa, na Flórida, onde fica o museu construído ao redor do último ônibus espacial a ser aposentado, o Atlantis, que fez seu voo final em 2011. Passei por baixo e ao lado na velha nave, suspensa no meio de um enorme galpão, com lágrimas nos olhos.
O complexo turístico do Kennedy contém diversas atrações, incluindo atividades educativas voltadas especialmente para crianças. Lá também estão preservadas algumas das cápsulas usadas pelos primeiros astronautas americanos. Observar de perto o tamanho minúsculo desses veículos é desconcertante: aqueles homens fundamentalmente se deixavam trancar em baús de contorcionismo que depois eram amarrados sobre torres de explosivos – que, obviamente, explodiam, lançando o baú e seu ocupante para fora da atmosfera.
Minha carreira como jornalista e comunicador de ciência esteve, durante mais de uma década, intimamente ligada à exploração espacial. Eu já trabalhava com conteúdo para internet em 1997, quando o robô Sojourner, direto de Marte, fez as primeiras postagens online originadas em outro planeta: fotos da superfície marciana.
Já naquela época, a web apresentava uma característica meio anárquica e galhofeira que a distinguia bastante das demais mídias e que, então, parecia apenas lúdica – mas que, nos anos seguintes, degeneraria em negacionismo e fake news.
Enquanto meus colegas “do impresso” (o pessoal preocupado com o jornal do dia seguinte) podia se dar ao luxo de fazer uma cobertura “limpa”, comemorando o primeiro pouso bem-sucedido em Marte desde 1976, as fantásticas imagens e explicando a ciência, eu era obrigado a complementar esse trabalho com discussões de fotos falsificadas, disseminadas online, em que a anarquia e a galhofa da nova mídia levavam alguns espertinhos a usar software de manipulação de imagens para incluir objetos estranhos e misteriosos – cilindros, por exemplo – na paisagem marciana, numa brincadeira para “insinuar” a descoberta de vida inteligente no planeta vermelho.
Ainda em 1997, tive de lidar com outro incêndio online que o pessoal “do impresso” pôde se dar ao luxo de ignorar (era uma época em que, para o bem ou para o mal, o que acontecia na internet tendia a ficar na internet): o movimento “Stop Cassini”, uma mobilização de base pseudocientífica que pretendia impedir o lançamento da sonda espacial Cassini rumo a Saturno, insuflando temores (infundados) de que o combustível nuclear necessário para manter o equipamento funcionando na vizinhança do planeta dos anéis, tão longe do Sol, representaria um risco para o meio ambiente e a saúde pública, caso houvesse um acidente no lançamento.
Bom, o movimento fracassou e a Cassini cumpriu uma missão gloriosa de exploração que durou quase 20 anos. Mas lá atrás, em 1997, a Nasa teve de produzir resmas de documentação e explicações sobre a segurança da sonda, e se virar para combater uma das primeiras grandes campanhas de desinformação organizadas via internet.
Numa prefiguração de muito do que viria depois (como o movimento antivacinas, por exemplo), “Stop Cassini’ não era, em espírito, a manifestação de uma dúvida sincera, um questionamento honesto e transparente em busca de respostas honestas e transparentes, mas uma conclusão dada a priori – a sonda era uma ameaça – defendida com unhas, dentes e quaisquer truques retóricos e falácias que viessem a ser necessários.
Odisseia marciana
Por quase 15 anos, acompanhei, como jornalista, boa parte do que se fez em termos de exploração espacial, principalmente no que se refere a Marte. Depois do Sojourner vieram os robôs Spirit, Opportunity (2003), a sonda estática Phoenix (2009); as sondas orbitais Mars Reconnaissance Orbiter (2006), com sua fantástica câmera HiRise, fonte de algumas das mais estonteantes imagens interplanetárias, e Mars Odissey (2001); além da europeia Mars Express (2003).
Também acompanhei diversos fracassos, como a Fobos-Grunt (2011), da Rússia, que sequer conseguiu deixar a órbita terrestre; o robô britânico Beagle (2003), que provavelmente se espatifou em Marte, numa queda descontrolada, mesmo destino do americano Mars Polar Lander (1999); o tragicômico caso da sonda Mars Climate Orbiter (1998), que se perdeu porque parte do software usado para controlá-la interpretava dados como se viessem em unidades do sistema anglo-americano (pés, libras), mas outra parte interpretava os resultados gerados pela primeira como se fossem valores do sistema métrico (quilogramas, metros, etc.).
Segui ainda os esforços épicos do Japão para tentar salvar sua sonda Nozomi, lançada em 1998. Depois de apresentar defeito numa válvula de combustível, o satélite se viu incapaz de obter a energia necessária para chegar a Marte por meio da rota traçada originalmente, mas cientistas japoneses seguiram tentando encontrar um meio mais econômico de levar a Nozomi a seu destino. Heroicos, os japoneses só aceitaram a derrota em 2003.
Retaguarda
Neste momento, alguém poderia se perguntar – como eu me perguntei, depois de ver, arrepiado, as fotos “de estreia” do James Webb e de me emocionar feito criança só por estar perto de um ônibus espacial – como diabos vim parar neste negócio de escrever sobre astrologia, terra plana, fascismo, cloroquina? Que raio de carreira é essa?
Efeitos do acaso e pressões de mercado a parte, a resposta está embutida lá no início: nas fotos adulteradas de Marte, no pânico infundado a respeito dos “riscos” da Cassini. Metáforas militares, ainda mais em tempos polarizados como os nossos, são sempre um perigo, mas vou me arriscar com uma: a ciência, e os sistemas de apoio que giram em torno dela – incluindo a comunicação científica e o jornalismo científico – são compostos, assim como uma tropa marchando, de vanguarda e de retaguarda.
A vanguarda, como o nome diz, avança; e avançar, quando o assunto é ciência, significa (estou aqui parafraseando o falecido nobelista Peter Medawar) ampliar as possibilidades da experiência humana: permitir quer nós, como espécie e também como indivíduos, aprendamos mais, entendamos mais, vejamos mais, possamos mais, tenhamos mais escolhas e meios racionais para decidir entre elas. É a vacina, que permite viver mais; é a Cassini e é o James Webb, que permitem ver, saber e sonhar muito mais.
E a retaguarda? A retaguarda cuida para que o pessoal lá na frente não seja atacado pelas costas, que o terreno de conhecimentos consolidados e possibilidades ampliadas conquistado por eles não seja invadido, retomado pela estreiteza e pela ignorância. Que as veredas já abertas pela ciência para a Humanidade não venham a ser fechadas pelo fanatismo, pelo obscurantismo e pela pseudociência, a insidiosa quinta-coluna.
A batalha pela retaguarda não é nova, nem é problema nascido no mundo online: o CFI, organização americana fundada, entre outros, por Carl Sagan e Isaac Asimov para promover o ceticismo científico e o pensamento crítico, foi formalizado em 1976. A internet, em comparação, só foi aberta ao público em 1993. Mas o universo virtual fez com que o espaço entre vanguarda e retaguarda – o “território pacificado”, digamos – encolhesse de forma assustadora. O recrutamento da quinta-coluna, também, ganhou velocidade e eficiência. No meio desse processo maluco, acabei vindo parar na retaguarda.
Foi uma jornada caótica que, como muito do que acontece na vida das pessoas, incluiu diversas escolhas e motivações que acabam só se tornando claras quando vistas em retrospecto.
Falando em motivações, a principal talvez tenha sido a perplexidade de assistir, em primeira mão, às nuvens de tempestade acumulando-se, silenciosamente, sobre a retaguarda. Vinte e cinco anos atrás, o cidadão comum, recém-introduzido à internet, que resolvesse explorar o que a “nova mídia” dizia sobre ciência, arriscava-se a cair num campo minado por coisas como os documentos Majestic 12 (memorandos “secretos” – falsificados – sobre a captura de alienígenas por autoridades dos EUA) e ativismos malucos como “Stop Cassini” e a conspiração HAARP, para ficar em alguns exemplos mais salientes.
Os amigos “do impresso” podiam se dar ao luxo de marchar em paz ao lado da vanguarda, ignorando a sombra que pairava sobre a retaguarda ou dizendo que as ameaças ali não eram reais, não passavam de meia dúzia de malucos divertidos e inofensivos. Era uma autoilusão que a turma lá da frente não parecia ter dificuldades em sustentar – até, claro, dois anos atrás.
Eu, de onde estava, tinha uma visão mais realista. Isso foi, aos poucos, mudando minha vida. O que não quer dizer que, de vez em quando, não morra de inveja dos colegas que seguem ao lado da vanguarda, olhando sempre para a frente. Como quando um novo telescópio espacial estreia, por exemplo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)