No fim de maio, a revista de fim de semana do jornal The New York Times publicou uma preciosa reportagem sobre a expansão do discurso antivacinas, que emergiu durante a pandemia de COVID-19, para outros tipos de vacinação — atingindo, agora, os programas de imunização infantil contra doenças como sarampo ou coqueluche.
Pediatras ouvidos pela reportagem do suplemento dominical descrevem como, antes da pandemia, os pais que relutavam em vacinar os filhos eram, em geral, adeptos de estilos de vida “naturais”, ou esotéricos “New Age”, mas como agora começam a surgir famílias de perfil mais conservador que reagem de modo feroz — às vezes violento — à mera sugestão de que a criança deveria ser vacinada. “Não vou matar meus filhos”, uma mãe disse a um desses médicos, tremendo e chorando.
Detalhe: as crianças já haviam sido vacinadas, o pediatra estava apenas indicando a necessidade de doses de reforço. Durante a pandemia, essa mãe, por algum motivo, fez a transição de sensata para antivaxxer. E, segundo a reportagem, não foi a única.
Política
A causa dessa normalização do sentimento antivacinas parece ser a sinergia entre dois fatores — desinformação e politização. A COVID-19 desencadeou, como inúmeros autores já apontaram, uma “infodemia”, onde informações corretas e falsas se misturam numa trovoada cacofônica que a maioria das pessoas não tem a competência — não foi treinada ou educada — para filtrar.
Nesse cenário, aponta o NY Times, desinformação (mentira deliberada ou distorção maliciosa) converte-se muito facilmente em má informação (erros compartilhados de boa-fé por gente que foi enganada e passa acreditar sinceramente na bobagem que ouviu). Como os disseminadores de má informação são, em geral, gente de boa reputação e “confiável” — pais, mães, amigos, colegas, médicos — num mundo interconectado, o turbilhão é quase impossível de conter.
O segundo braço do fenômeno, a politização, vem da transferência do debate sobre vacinas da esfera da ciência e da saúde para o das liberdades individuais e da identidade político-partidária. Num ambiente onde as questões políticas já estão polarizadas e geram paixões violentas e ideação paranoica, a politização da vacina abre espaço para reações emocionais e impensadas.
Marketing do pânico
A reportagem dedica um bom espaço ao fato, em geral pouco explorado, de que a promoção do medo de vacinas é também uma estratégia de marketing. Todo site de desinformação, toda página de guru das “liberdades individuais” ou promotor da paranoia “o que as farmacêuticas não querem que você saiba” leva, em algum momento, a um livro à venda, a uma página de doação ou a um vídeo monetizado.
Do mesmo modo que os fabricantes de desodorante inventaram o medo do “cheiro de corpo” para vender seu produto, ou os comerciais de pasta de dente exploram o medo de fracasso social causado por mau hálito, o medo de vacinas tornou-se uma ferramenta de marketing importante: do ponto de vista de quem está vendendo, “garantir” que o produto vai resolver um problema que realmente existe é tão eficaz quando prometer que vai solucionar um problema que o cliente só imagina (com uma ajudazinha da publicidade) que existe. O mercado pujante das deficiências nutricionais imaginárias e do detox está aí para quem quiser ver.
Em especial, a promoção da ideia de que há uma verdadeira ciência da saúde que “estão escondendo de você” (mas sobre a qual pode-se ler neste PDF aqui, que estará disponível para baixar assim que seu pagamento for processado) é um próspero modelo de negócio, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Lançar suspeitas sobre vacinas equivale ao velho comercial em que a moça bonita faz careta e se afasta do sujeito de sovaco (supostamente) fedido.
Oferta e demanda
Nesse aspecto, é interessante dar uma olhada num artigo publicado recentemente em Nature Human Behavior, analisando o “mercado” de desinformação sob um enfoque de oferta e demanda. Uma equipe de pesquisadores italianos usou os registros de buscas do Google para estimar quais os assuntos mais “em demanda” de informação na Itália, e comparou com a “oferta” feita tanto por órgãos de credibilidade reconhecida quanto por fontes marcadas como questionáveis por agências de checagem.
O resultado foi de que as fontes questionáveis atendem melhor à demanda do que as fontes respeitáveis. Claro, é preciso definir bem o que esse “melhor” aí quer dizer: significa que os produtores de notícias falsas ou distorcidas reagem mais rapidamente, e com maior flexibilidade, à curiosidade imediata do público — não que suas publicações estejam mais corretas (sejam “melhores” em algum sentido qualitativo) do que as produzidas por boas fontes.
Outro dado curioso é que as tendências de busca no Google têm poder preditivo sobre o conteúdo de fake news: saber o que é mais buscado hoje permite prever o que vai estar nas bobagens de amanhã (isso funciona também para notícias legítimas, mas com precisão menor e atraso maior).
Trata-se de um achado que ajuda a entender melhor a natureza da infodemia — além de as pessoas terem dificuldade em filtrar fontes, é bem possível que, ao menos num primeiro momento, as únicas fontes disponíveis para responder às ansiedades mais urgentes do público sejam as de “fake news” — e vem se somar a resultados anteriores (por exemplo, aqui e aqui) que mostravam que a desinformação é mais “infecciosa” do que a informação correta, no sentido de que se espalha mais depressa e atinge mais pessoas.
Vacina mental
O artigo original que detectou a infecciosidade superior das notícias falsas, publicado na Science em 2018 (antes da pandemia, portanto, mas já na era de Trump, Bolsonaro e adjacências), apontava como marcas das falsidades altamente contagiosas o caráter político; o conteúdo curioso, inusitado; e a elevada capacidade de suscitar emoções como medo, aversão e surpresa.
O trabalho atual na Nature Human Behavior oferece mais um fator — adequação à demanda, isto é, à curiosidade do público, maior do que a das notícias legítimas. Assim como as outras vantagens da desinformação (choque, surpresa, etc.), esta última é facilitada pelo descompromisso cabal com a verdade: para responder de modo responsável a uma ansiedade pública, é preciso tempo para levantar fatos, apurar contextos, elaborar explicações. Já empurrar choque e terror é coisa de segundos.
Uma estratégia de mitigação concebível seria aumentar a sensibilidade da imprensa, comunicadores de ciência e outros produtores de conteúdo comprometidos com a realidade para os dilemas imediatos do público e melhorar o tempo de resposta (enquanto o especialista legítimo está, compreensivelmente, coçando a cabeça e perguntando “que porra é essa?”, a lojinha de suplementos já lançou uma promoção e postou uma dancinha no TikTok).
É uma abordagem que, no entanto, tem limites: determinar corretamente os fatos para responder de modo honesto e claro a uma pergunta sempre será mais demorado do que inventar uma asneira qualquer que vá assustar ou adular o consumidor e, assim, incentivá-lo a jogar dinheiro fora.
Mais factível, talvez, embora ainda envolva esforços e desafios consideráveis, é a estratégia de “inocular”, ou “vacinar”, o público contra a desinformação, por meio do ensino e da disseminação de estratégias de pensamento crítico e da exposição didática e controlada a falácias e truques retóricos.
O desafio ganha proporções ainda maiores quando nos lembramos da constatação feita pelo NY Times de que debates sobre ciência vêm se convertendo em debates identitários e políticos, com toda a bagagem emocional e psicológica que essas disputas trazem. Mas uma inoculação bem-sucedida é exatamente aquela que chega às pessoas antes que suas paixões e convicções íntimas sejam manipuladas, e equipam a cidadania com meios de resistir a tal manipulação. Se isso for feito, a conversão explosiva de desinformação em má informação será cortada — e a mentira vai deixar de valer a pena. É possível? Bom, a gente sempre pode sonhar.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)