O ditador português António Oliveira Salazar (1889-1970) costuma ser citado, ao lado do espanhol Francisco Franco (1892-1975), como um dos governantes fascistas do século 20 mais intimamente alinhados à ala tradicionalista e ultraconservadora da Igreja Católica. Foi com uma certa surpresa, portanto, que descobri, na recente biografia “A Incrível História de António Salazar, o Ditador que Morreu Duas Vezes”, de autoria do italiano Marco Ferrari, que Salazar não só deixou-se influenciar pelos vaticínios de uma astróloga por mais de três décadas como, no fim da vida, passou por uma abrupta virada esotérica.
Escreve Ferrari, na tradução do português Vasco Gato: “No final dos anos 60, durante um certo período, [Salazar] deixou de se confessar e comungar, tornando-se um espiritualista (…) O palacete de São Bento tornou-se um estúdio de ocultismo, com figuras como Maria Emília Vieira, conhecida como Sibila, Carmen Lara, Madame X, a especialista em magnetismo Fernanda Moreira, Joãozinho de Alcochete, célebre médium da margem sul do Tejo”.
Maria Emília Vieira, que com o pseudônimo de “Sibila” assinava colunas de horóscopo num jornal, foi consultora astrológica de Salazar entre os anos 30 e 60, e provavelmente amante do ascético e celibatário ditador durante parte desse tempo. Na juventude, além de astróloga, havia sido dançarina de cabaré. Os papéis pessoais de Salazar preservam ainda algumas das previsões feitas para o ditador. “Os horóscopos de Maria Emília acabarão por orientar durante pelo menos três décadas as decisões do Estado português”, resume Ferrari.
Arca Perdida
Provavelmente nenhum regime autoritário dos tempos modernos teve maior envolvimento com ocultismo, esoterismo e astrologia do que o Terceiro Reich. O fascínio dos nazistas pelo oculto é base de muita literatura sensacionalista e ficção popular (incluindo filmes como “Capitão América: Primeiro Vingador” e “Caçadores da Arca Perdida”) mas, exageros à parte, tratava-se de um encantamento muito real.
Astrólogos tinham forte influência sobre figuras muito próximas a Adolf Hitler (1889-1945), como Rudolph Hess (1894-1987) e Heinrich Himmler (1900-1945). As teses antissemitas e de superioridade racial promulgadas pelos nazistas, embora comumente apresentadas como expressões do “racismo científico” do fim do século 19, carregavam também um forte componente místico e esotérico. Em 1924, escrevendo no “Mein Kampf”, Hitler fizera pouco caso dos “professores errantes” que “promovem o folclore germânico”; mas uma vez no poder, o nazismo viu utilidade neles.
Himmler, líder da temida SS, chegou a estabelecer um instituto, o Ahnenerbe, dedicado principalmente à pseudoarqueologia, à construção de um passado germânico glorioso e racialmente puro, mas também a diversas outras “ciências limítrofes” — pseudociências — de sabor claramente ocultista. Uma incluía a ideia de que a “raça ariana”, a que os nazistas acreditavam pertencer, teria origens cósmicas, extraterrestres.
O livro “Hitler’s Monsters”, do historiador Eric Kurlander, cita Himmler (“obcecado com curas naturais”) asseverando que “os arianos não evoluíram de macacos como o restante da Humanidade, mas são deuses vindos diretamente do Céu para a Terra”. No geral, a burocracia do Reich parece ter consumido uma energia razoável tentando separar o ocultismo “comercial” (a ser reprimido) do “científico” (a ser patrocinado).
Mas o critério verdadeiro, segundo Kurlander, era o de que a doutrina esotérica fosse “considerada suficientemente ariana” e não tivesse à sua frente uma figura carismática talvez capaz de eclipsar o führer. A própria crítica de Hitler aos “professores errantes” se inscreve nessa chave: o problema era que alguns deles se apresentavam como precursores ou co-criadores do nacional-socialismo. Essa pretensão é que se mostrava intolerável.
Verdade construída
O historiador afirma que, embora o pensamento mágico e um desejo por um “reencantamento das ciências” já fizessem parte da cultura alemã antes da ascensão do nazismo, foram os nazistas os que mais se identificaram com o anseio, e melhor souberam cooptá-lo para obter vantagem política, ideológica e de propaganda. A unificação mágico-científica entre corpo e alma, mundo e espírito, raça e território era um pressuposto da mentalidade nazista.
Essa “ciência reencantada” seria uma cujas leis e descobertas, para além de descrever friamente a realidade física, tivessem também uma dimensão moral, metafísica, um “significado profundo” que falasse à “alma” e fosse acessível à intuição, tocasse os corações. Não foi sem motivo que a historiadora Corina Treitel intitulou seu livro sobre a influência do pensamento esotérico na Alemanha do início do século 20 de “A Science for the Soul” (“Uma Ciência para a Alma”).
Há um certo debate sobre quanto disso tudo Adolf Hitler levava a sério, e quanto apenas tolerava com o cinismo pragmático de quem vê boa propaganda e bons meios de manipulação. A preocupação com o potencial propagandístico era evidente. Horóscopos do führer e da cúpula nazista deixaram de ser publicados em 1934 e, já em junho de 1933, poucos meses depois da chegada do Partido Nacional Socialista ao poder, a Associação Astrológica da Alemanha foi reorganizada com uma nova cúpula, formada por astrólogos filiados ao partido.
Sabe-se que Hitler mantinha, em sua biblioteca pessoal, um exemplar autografado do livro “Mágica: História, Teoria e Prática”, de Ernst Schertel (1884-1958), com diversos trechos sublinhados. O führer parecia ter um interesse especial nas partes em que Schertel afirmava que vontade e imaginação, se suficientemente fortes, poderiam alterar a natureza da realidade. Por exemplo, sublinhou a seguinte passagem: “Realidade é o devir de nossos poderes essenciais mais profundos. ‘Verdade’ (…) não é um processo de descrição, mas de construção”.
Horóscopo presidencial
Em democracias razoavelmente saudáveis, o interesse de líderes políticos pelo sobrenatural ou pelo oculto costuma ser tratado como questão de foro íntimo e que, quando vem à tona, torna-se fonte de entretenimento ou de constrangimento.
Quando o New York Times publicou, em 4 de maio de 1988, que o então presidente Ronald Reagan (1911-2004) consultava astrólogos, o porta-voz da Casa Branca reagiu na defensiva, afirmando que “que eu me lembre, nenhuma política ou decisão jamais foi influenciada por astrologia”. Duas semanas depois, no dia 17, o próprio presidente veio a público para afirmar, durante uma entrevista coletiva, que não era “escravo do Zodíaco”.
Respondendo à questão de se acreditava em astrologia, Reagan disse que “não amarrei minha vida a ela, mas não vou responder à pergunta de outra maneira porque não sei o suficiente sobre o assunto para dizer se tem validade ou não”. O ex-chefe de Gabinete de Reagan, Donald T. Regan, escreve em suas memórias que a agenda presidencial era caótica, com compromissos remarcados segundo instruções ditadas pelos astros.
O presidente republicano chegou a admitir que, depois do atentado sofrido por ele em 1981, a primeira-dama Nancy Reagan (1921-2016) havia procurado o apoio de uma astróloga, identificada pela imprensa como Joan Quigley (1927-2014).
Aqui no Brasil, em 2011 o Correio Braziliense publicou reportagem sobre os hábitos esotéricos de alguns políticos de renome. Fora isso, boatos messiânicos envolvendo salvadores da pátria carregados no lombo de cavalos brancos recorrem pelo menos desde o pleito presidencial de 1989 (foram apresentados como “cavaleiros”, de lá para cá, Ronaldo Caiado, Aécio Neves e, claro, Jair Bolsonaro). Também, o recente livro da jornalista Cristina Fibe, “João de Deus: O Abuso da Fé”, mostra a movimentação de lideranças políticas no entorno do médium de Abadiânia — e como as figuras públicas que antes o exaltavam em busca de curas (e votos) agora tentam descolar-se de sua figura.
Políticos parecem aderir ao oculto por necessidade psicológica (Salazar, Reagan), identidade ideológica (Hesse, Himmler, talvez o próprio Hitler) ou oportunismo (Hitler, o pessoal do cavalo branco presidencial e a “bancada” de João de Deus). É importante notar que essas motivações não são excludentes entre si.
Um aniversário
E neste 2022 completam-se 20 anos da tentativa movida pelo senador tucano Artur da Távola (1936-2008) de regulamentar, por lei, a profissão de astrólogo no Brasil. A proposta de criar a figura do “astrólogo de carteirinha” foi defendida em público pelo senador por meio de artigo publicado na Folha de S. Paulo, respondendo a crítica mais do que pertinente do físico Marcelo Gleiser.
O artigo de Távola — que merece ser lido ainda hoje — é exemplar e didático pela completa barafunda conceitual que revela. Uma palhinha:
“Inútil é, friso, ataque à astrologia atado a pensamento e percepção, ignorando sentimento e intuição. O mesmo se diga dos métodos mânticos (quiromancia, runas, numerologia, baralho cigano, cristais, tarô, búzios etc.)”
(…)
“Volta à Idade Média, a nosso ver, é a unilateralidade e a intransigência de pretender impor verdades freudianas limitadas, destituídas de visão holística, cegas à sabedoria do Oriente; de se restringir, sem nem disso ter sequer consciência, a um radical patriarcado agonizante, como se imaculado fosse”.
O artigo indica que Távola, um político de centro-esquerda, abraçou a causa da astrologia por uma questão de convicção pessoal e afinidade ideológica — uma fome de “reencantamento” muito semelhante à que foi abraçada, estimulada e, por fim, explorada pelo nazismo. O fato de o mesmo fenômeno ser capaz de indicar direções políticas tão divergentes não deve surpreender ninguém. A direção em que o “encantamento do mundo”, uma vez resgatado, vai apontar é estritamente arbitrária.
Trata-se de uma característica importante do irracional (que, em circunstâncias assim, tenta se apresentar como “supra”, “super” ou “sobre”, racional): por ser incoerente, é infinitamente maleável. O rótulo de “sabedoria do Oriente” exaltado por Távola também encantava os ideólogos da superioridade ariana.
Além de jogar com as emoções e a imaginação do público, o sobrenatural, quando assimilado ao poder político, elimina a necessidade de o líder dar razões para o que faz — porque se encontra já além da razão. Nesse sentido, é essencialmente autoritário.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)