Dois fatos de importância histórica aconteceram em setembro de 1822: a Independência do Brasil e a chegada, a Londres, do artefato que depois viria a ser conhecido como “A Sereia de Fiji”. O segundo evento pode não ter ficado tão famoso – ao menos, não entre os brasileiros –, mas marca o início de uma relação tumultuada entre mídia, público e ciência que guarda lições para os dias de hoje.
A origem exata da sereia, uma peça de artesanato com cerca de um metro de comprimento, construída a partir de pedaços mumificados de dois macacos e um salmão, nunca foi esclarecida, mas tudo indica que se trata de uma criação japonesa. Ela entra na história ao ser adquirida, em janeiro de 1822, na cidade de Jacarta (então, Batávia, capital das Índias Orientais Holandesas) pelo americano Samuel Barrett Eads, um capitão de marinha mercante. Para adquirir a relíquia, o capitão Eads vende o navio que estava sob sua responsabilidade – sem pedir autorização ao proprietário, baseado em Londres.
Eads aparentemente acreditava que tinha em mãos a prova real da existência de sereias, e esperava granjear fortuna exibindo a evidência na capital britânica. No caminho para a Inglaterra – viajando agora como passageiro – o feliz proprietário da Donzela do Mar faz uma parada na África do Sul, onde submete sua aquisição ao escrutínio de um teólogo, um certo Dr. Philip, da Sociedade Missionária Londrina na Cidade do Cabo, que proclama a sereia legítima.
Uma carta de autoria do reverendo, enviada à Inglaterra em abril, circula na mídia britânica meses antes da chegada da sereia ao país, aguçando o apetite do público pela nova maravilha. Extratos dessa correspondência são publicados até mesmo no London Medical and Physical Journal, um periódico científico. Trecho de um parágrafo:
“O comprimento do animal é três pés [91 centímetros]: mas, não tendo sido bem preservado, deve ter encolhido consideravelmente, devendo ter sido maior e mais espesso, quando vivo, do que é agora. Sua semelhança com a espécie humana desaparece imediatamente abaixo das mamas. Na linha de separação, e diretamente abaixo dos seios, há duas barbatanas. A partir do ponto em que a figura humana cessa, localizado cerca de 12 polegadas [30 centímetros] abaixo do topo da cabeça, assemelha-se a um grande peixe da espécie do salmão”.
Carreira londrina
Já em solo britânico, mas antes de pôr sua sereia em exibição pública, Eads havia convidado o cirurgião e anatomista Sir Everard Home, já então membro da Royal Society, para inspecioná-la. O acordo era que Home teria exclusividade em reportar e descrever a nova espécie na literatura científica, mas não diria nada à imprensa popular.
Home enviou seu assistente, William Clift, para estudar o espécime, e Clift logo detectou a fraude, e o modo como havia sido produzida. Como relata o médico e historiador Jan Bondeson em seu livro “The Feejee Mermaid”, o crânio e o torso pertenciam a uma fêmea de orangotango, a mandíbula e os dentes tinham vindo de um babuíno. Os ossos dos braços haviam sido serrados, para que a proporção dos membros em relação ao torso ficasse mais próxima da que existe no ser humano. A “cauda” era o corpo inteiro de um grande salmão, decapitado logo abaixo das guelras.
O comprimento real da sereia não era três pés, aliás, mas dois pés e dez polegadas, ou cerca de 86 centímetros.
Clift e Home respeitaram o acordo de sigilo, no entanto, e a exibição abriu num salão anexo a uma casa de café londrina, com grande sucesso e estardalhaço. Eads, no entanto, logo começou a ter problemas: o proprietário do navio que havia vendido para financiar a compra da sereia processou-o, e depois de algum tempo – reagindo a excessos nas alegações “científicas” feitas na propaganda do espetáculo – os anatomistas vieram a público.
A exibição na casa de café foi encerrada em janeiro de 1823, e até 1825 a sereia foi um espetáculo itinerante pelo interior da Inglaterra. Nesse ano, ela desaparece da história – para reaparecer nos Estados Unidos, duas décadas depois.
Barnum!
O empresário circense Phineas Taylor (P.T.) Barnum é hoje em dia lembrado como o suposto autor da frase “um trouxa nasce a cada minuto” (embora a atribuição seja disputada) e por emprestar o nome ao fenômeno psicológico conhecido como Efeito Forer ou Efeito Barnum, a tendência humana de tratar afirmações vagas e genéricas como se fossem específicas.
Barnum é associado ao efeito por causa do lema de seu museu de aberrações e curiosidades, “sempre temos alguma coisa para qualquer um”. O empresário também empresta o nome ao protagonista de um musical estrelado por Hugh Jackman, mas sobre isso, quanto menos se falar, melhor.
Segundo Jan Borenson, o capitão Eads havia sido financeiramente arruinado no processo movido contra ele pelo proprietário do fatídico navio, e a única herança que restara a seu filho tinha sido a sereia. O jovem Eads então a vendeu a um empresário de Boston, Moses Kimball, que por sua vez a alugou a Barnum. Corria o ano de 1842.
Ingrediente quase inevitável de qualquer fraude científica que pretenda sustentar-se diante do escrutínio da imprensa é o “cientista laranja”, que por ingenuidade ou cumplicidade empresta sua reputação à impostura. O capitão Eads tivera seu teólogo, Dr. Philip, e também alguns anatomistas ingleses menos argutos do que Home e Clift. Meio século mais tarde, Charles Dawson, o criador do Homem de Piltdown, teve Teilhard de Chardin e Arthur Woodward.
P.T. Barnum foi mais criativo: ele inventou seu laranja. O advogado Levi Lyman assumiu a identidade de “Dr. Griffin”, representante de uma instituição inexistente – o Liceu de História Natural de Londres – que estaria trazendo para os Estados Unidos, diretamente de Pernambuco (!!), o corpo mumificado de uma sereia capturada nas “Ilhas Feejee”. Barnum era um mestre manipulador da mídia: antes da “chegada” de Griffin aos Estados Unidos, enviou cartas aos jornais anunciando o iminente desembarque da mítica sereia, e lamentando que o eminente homem de ciência se recusasse a mostrá-la ao público. O clima de mistério e a propalada rabugice do sábio britânico aguçaram a curiosidade dos jornalistas e, quando “Dr. Griffin” finalmente “cedeu”, a publicidade gratuita foi imensa.
Nas palavras do autor Stephen T. Asma, nas semanas que se seguiram à abertura da exibição da sereia, “os jornais vacilavam entre credulidade espantada e nojo cético”. Diferentemente de Eads, que dependia da aceitação da sereia como legítima para obter sucesso em Londres, Barnum construiu uma situação em que tanto os elogios quanto as críticas ao espécime alimentavam a curiosidade do público – e, por tabela, a bilheteria. Falem bem, falem mal, mas falem da minha sereia!
Em algum momento, entre 1843 e 1844, Barnum devolveu a sereia a Kimball. Mas o grande embusteiro a levou consigo num tour de Londres em 1859, onde descobriu que alguma memória do fiasco de 1822 ainda existia.
O destino da sereia é desconhecido. Algumas candidatas a “verdadeira sereia de Feejee” existem em museus e coleções pelo mundo, mas são todas, provavelmente, falsas – falsificações da falsificação. Nenhuma corresponde exatamente às ilustrações da época de seu sucesso, ou tem a qualidade de fabricação atestada por Clift em 1822. A original, especula Bondeson, deve ter sido destruída no incêndio que atingiu o museu de Barnum em Nova York, em 1865, ou no que deu cabo do museu de Kimball, em Boston, no início da década de 1880.
Do uso da autoridade emprestada por “laranjas” de boa reputação, passando pelo silêncio cúmplice de cientistas que sabem da verdade e chegando ao gosto do jornalismo por polêmicas e histórias fantásticas que vendem jornal sem informar corretamente o leitor, muito do que se vê na biografia do salmão com cabeça de macaca pode servir de exemplo para o que vemos hoje. Com a diferença de que lá o que se empurrava ao público eram ingressos, não remédios.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)