Piltdown revisitado

Apocalipse Now
9 out 2021
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Piltdown Man

 

Fraudes científicas estão muito presentes na consciência coletiva hoje em dia, com o acúmulo cada vez maior de indícios e evidências de que o verdadeiro tsunami de estudos de quinta categoria sugerindo que a cloroquina, a ivermectina ou a proxalutamida da vez curam unha encravada, COVID-19 e trazem a pessoa amada contém, além de má ciência, doses consideráveis de má-fé.

A distinção é crucial: um cientista que produz resultados inválidos por incompetência metodológica mente para si mesmo, em primeiro lugar, e para os pares e o público, como consequência. Um que produz resultados inválidos falsificando ativamente seus dados mente para os pares e o público em primeiro lugar e, para si mesmo, apenas como mecanismo de compensação psicológica.

É, em termos morais, a diferença que existe entre o falso profeta que acredita mesmo nos delírios que tomam conta de sua mente, e o que só está nessa pelo dinheiro do dízimo.

Como chegamos a este ponto, creio que vale a pena olhar para o passado e rever algumas das características essenciais da fraude científica paradigmática, platônica, arquetípica – a fraude que traz lições que toda nova geração deve aprender, sob pena de repetir os mesmos erros e cair no mesmo tipo de complacência. Refiro-me, é claro, ao Homem de Piltdown.

 

 

Eoanthropus dawsoni

Hoje em dia, a história do Homem de Piltdown é facilmente encontrada em sites criacionistas, como exemplo de como os evolucionistas são uns bobinhos que se deixam enganar por falsas evidências (isso, vindo de gente que acha que os dinossauros foram extintos pelo Grande Dilúvio), o que só vem reafirmar o fato de que toda complacência para com os “nossos” picaretas vira arma para quem faz carreira desacreditando o trabalho de cientistas sérios. Essa é uma das lições perenes do caso. Há outras.

Refrescando a memória: em fevereiro de 1912, Charles Dawson (1864-1916), um advogado britânico que praticava paleontologia e arqueologia como hobbies, enviou uma carta a Arthur Smith Woodward (1864-1944), então curador da coleção de História Natural do Museu Britânico (coleção que depois viria a dar origem ao Museu de História Natural de Londres), dizendo que havia encontrado, numa cascalheira nos arredores da vila de Piltdown, em Sussex, Inglaterra, numa camada geológica de cerca de um milhão de anos, vestígios de um crânio humano.

Em dezembro daquele ano, Dawson e Woodward apresentaram conjuntamente, à comunidade científica, os primeiros vestígios descobertos em Piltdown: partes de uma caixa craniana de aparência humana e de uma mandíbula (contendo dois dentes molares) simiesca. O exemplar foi classificado como uma nova espécie de ancestral humano, Eoanthropus dawsoni (“Homem da Alvorada de Dawson”).

Outros ossos e ferramentas pré-históricos foram achados no local entre 1913 e até 1914, incluindo um dente canino de tamanho intermediário entre o de um grande símio e o de um ser humano – esta última descoberta feita pelo então recém-ordenado padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), que depois ficaria famoso, como paleontólogo, por integrar a equipe responsável pela escavação do fóssil do Homem de Pequim (Homo erectus pekinensis), em 1926; e como teólogo, por sua obra póstuma, “O Fenômeno Humano”, onde apresenta uma visão cósmico-místico-cristã da evolução.

A curiosa justaposição de vestígios de aparência primata – caixa craniana humana, mandíbula que lembrava um chimpanzé ou orangotango – levou alguns especialistas, incluindo o orientador de Teilhard de Chardin em paleontologia, Marcellin Boule (1861-1942), a especular se não seriam vestígios de indivíduos de espécies diferentes – um homem e um macaco, misturados pelo tempo. A objeção, no entanto, perdeu força com a descoberta, por Dawson, de restos do que parecia ser um segundo indivíduo da mesma espécie, Eoanthropus dawsoni, num sítio a 3 km da escavação original, apelidado de “Piltdown 2”.

 

 

Anomalia? Fraude!

O Homem de Piltdown entrou para a ortodoxia científica, mas nunca se encaixou muito bem lá. Em sua grande obra de popularização do conhecimento histórico e antropológico europeu do início do século passado, “The Outline of History”, de 1920, H.G. Wells (1866-1946) cita o Eoanthropus como um “enigma”. Com o passar das décadas e a descoberta de mais fósseis da linhagem humana e parentes próximos, mais difícil ficava encaixar o Eoanthropus dawsoni na história da evolução.

Também, após a morte de Dawson em 1916, nenhum outro exemplar da espécie foi descoberto. A atitude geral da comunidade científica foi pô-lo de lado – deixá-lo, por assim dizer, entre parênteses – até que alguma novidade surgisse que pudesse colocar o fóssil em perspectiva.

A “novidade”, por fim, veio em 1953, quando uma investigação conduzida por três pesquisadores – Kenneth Oakley (1911-1981), Joseph Weiner (1915-1982) e Wilfrid Le Gros Clark (1895-1917) – demonstrou que os restos do Eoanthropus dawsoni eram uma fraude: ossos humanos e de macaco, tingidos e manipulados para parecem mais velhos do que realmente eram e anatomicamente compatíveis entre si. Weiner escreveu um livro sobre o caso, “The Piltdown Forgery”, publicado em 1953, que se tornou um clássico.

dawsoni

Weiner fez questão, no livro, de não fazer acusações diretas. A questão de se Dawson, Woodward e Teilhard de Chardin haviam criado a fraude ou apenas sido engabelados por alguma outra figura misteriosa que frequentava a cascalheira de Piltdown é deixada, formalmente, em aberto. Mas Dawson é quem sai da narrativa como principal suspeito.

No epílogo, Weiner escreve que, por um lado, “não é possível sustentar que Dawson possa não ter sido o verdadeiro perpetrador”; mas que, por outro, “condená-lo com base em considerações desse tipo é basear o caso em argumentos de exclusão (...) e nada traz a prova final e positiva de sua responsabilidade”.

Dos três descobridores do Homem de Piltdown, apenas Teilhard de Chardin ainda estava vivo quando a fraude foi desmascarada. Ele falou e escreveu muito pouco sobre o assunto, e sempre que o fez, indicou acreditar que o que acontecera em Sussex entre 1912 e 1914 devia ter sido um erro ou um mal-entendido, não uma fraude deliberada. O paleontólogo e historiador Stephen Jay Gould (1941-2002) construiu um argumento convincente, embora não definitivo, de que o padre Teilhard teria sido cúmplice de Dawson. Quanto a Woodward, há um consenso mais ou menos geral de que foi vítima, e não perpetrador, da fraude: foi um cientista que mentiu, principalmente, para si mesmo.

 

Lições

Nas décadas que se seguiram à revelação das evidências de fraude, houve muita especulação sobre a autoria. A família de Dawson, que contava com vários membros ilustres (um de seus irmãos, Arthur Trevor, tornou-se oficial de sucesso na Marinha e foi sagrado cavaleiro em 1909), fez protestos veementes contra o livro de Weiner, assim que a obra saiu. Até o nome do escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930) entrou para a lista de suspeitos.

Finalmente, em 2016 uma análise dos materiais ligados ao Eoanthropus dawsoni com técnicas modernas, incluindo extração de DNA, mostrou que a mandíbula do Homem de Piltdown pertencia, na verdade, ao esqueleto de um orangotango de Bornéu, e todos os vestígios, tanto do sítio original de Piltdown quanto de Piltdown 2, haviam sido tratados – isto é, falsificados – com o uso das mesmas técnicas, métodos e materiais, o que sugere fortemente um autor único.

Esse trabalho fechou de vez o cerco a Dawson como criador dos espécimes. Escrevem os autores:

 

“A história começou com ele, ele levou os primeiros espécimes (...) nada jamais foi encontrado no sítio quando Dawson não estava lá, ele é a única pessoa conhecida diretamente associada aos supostos achados no segundo sítio de Piltdown, cuja localização exata ele jamais revelou, e nenhum outro fóssil importante, humano ou mamífero, foi descoberto nessas localidades após sua morte em 1916”.

 

O veredicto de 2016 deixa ainda em aberto a questão de se haveria cúmplices.

 

dawsoni

Os erros que permitiram que o Homem de Piltdown permanecesse como uma descoberta científica “legítima” – ainda que anômala – por 40 anos continuam a ser cometidos por cientistas e comunicadores de ciência até hoje. Os principais:

 

Vontade de acreditar

Quando o Homem de Piltdown foi descoberto, os principais fósseis de antepassados ou parentes próximos do Homo sapiens haviam sido encontrados na França, Alemanha e na Ásia. O fato de os franceses terem o Cro-Magnon; os alemães, o Homem de Neandertal e os ingleses, nada, era uma afronta ao orgulho nacional. Tratar o Eoanthropus dawsoni como uma maravilha formidável era quase um dever patriótico da ciência britânica.

 

Reputações acima das evidências

Charles Dawson era um advogado respeitado e um membro querido da comunidade. Era um gentleman, e sua idoneidade estava acima de qualquer suspeita. Woodward e Teilhard de Chardin confiavam implicitamente nele, e a comunidade científica confiava na autoridade de Woodward – que, na verdade, já havia sido enganado antes por Dawson! Segundo um par de biografias escritas pelo arqueólogo Miles Russell (“Piltdown Man: the Secret Life of Charles Dawson” e “The Piltdown Man Hoax: Case Closed”), Charles Dawson era um falsificador, ladrão e plagiário serial. Mas encaixava-se na ideia da época de “homem de bem”, então a sociedade “educada” fazia contorcionismos para não o ver como realmente era. A confiança mínima racional que existe na base da vida civilizada metamorfoseia-se, sem que percebamos, num cheque em branco nem um pouco razoável.

 

Escassez de ceticismo

Segundo Russell, o primeiro fóssil falsificado apresentado por Dawson a Woodward, ainda em 1891 e aceito entusiasticamente pelo cientista, foi um dente de uma suposta espécie extinta de mamífero até então desconhecida, e que recebeu o nome Plagiaulax dawsoni. O dente era uma fraude grosseira, um fóssil de uma espécie já conhecida, lixado até parecer pertencente a outra, ainda não descrita pela ciência. “Qualquer um com um pingo de ceticismo e um microscópio poderia tê-la desmascarado”, escreve Russell. Faltou o pingo.

 

Lado positivo

Em Woodward, prossegue o arqueólogo na biografia “The Piltdown Man Hoax: Case Closed”, Dawson encontrou seu “laranja científico”, o cientista respeitável cuja reputação ilibada criava um escudo de capital social em torno dos achados questionáveis do amigo.

Não dá para deixar de celebrar o fato de a fraude ter, enfim, sido desvendada. A publicação do livro de Weiner em 1953 mostrou que a ciência pode funcionar, sim, como uma estrutura que duvida das próprias verdades e busca corrigir os próprios erros. Não foi preciso uma “revolução científica”, nem uma “quebra de paradigma” para que o Homem de Piltdown saísse dos livros de paleontologia e antropologia e migrasse para os de história da ciência, no capítulo das coisas que deram errado.

Mas também não dá para deixar de lamentar que ideias sedutoras, promovidas por reputações infladas, defendidas por laranjas científicos e recebidas sem um pingo de ceticismo, sigam causando tanto mal ao mundo.

 

CORREÇÃO (14/10/2021): A versão original deste artigo afirmava que a única outra pessoa encontrar vestígios do Homem de Piltdown durante as pesquisas de campo, além de Charles Dawson, havia sido padre Teilhard de Chardin. Na verdade, Woodward também "descobriu" pelo menos um fragmento do crânio. 

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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