Uma “nova” ciência para novos tempos

Apocalipse Now
4 set 2021
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Donovan's brain

 

Quando o filósofo americano Harry Frankfurt publicou seu clássico ensaio “On Bullshit” (“Sobre Falar Merda”) em 2005, ele não sabia, mas estava fundando um novo ramo de pesquisa interdisciplinar, a taurascástica, o estudo da falação de merda, que viria a mobilizar não só filósofos como linguistas, psicólogos e cientistas sociais.

Frankfurt, para recapitular, define “falação de merda” como o discurso que é indiferente à verdade — o falador de merda (ou “taurascata”) vai dizer qualquer coisa para tentar induzir seu interlocutor a acreditar no que ele quer, incluindo até verdades, mas não porque ele vê valor na verdade ou tem algum prurido ético em mentir, e sim porque são úteis para o objetivo que ele tem em mente.

Claro, o taurascata hábil mente exercitando a mesma desenvoltura e mantendo a mesma consciência limpa com que enuncia verdades, e pelo mesmo motivo: só o que lhe importa é o efeito que seu discurso tem sobre a cognição e o comportamento do alvo (ou alvos). O que o separa do mentiroso comum é essa indiferença suprema frente ao “valor-verdade” do que diz: o mentiroso clássico sabe que está mentindo. O taurascata talvez nem perceba.

Não requer brilhantismo perceber que muitas das profissões mais valorizadas e bem remuneradas do mundo moderno baseiam-se em taurascástica aplicada, e o que isso diz sobre os rumos atuais da civilização talvez seja horrível demais para contemplar, mas não é disso que quero tratar hoje, e sim da noção de que há campos inteiros de pesquisa aguardando para desabrochar — imanentes, por assim dizer — em meio a disciplinas diversas, apenas à espera da faísca que irá consolidá-los em identidades próprias.

Além da taurascástica, outro caso relativamente recente de um campo novo que emerge das ciências pré-existentes é o da agnotologia, o estudo da produção e comunicação social da ignorância. O número de áreas interdisciplinares emergentes que ainda nem receberam nome deve ser, de fato, legião, mas gostaria de apontar e (se ninguém ainda o fez) batizar um, em que o Instituto Questão de Ciência está profundamente envolvido, e que me fascina de modo especial: a cacoideografia, que defino como o estudo e descrição de ideias ruins, suas condições de produção, recepção, reprodução – e evolução.

 

Objeto

É de bom tom que novas ciências tenham objetos bem definidos e que ainda não são cobertos por outros campos de estudo. A cacoideografia, assim como a taurascástica e a agnotologia, é uma área interdisciplinar: no caso, envolvendo história, filosofia e psicologia. Ela se distingue da agnotologia por seu caráter mais descritivo: embora se preocupe em analisar como ideias ruins se propagam na sociedade, tem como objetivo primordial descrevê-las, registrar seu conteúdo, ver como se modificam com o passar do tempo e tentar entender seu apelo.

Este espaço, a coluna “Apocalipse Now” da Revista Questão de Ciência, produziu algum material incipiente que pode ser catalogado na rubrica da nova ciência, por exemplo, este artigo sobre conspirações antissemitas e este outro sobre homeopatia e espiritismo. O estudo de ideias ruins caminha lado a lado com a análise dos negacionismos, algo que Natalia Pasternak e eu fazemos em nosso novo livro. Talvez até mesmo o meu “Livro dos Milagres” tenha sido um movimento inconsciente no sentido de gerar material cacoideográfico. Se o meu “Livro da Astrologia” passasse mais tempo discutindo e descrevendo a doutrina astrológica, seria ainda um candidato a obra seminal da área.

Falando nisso, qual teria sido o tratado fundador da cacoideografia? Diria que o campo nasceu, de modo um tanto quanto acanhado, escondido, quase junto com a divulgação científica. Por exemplo, no livro “The Discoverie of Witchcraft” (“A Descoberta da Bruxaria”), de 1584, em que Reginald Scot (1538-1599) denuncia os truques e superstições mobilizados para acusar mulheres de bruxaria. No século 19, o matemático Augustus DeMorgan (1806-1871) publicou “A Budget of Paradoxes” (“Um Balanço de Paradoxos”), onde descreve tentativas de produzir provas ou resultados matemáticos sabidamente impossíveis, como a quadratura do círculo.

No século passado, o também matemático Roger Herz-Fischler publicou “The Shape of the Great Pyramid”, um catálogo comentado das teorias malucas sobre a geometria da Pirâmide de Quéops.

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Na maioria das vezes, no entanto, a cacoideografia entra como linha auxiliar de um projeto maior: a ideia ruim é descrita apenas o suficiente para que o autor possa explicar por que ela é, afinal, ruim, ou como pano de fundo para o que é uma análise de relações sociais ou de eventos biográficos. Nessa chave, diversos excelentes livros de história — por exemplo, os dois volumes de história do ocultismo no Ocidente, escritos por James Webb (1946-1980) logo vêm à mente, ou o fantástico “The Spiritualists”, de Ruth Brandon — podem ser vistos como proto-cacoideografia (como é divertido empilhar morfemas gregos!).

 

 

Sexta-feira 13

Alguém poderia mencionar “A Grande Cadeia do Ser”, de Arthur O. Lovejoy (1873-1962), obra fundadora da disciplina da História das Ideias, como fundadora também da cacoideografia. Talvez seja. Mas gostaria de apontar um candidato mais comezinho ao papel de “peça exemplar” do gênero: “13 - The World’s Most Popular Superstition” (“13 - A Superstição Mais Popular do Mundo”), do americano Nathaniel Lachenmeyer. Uma obra relativamente recente (a primeira — e até onde sei, única — edição data de 2004), apresenta uma verdadeira biografia do medo e aversão que cercam o número 13 no imaginário ocidental.

Lachenmeyer constrói um belo caso em defesa da tese de que a família atual de superstições em torno do 13 nasceu a partir de uma só — a de que, num jantar com 13 convidados, um morrerá em breve — e de que essa “superstição primordial” deriva da narrativa bíblica da Última Ceia, em que se reuniram Jesus e os 12 apóstolos.

Ele argumenta que o fato de haver registros de aversão ao 13 em alguns outros povos, ou em períodos anteriores à redação dos Evangelhos, não basta para derrubar a hipótese da Última Ceia: para isso, diz, seria preciso demonstrar comunicabilidade e continuidade — a superstição extra-ocidental ou pré-cristã teria de ter se comunicado ao mundo europeu, e perdurado até o século 17, quando os primeiros registros escritos dando conta da existência de alguma prevenção contra a presença de “13 à mesa” surgem. E não há sinal disso.

A aversão a grupos de 13 comensais, segue a história, teria se mantido como uma crença mais ou menos marginal do século 17 ao 19, quando explodiu em popularidade até ser substituída, no século 20, pelo horror da “sexta-feira 13” e, em certas partes do mundo, pela aversão a décimos-terceiros andares.

Lachenmeyer ainda consegue rastrear a superstição da sexta-feira 13 até o momento de sua criação: na publicação, em 1907, do romance “Friday, the 13th” pelo “iconoclasta, financista e especulador” americano Thomas W. Lawson (1857-1925). No livro, e depois numa bem orquestrada campanha de marketing (incluindo anúncios na página de Finanças do New York Times), Lawson projetou a ideia de que sextas-feiras 13 seriam dias especiais para o mercado de ações. Ele inventou que os corretores profissionais tinham medo da data, logo seria uma boa oportunidade para o público em geral comprar as ações que ele indicava (e que ele tinha interesse em valorizar, claro). De onde se vê que taurascatas também contribuem para a cultura popular.

 

 

Ruim para quem?

Um problema saliente para o estabelecimento pleno da cacoideografia é como definir de modo objetivo o que seria uma “ideia ruim”. Há uma escola de pensamento, ainda hoje muito popular em certos recantos das Humanidades, que propõe que não existem exatamente ideias ruins — ao menos, não para além, por exemplo, do senso-comum que faz da ideia de dirigir bêbado algo ruim —, mas apenas ideias incompreendidas: se uma ideia popular ou prevalente nos parece ruim, é porque a interpretamos de modo muito literal e não compreendemos sua verdadeira função.

Assim, terapias alternativas não seriam más ideias, porque seu objetivo real não é curar doenças de verdade, mas apenas reduzir o estresse e ajudar as pessoas a relaxar e encontrar uma “harmonia com a natureza” (seja lá o que isso for).

Em sua história do pensamento mágico, o arqueólogo Chris Gosden cita estudos antropológicos para argumentar que a crença, ainda comum em várias partes da África, de que certas doenças e desastres são causados por feiticeiros, não deve ser considerada irracional. Segundo ele, a busca pelo autor do feitiço e a especulação sobre seus motivos ocultos permite que tensões sociais e disputas familiares sejam articuladas e aliviadas.

Essa visão — de que o que parece, ao leigo desavisado, uma ideia ruim é apenas uma ideia cuja verdadeira função foi mal compreendida — tem forte apelo. Buscar “o verdadeiro papel” de uma bobagem evidente é um passatempo intelectual estimulante, comparável ao de tentar adivinhar, antes da última página, o verdadeiro culpado em um romance policial nonsense. Traz ainda o bônus de, às vezes, render títulos e prestígio acadêmico.

O problema com todo esse encantamento hermenêutico é que, embevecidos com ele, perdemos de vista as vítimas — as pessoas que morrem de câncer porque usaram terapias inúteis, ou os africanos (na maioria das vezes, mulheres) que são cruelmente linchados quando identificados como “feiticeiros” causadores de calamidades.

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Não é porque uma ideia ruim desempenha um papel social ou psicológico relevante que ela deixa de ser ruim: não é porque o nazismo devolveu a muitos alemães o senso de autoestima perdido na I Guerra Mundial que a doutrina deixa de ser atroz.

Também é importante resistir à tentação de projetar interpretações antropológicas recônditas sobre intenções práticas muito concretas: quem grita “vamos caçar uma bruxa!” não está, na maioria das vezes, lançando mão de linguagem poética para, na verdade, dizer “vamos rediscutir as relações de poder da tribo”. Está mesmo propondo que se encontre, persiga, torture e mate uma mulher inocente.

 

Irracional

Mas então, afinal, o que define uma ideia ruim como ruim? Sugiro o seguinte: uma crença e/ou proposta de curso de ação irracional. Como “irracional” também é um conceito meio fluido, podemos ir um pouco além: uma crença contrária às melhores evidências disponíveis, ou um curso de ação proposto que, de acordo com as melhores evidências disponíveis, é irrelevante ou contrário ao objetivo explícito enunciado.

O adjetivo “explícito” está aí para podermos escapar da armadilha interpretativa descrita na seção anterior: se o objetivo expresso é combater a COVID-19, então cromoterapia é uma ideia ruim, não importa se o quarto vai ficar lindo como as cores novas. Se a meta explícita é salvar vidas, entupir as pessoas de remédios não-testados e com efeitos colaterais graves é péssima ideia.

A cacoideografia tem futuro? Adoraria ver o campo florescer, e imagino que continuarei produzindo na área, mas até aí, como diz o provérbio, uma andorinha não faz verão. Sou um mero palpiteiro independente, não tenho um departamento universitário ou orientandos para quem empurrar minhas obsessões pessoais. Mas, quem sabe? Outros, mais bem posicionados, podem levar a tarefa adiante.

No mínimo, a descrição precisa e, tão importante quanto, crítica (muito do que deveria ser cacoideografia é, na verdade, trabalho de crentes, devotos e prosélitos) das ideias ruins vai ajudar a descobrir quais suas âncoras no senso comum ou na cultura geral da sociedade, quais as falácias que articulam — e, com isso, quais os melhores argumentos e abordagens para desmontá-las. Talvez, um dia, uma teoria geral a respeito do que torna uma ideia ruim social e psicologicamente viável venha a ser construída. Dissecar bolhas pode ser melhor do que apenas ficar tentando furá-las.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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