O debate sobre o debate

Apocalipse Now
28 ago 2021
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Demóstenes

 

Muita gente (eu inclusive) anda meio atordoada com a leniência com que a mídia mainstream — aquela que “todo mundo precisa acompanhar, goste ou não” — anda franqueando espaço de opinião a negacionistas da pandemia e, na esteira no mais recente relatório do IPCC, do clima, todos escribas (ou locutores) de viés conservador.

O episódio mais recente, a diatribe antivacinas de Alexandre Garcia na CNN, que levou a uma retratação oficial da emissora, foi apenas o ponto extremo de uma longa série: tivemos, ao longo da crise atual, cloroquiners correndo soltos em espaço nobre da Folha de S. Paulo, e comparações entre respeito ao consenso científico e “ditadura do politicamente correto” no Estadão.

Não que não haja bobagens à sinistra nesses mesmos espaços, de stalinistas de botequim a gente disposta a culpar o “neoliberalismo” por tudo que deu errado no Sistema Solar desde a extinção dos dinossauros, passando pelo pessoal do trololó psicanalítico, que segue autorizado a pontificar sobre o Alfa e o Ômega, o Aleph e o Tav.

Nesse aspecto, o contraste entre a retórica do tiozão anarco-conservador (é, eu sei, oximoro) do churrasco e a do psicanalista sofisticado mostra como diferentes ferramentas apelam para diferentes públicos: um encanta porque fala “a língua franca da gente simples”, o outro, porque soa vagamente incompreensível.

Ambos são impostores. O primeiro, ao atropelar distinções necessárias e contextos cruciais em seu “papo reto”, é muito menos transparente do que faz parecer; o segundo prefere aludir e insinuar a dizer porque, se articulasse o que pensa de modo inteligível, articularia apenas muitas platitudes e alguns absurdos. Para parafrasear Nietzsche, a maioria das pessoas tem medo de entrar na água e, olhando de fora, é muito fácil confundir turbidez com profundidade.

 

 

Liberdade, liberdade

Quando cobrados ou criticados pela baixa qualidade textual ou pelos disparates emitidos nos artigos de opinião que publicam (ou, no caso de rádios e TVs, nos quadros que produzem), veículos de mídia tendem a sacar três argumentos, todos, dentro de certos limites, válidos — mas muitas vezes, esticados para além da conta.

O primeiro é o da liberdade de expressão: colunistas e autores de “op-eds” (textos de opinião publicados em espaço próximo aos editoriais) têm o direito de escrever sobre o que quiserem. O veículo não pratica censura. O segundo, relacionado, é o da pluralidade: existe um conjunto de opiniões e pontos de vista divergentes na sociedade, e o jornal (ou revista, etc.) estaria servindo mal a seu público se não refletisse esse fato.

Razoáveis como são, tais argumentos não podem ser usados (ao menos não de forma honesta) para que o veículo fuja da discussão de seu dever de curadoria: existe um espaço a ser administrado, uma página em branco, um determinado tempo de transmissão ou consumo de banda, e alguém decide que pessoas e opiniões ocuparão esses vácuos. Não é “atentado à liberdade de expressão” quando um jornal se recusa a publicar uma carta de leitor, ou resolve demitir um colunista e substituí-lo por outro.

Quanto à pluralidade, não é porque existem (por exemplo) correntes neonazistas ou terraplanistas na sociedade brasileira que um veículo que se pretende mainstream irá, em nome desse valor, oferecer espaço a propagadores de tais ideias. Se houver necessidade de, pelo bem do interesse público, informar os cidadãos da existência desses grupos, o espaço correto é o da reportagem.

 

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Não é porque todo cidadão tem o direito constitucional de dizer (quase) tudo o que quiser que quem detém os meios de amplificar vozes se exime da obrigação de fazê-lo com responsabilidade. Qualquer um pode dizer qualquer coisa; mas a mídia pode e deve escolher para quem ou para quê vai apontar os holofotes. E os critérios que orientam essa escolha são, eles mesmos, alvo legítimo de debate público.

 

Responsabilidade

 

O terceiro argumento é o do mercado: exercemos sim nossa responsabilidade de curadoria, e quem julga se estamos fazendo ou não um bom trabalho é o público. Também é um argumento razoável, mas que se fragiliza quando usado para bloquear questionamentos: “Não gostou do colunista novo? Não curtiu a fala coloroquiner? Muda de canal!”

Descontada a grosseria, resta o fato de que mesmo quem muda de canal pode estar inclinado a produzir reflexão ou crítica. Críticos de gastronomia não se restringem a falar só sobre restaurantes de que gostam — por que críticos de mídia fariam diferente? Além disso, o jornalismo é um serviço público, ainda que prestado majoritariamente por entidades comerciais privadas. Esse é um arranjo que existe para minimizar a interferência do Estado (e do governante de plantão) sobre o conteúdo e a disseminação de informações, talvez, inconvenientes para quem ocupa posições de poder.

O caráter de serviço público gera responsabilidades — quando não legais, certamente morais — que uma operação apenas comercial não teria. É o entendimento de que essas responsabilidades serão respeitadas que dá ao jornalismo o direito de reivindicar prestígio frente à sociedade, e erige o muro separando o conteúdo jornalístico do entretenimento.

Ainda que gerações de executivos de grupos de comunicação tenham se esforçado para derrubar essa barreira, vista, nas décadas finais do século passado e até bem pouco tempo atrás, como entulho incômodo a complicar a vida do departamento de vendas (barreira que, nas novas mídias, como o YouTube ou o TikTok, efetivamente não existe), nos últimos tempos, para a mídia mainstream, ela não só voltou a ser valorizada, como converteu-se numa espécie de boia de salvação, medalha de honra, invocada para distinguir conteúdo “sério, profissional” daquele criado por “meros influencers”.

Fato é, se o mainstream quer usar a medalha no peito, agarrar-se à boia, seria melhor fazer por merecer.

 

 

Espelho torto

A alocação irresponsável de espaços de opinião, em vez de informar ou estimular debates relevantes, amplifica artificialmente debates irrelevantes (“a Terra é plana?”), gera falsa percepção de controvérsia em torno de temas que já são pacíficos entre quem realmente entende do assunto (“é preciso evitar a mudança climática?”, “é preciso tomar vacina?”) e aumenta a poluição informacional que já nos sufoca a todos. A imprensa mainstream, sob o pretexto de refletir a pluralidade existente na sociedade, acaba comportando-se como um espelho distorcido, daqueles de parque de diversões, tirando a imagem de sua correta proporção.

Claro, o reflexo jamais será perfeito. Há as preferências ideológicas dos donos e dos chefes de redação de cada veículo, há laços pessoais de amizade entre editor e colunista, há considerações de verve, retórica e talento.

Historicamente, sabe-se que esses espaços são vulneráveis a lobbies — a história da influência da indústria do tabaco na disseminação da “dúvida” sobre a relação entre fumo e câncer está muito bem documentada. A situação presente, no entanto, amplifica o potencial de dano dessas distorções, e é a consciência desse potencial ampliado que causa o espanto descrito lá no início deste artigo.

Grassa um mito, no meio jornalístico, de que considerações a respeito das consequências sociais daquilo que se publica estão fora da alçada do jornalista. O papel da imprensa é mostrar “a realidade como ela é”, e as pessoas que decidam o que fazer a respeito. É um mito ingênuo que, em sua face mais benigna, mitiga a tentação do jornalista em atuar como “engenheiro social”, dosando ou orientando a informação que chega ao público de acordo com sua visão política privada.

Mas o mito tem outra face, negativa, hipócrita, que é de dar ao jornalista ou veículo uma absolvição prévia frente a qualquer desastre causado ou estimulado por aquilo que se divulga. Tenta-se criar um falso dilema entre honestidade e responsabilidade. Não são valores incompatíveis: complementam-se.

 

 

Debate

Tão ingênuo quanto o mito da inocência social da mídia é o mito do valor intrínseco do debate, de qualquer tipo de debate. Existe uma imagem ideal do que seria um debate — as partes envolvidas discutindo e trocando evidências de modo aberto e honesto, mais preocupadas em chegar à verdade do que em “ganhar” do oponente ou “impressionar” a plateia. As afirmações de cada lado são mais testadas do que realmente defendidas.

Esses são, sem dúvida, debates que valem a pena. E são o tipo de debate que faz (ou deveria fazer) parte do dia a dia de cientistas e filósofos.

Existe outro modelo, este pouco menos ideal mas ainda bastante idealizado, em que o objetivo primordial é, sim, ganhar, mas como quem ganha um jogo — o processo do debate visto como um esporte intelectual, agradável para todos os participantes, onde mesmo os derrotados podem dizer que tiveram um bom exercício, estimulante, instrutivo e até divertido. Impressionar a plateia, quando há uma plateia, é um bônus valioso.

Trata-se do tipo de debate que rola em mesa de boteco, e suas conclusões não devem, em geral, ser levadas muito a sério. No máximo, são boas indicações para que os interessados em formar uma opinião encaminhem investigações mais aprofundadas.

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Mas essas não são as únicas modalidades. Há o debate vazio e artificial, usado como tática para impedir que certas medidas sejam tomadas, que certas decisões sejam implementadas, para produzir não conclusões, planos ou estimular mais estudos, mas para causar paralisia e confusão, quando não complacência.

Quando a imprensa confunde — ou finge confundir — o terceiro tipo com os dois primeiros, há uma quebra do princípio da responsabilidade para com o público e abre-se uma brecha perigosa no muro, já citado, entre informação e entretenimento.

Sei que muita gente acha que o ideal é combinar os dois, e até certo ponto é: informação chata não informa, dá sono. Mas, cedo ou tarde, chega-se àquele ponto mencionado nos Evangelhos em que o servo de dois senhores precisa decidir a qual vai servir para valer e qual vai menosprezar. Se a opção do mainstream passa a ser servir ao entretenimento e menosprezar a informação correta, então o melhor que nós do público temos a fazer é cancelar nossas assinaturas e cair no Zap e no TikTok.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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