Uma ideia comum, que circula em comunidades esotéricas e ocultistas pelo menos desde que o médico, padre e astrólogo italiano Marcilio Ficino (1433-1499) pirou na tradução de textos neoplatônicos e herméticos, no início da Renascença, é a da prisca filosofia, a sabedoria original – a, digamos assim, “verdade verdadeira” da qual todas as religiões, tradições, mitos e teorias científicas representariam meras distorções, simplificações malfeitas, paródias ou cópias parciais. Ecos dessa mesma ideia geral seguem aparecendo até hoje, como na subcultura dos deuses astronautas.
A prisca filosofia é, claro, um mito, uma fantasia conjurada por Ficino, seus colegas e sucessores, para sustentar o argumento de que as crenças e doutrinas dos místicos e esotéricos da Antiguidade eram compatíveis com o cristianismo, porque fluiriam da mesma fonte. Mas às vezes me pergunto se o conceito não teria aplicação válida em outro campo. Não o da religião, da magia ou da ciência, mas das teorias de conspiração – não uma prisca filosofia, mas um prisco conjuratio.
É uma impressão que me ocorre de tempos em tempos, voltando a atacar quando tomei contato com uma das variantes mais recentes da “doutrina” QAnon, o conjunto mais ou menos amorfo de alegações que orbita em torno da ideia central de que gente como Donald Trump e Jair Bolsonaro vem travando uma guerra secreta para salvar a civilização ocidental dos comunistas homoeróticos comedores de criancinhas.
O tropo das criancinhas vitimadas sempre esteve presente no imaginário QAnon, desde sua fase embrionária no “caso Pizzagate”, mas na versão mais recente a natureza do abuso infantil mudou: deixou de ser pedofilia e virou tortura para a extração de “adrenocromo”.
Medo e delírio
Adrenocromo é o nome de uma substância real, obtida naturalmente pela oxidação do hormônio adrenalina. A molécula também pode ser produzida artificialmente em laboratório. É usada em alguns medicamentos para estancar hemorragias. Nos anos 50, quando cientistas começaram a pesquisar drogas alucinógenas e produtos psicodélicos, especulou-se que o adrenocromo poderia ser um irmão do LSD. Inicialmente, aventou-se a hipótese de que a adrenalina estaria ligada à origem da esquizofrenia (hoje sabemos que não está) e, como se diz, uma especulação leva à outra.
A investigação do suposto potencial alucinógeno do adrenocromo não deu em nada. Em suas memórias, publicadas originalmente em 1991, o farmacologista americano Alexander "Sasha" Shulgin (1925-2014), famoso (ou infame) por ter popularizado o MDMA (ecstasy) e por ter sintetizado e testado em si mesmo mais de 200 moléculas psicoativas, escreve, sobre os derivados de adrenalina, que “a família do adrenocromo jamais foi aceita como sendo psicodélica” e que “é considerada apenas uma nota de rodapé interessante”.
As especulações feitas nos anos 50, no entanto, criaram vida própria, fora do meio científico. Aldous Huxley (1894-1963) cita a substância em “As Portas da Percepção” (de 1954), Anthony Burgess (1917-1993) menciona a droga “drencrom” em “Laranja Mecânica” (de 1962), Frank Herbert (1920-1986), famoso por ter criado a série de romances “Duna”, fala de adrenocromo no livro “Destination: Void” (de 1966) sobre uma nave espacial controlada por um banco e cérebros humanos enlouquecidos. E, talvez o mais crucial, o jornalista Hunter S. Thompson (1937-2005) descreve um suposto “barato” de adrenocromo em seu romance “Medo e Delírio em Las Vegas” (de 1971).
“Medo e Delírio” é considerado um marco cultural, uma espécie de autópsia da onda lisérgica dos anos 60. O livro mistura, a eventos reais vividos pelo autor, doses cavalares de alucinação, exagero e ficção. Thompson passou boa parte de seu tempo em Las Vegas, e na composição da obra, bêbado, chapado – ou ambos.
O trecho sobre adrenocromo – droga que, segundo o relato de Thomspon, foi-lhe oferecida por seu advogado – começa assim:
“O que é isso?”
“Adrenocromo”, ele disse. “Você não vai precisar de muito. Só um gostinho”. Peguei a garrafa e molhei a ponta de um fósforo de papel nela.
“É isso”, ele disse. “Esse negócio faz mescalina pura parecer refrigerante. Você vai ficar doido de pedra se tomar muito”. Lambi a ponta do fósforo.
“Onde você conseguiu isso?”, perguntei. “Não dá pra comprar”.
“Deixa pra lá”, disse ele. “É absolutamente puro”.
Balancei a cabeça, triste. “Jesus! Que monstro de cliente você pegou agora? Só existe uma fonte pra esse tipo de coisa...”
Ele assentiu.
“As glândulas de adrenalina de um corpo humano vivo”, disse eu. “Não presta tirar de um defunto”.
Ao diálogo amalucado segue-se a descrição de uma suposta “viagem” lisérgica de adrenocromo. Durante a filmagem da versão cinematográfica do livro, Thompson teria dito ao diretor Terry Gilliam que a parte sobre os efeitos psicológicos e fisiológicos do adrenocromo havia sido toda inventada.
Calúnia de sangue
Segundo QAnon, então, crianças estariam sendo sequestradas pelas elites globais esquerdistas – que podem ou não ser compostas por alienígenas reptilianos disfarçados – para sofrer torturas que as levam a produzir adrenalina, que é então extraída para ser consumida como adrenocromo por bilionários sommeliers de alucinógeno.
E aqui chegamos a um dos aspectos do prisco conjuratio de que falei no início: sequestro e tortura de crianças para a extração de fluidos corporais que serão consumidos com finalidade medicinal ou ritualística é o roteiro da “calúnia de sangue”, usada para perseguir, insultar, oprimir e matar judeus da Idade Média e até o presente.
Com casos notáveis registrados na Inglaterra no século 12, na Alemanha no 13 e, de forma bem mais dramática – e letal – na Itália no século 15, o folclore europeu e a tradição cristã (incluindo hagiografias, isto é, biografias “oficiais” de santos católicos) foram acumulando lendas sobre judeus envolvidos no sequestro, tortura e mutilação de criancinhas.
Esses rumores ofereciam narrativas “convenientes” e bodes expiatórios pré-fabricados para explicar o desaparecimento e morte dos pequenos (num ambiente onde, estima-se, cerca de 50% não chegavam aos dez anos de idade), e que permitiam que cristãos endividados zerassem seus débitos, queimando os credores na estaca. O historiador Gavin I. Langmuir (1924-2005) identifica aí o início da transição entre anti-judaísmo (a oposição ou aversão à religião judaica, ou a elementos de sua cultura) e antissemitismo (o ódio aos judeus enquanto unidade biológica, “povo” ou “raça”).
As primeiras lendas atribuíam o suposto crime a um desejo de vingança contra o cristianismo, mas depois evoluíram para a ideia de que o sangue da criança cristã seria necessário para algum tipo de ritual mágico, religioso ou medicinal. Essa forma – em que o sangue da vítima, obtido sob tortura, é o objetivo final – ficou conhecida como a calúnia de sangue.
A pesquisadora Magda Teter aponta que a disseminação ampla da calúnia e a explosão no número de atrocidades (essas, reais) cometidas contra judeus, em reação a ela, acompanha o desenvolvimento e a popularização do livro impresso, a partir do século 15. O que mostra que o poder das “fake news” de surfar na onda da inovação tecnológica não é uma novidade do século 21. Em seu livro “The Blood Libel”, Teter refere-se ao bispo-príncipe da cidade italiana de Trento Johannes Hinderbach (1418-1486), instigador de uma perseguição a judeus acusados da morte de um menino e da subsequente canonização da “vítima”, como autor de uma “sofisticada campanha de propaganda multimídia”.
Gosto ruim
Sobre o papel da recém-criada imprensa de tipos móveis, Teter escreve: “Embora de origem medieval, as acusações de assassinato ritual e calúnia de sangue enraizaram-se de vez na imaginação cristã europeia no início da Era Moderna, quando narrativas que até então tinham estado escondidas em crônicas monásticas, ou limitadas ao folclore local, foram incluídas em crônicas impressas, cosmografias e polêmicas de ampla circulação”.
O adrenocromo de QAnon não passa da calúnia de sangue dos primeiros livros impressos repaginada para a era dos aplicativos de mensagem e redes sociais. E mais uma vez fica clara a dependência entre as teorias de conspiração modernas e a tralha histórica do antissemitismo.
Assim como as conspirações sobre elites malignas (sejam elas financeiras, alienígenas, políticas ou tudo combinado) manipulando a história dos bastidores bebem nos Protocolos dos Sábios do Sião – fraude antissemita que, segundo David Icke, principal promotor da “hipótese” dos mestres reptilianos, previu “quase tudo que aconteceu” no século 20 – a fábula dos esquerdistas vampiros de adrenocromo segue a vereda aberta pela calúnia de sangue.
O prisco conjuratio, então, é o complexo de fantasias evocado pela visão antissemita do mundo, plasmado no par mitológico composto pela elite subversiva (o que é, em si, uma contradição em termos: porque o grupo que mais se beneficia do status quo, a elite, praticaria subversão?) e pela sede de sangue (ou de hormônio) extraído das crianças.
Uma questão que fica em aberto é até que ponto essas fantasias, quando conjuradas, trazem o sentimento antissemita consigo. É possível apenas importar a estrutura e aplicá-la, pulcra e intemerata, a terceiros – os comunistas, os loiros de olhos azuis, os venusianos, os botafoguenses – ou o ódio aos judeus sempre vem junto, como um gosto amargo no fundo do copo, um sabor vestigial que nada consegue tirar?
A multiplicação de mensagens antissemitas no bojo das teorias de conspiração excitadas pela pandemia é um fato documentado, inclusive no Brasil. A tendência também parece ser forte entre apoiadores americanos de QAnon, e nem vou entrar nas polêmicas – artificiais, cansativas e infrutíferas, porque projetadas para tanto – sobre os “apitos de cachorro” do governo Bolsonaro. David Icke, que jura que seu amor pelos Protocolos dos Sábios do Sião nada tem de antissemita, é autor de um livreto chamado “Hitler era um Rothschild?”, até onde sei sua única obra traduzida no Brasil.
O gosto amargo está aí, para todos nos que ainda não foram acometidos pela anosmia moral que também é pandêmica.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)