Drácula e os vícios do pensamento

Apocalipse Now
7 ago 2021
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Dracula

 

Uma das coisas que mais atrapalha a épica busca humana pela verdade é a épica busca humana pelo menor esforço. Um exemplo clássico dessa interferência é o fenômeno psicológico que alguns pesquisadores chamam de “fez sentido, parou”: assim que o cérebro, ao procurar uma explicação ou interpretação de algum fato, encontra uma narrativa que “faz sentido” – isto é, que aparenta algum grau de coerência interna e harmoniza bem com conceitos e preconceitos queridos –, o processo para. A narrativa ocupa seu nicho na ecologia mental e se torna quase imune a refutação ou mesmo exame crítico.

Da mesma maneira que várias outras heurísticas – atalhos que nos permitem tirar conclusões e formar convicções sem que precisemos realmente ter o trabalho de pensar no assunto – “fez sentido, parou” é, no dia a dia, o que poderíamos chamar de “bom o suficiente”, ou “dá pro gasto”. Se nem todas as inferências que produz são verdadeiras, um número grande o suficiente delas é ou uma aproximação razoável da verdade ou, falhando isso, pelo menos inofensivo. No longo prazo, a economia de tempo e esforço tende a compensar eventuais erros mais graves.

O problema, claro, é que locuções como “no longo prazo”, “um número grande o suficiente”, etc., em sua complacência, mascaram as ocasiões em que o mecanismo de “fez sentido, parou” induz a erros com consequências graves – num diagnóstico médico, por exemplo – e como a heurística, se transformada em hábito ou vício, acaba alimentando teorias de conspiração e fazendo com que hipóteses tresloucadas pareçam muito mais sólidas do que são na realidade.

“Fez sentido, parou” é especialmente insidioso quando vira atalho favorito de gente erudita ou instruída: quando se tem uma enciclopédia na cabeça, é muito fácil achar conexões esdrúxulas que “soam” brilhantes, são confortáveis emocionalmente e “fazem sentido”.

 

Vlad Tepes

E aqui chegamos àquele momento em que insiro um exemplo trágico vindo da pandemia – mas, ora bolas, é domingo, o mundo já anda pesado demais e nas últimas semanas escrevi mais do que minha cota de artigos sobre temas urgentes (para quem perdeu, tem este aqui e este outro aqui). Então, tomo a liberdade de explorar um caso benigno (na medida do possível) de “fez sentido, parou”: a identidade do Conde Drácula.

Desde que os historiadores Raymond T. McNally e Radu Florescu publicaram a primeira edição de sua obra “In Search of Dracula”, em 1972, pelo menos três gerações de fãs de histórias de vampiros – e seus pais, amigos, colegas de escola, avós e namorados – cresceram convencidas de que o Conde Drácula do romance clássico de Bram Stoker (1847-1912) é uma elaboração ficcional do príncipe romeno Vlad III Draculea (1431-1476), conhecido pela alcunha “Tepes”, ou “O Empalador”, por conta do hábito de torturar prisioneiros fazendo seus corpos serem trespassados por estacas ou lanças – isto é, empalados.

Esse costume bárbaro, é bom destacar, foi-lhe atribuído em histórias escritas, em sua maioria, por seus inimigos, e publicadas após sua morte. O medievalista romeno Petre P. Panaitescu (1900-1967) escreve, em ensaio publicado num volume dedicado à vida de Vlad III, que “embora Vlad tenha sido, sem dúvida nenhuma, um príncipe cruel, os crimes terríveis atribuídos a ele devem ser considerados, ao menos em parte, exageros ou falsificações”.

Seja como for, a identidade entre o príncipe medieval “sanguinário” e o conde vitoriano “sedento de sangue” está de tal forma sedimentada na consciência popular que praticamente nenhuma produção recente envolvendo o Drácula ficcional ousa ignorar o Draculea histórico.

Filmes como “Drácula de Bram Stoker” (Francis Ford Coppola, 1992) e o mais recente “Drácula, a História Nunca Contada” (Gary Shore, 2014) usam o elo como gatilho de seus enredos. A película de Coppola, em especial, ao evocar o nome de Stoker no título, reforça a impressão de que a identidade entre o príncipe romeno e o vilão fictício estava já clara no romance original, publicado em 1897.

Isso, no entanto, parece não ser verdade. Segundo as pesquisas mais recentes, as gerações influenciadas por Florescu e McNally foram vítimas de um caso gótico-romântico de “fez sentido, parou”.

 

Nobre ou guardião?

É inegável que Bram Stoker, o autor do romance “Drácula”, sabia alguma coisa da história da Romênia, incluindo o fato de que a região da Valáquia havia sido governada por um certo Drácula, que lutara, no fim da Idade Média, contra o Império Otomano para preservar a independência de suas terras. No capítulo 3 do livro, vemos o personagem Drácula falar sobre as glórias passadas de sua família (ou seriam as suas próprias? Valho-me aqui da tradução de Theobaldo de Souza, para a L&PM):

 

“E como e quando nos redimimos e desagravamos da grande vergonha de minha nação, a ignomínia de Cassova, quando os pavilhões dos valáquios e dos magiares tiveram de se curvar diante do crescente? Quem foi o vingador senão Voivode, de minha altiva raça, que cruzou o Danúbio para bater o turco em sua própria terra? Este foi um Drácula legítimo! Triste foi quando seu próprio e desfibrado irmão, após a sua morte, vendeu seu povo ao turco insidioso, esmagando-o com o estigma da escravatura! Não foi, na verdade, o seu Drácula quem inspirou aquele outro de sua alta estirpe que mais tarde, de tempos em tempos, conduziu suas tropas através do grande rio, para lançá-las contra a Turquia?”

 

Até que ponto essa narrativa é historicamente precisa, e pode ser conectada a eventos na vida de Vlad III? Na edição crítica da WW Norton, o trecho é sinalizado com uma nota de rodapé, onde se lê:

“A despeito da tentativa de McNally e Florescu de ligar essa galante defesa a um incidente real na vida de Vlad Tepes, que eles veem como o Drácula histórico, este incidente permanece historicamente nebuloso”.

Há várias inconsistências entre o relato que o Conde Drácula faz de sua família (ou seu suposto passado) e a realidade histórica. Várias dessas contradições são mencionadas pela pesquisadora Elizabeth Miller no ensaio “Filing for Divorce: Count Dracula vs. Vlad Tepes” (“Pedindo Divórcio: Conde Drácula vs. Vlad Tepes”), incluindo a de que o Drácula de Stoker se apresenta como um “szekely” (literalmente, “guardião da fronteira”, povo descendente dos bárbaros hunos), enquanto o Vlad Tepes real pertencia a outra etnia, a dos valáquios. Ela aponta outros problemas:

“Por que, perguntam algumas pessoas, ele [Stoker] fez de Drácula um conde transilvaniano, em vez de um voivode valáquio? Por que seu castelo está situado no Passo Borgo, e não em Poenari? Por que o Conde Drácula é um boiardo, membro da classe nobre com que Vlad estava em conflito contínuo?”

Miller conclui: “Há uma resposta muito simples para essas questões: Vlad Tepes é Vlad Tepes, e o Conde Drácula é o Conde Drácula”.

 

“Fez sentido”

A ideia de que Bram Stoker tinha um conhecimento razoável sobre a carreira político-militar de Vlad III ou, pelo menos, sobre o folclore em torno desse vulto histórico (o Museu Britânico já contava em seu acervo, nos anos 1890, com algumas das lendas medievais sobre as atrocidades atribuídas do empalador), e usou essa informação para construir seu Conde Drácula sofreu um golpe decisivo com a descoberta (por McNally e Florescu!), poucos anos após a publicação de “In Search of...”, das anotações originais de Bram Stoker: a lista do material de pesquisa que ele havia usado para compor sua história de vampiro.

As notas, leiloadas após a morte do autor em 1913, haviam sido adquiridas por uma biblioteca nos Estados Unidos em 1970. Havia ali muita coisa sobre folclore e geografia da Europa Oriental, mas sobre a história da Romênia a fonte principal parece ter sido um livro de 1820, escrito não por um historiador, mas por um diplomata, e com o título “An Account of the Principalities of Wallachia and Moldavia: with various Political Observations Relating to Them” (“Um Relato dos Principados de Valáquia e Moldávia: com várias Observações Políticas Sobre Eles”).

O nome “Drácula” é citado exatamente quatro vezes no livro, e o autor, William Wilkinson, cônsul britânico honorário em Bucareste, parece confundir Vlad III Draculea com seu pai, Vlad II Dracul. Nenhuma das quatro menções diz o que quer que seja sobre atrocidades ou inimigos empalados. O nome “Vlad Tepes” não aparece. O livro menciona que líderes chamados Drácula lutaram contra os turcos – a mesma informação que, embelezada, aparece no relato do Conde.

O que pesquisadores atuais, como Miller e Clive Leatherdale, consideram mais plausível é que Stoker – que vinha, nos rascunhos, chamando o vilão de seu romance-em-progresso de “Conde Wampyr” – decidiu simplesmente mudar o nome do personagem depois de encontrar, no texto de Wilkinson, a seguinte nota de rodapé:

“Drácula, na língua valáquia, significa Demônio. Os valáquios tinham, na época, como têm hoje, o costume de apelidar assim qualquer pessoa que chame a atenção por ser muito corajosa, maliciosa ou cruel”.

 

Leatherdale, em sua edição anotada do romance, “Dracula Unearthed”, observa:

“Quando Van Helsing [o líder dos caçadores de vampiros que perseguem Drácula no livro de Bram Stoker] descobre a tumba senhorial no castelo, encontra uma só palavra inscrita ali – Drácula. Não Vlad Tepes, não Vlad o Empalador, não Drácula III (...) A palavra Drácula está sozinha, sugerindo que Stoker não sabia mais nada”.

 

“Parou”

É impossível, evidentemente, provar que as notas leiloadas em 1913 contivessem toda a pesquisa de Stoker – talvez ele tenha lido mais sobre os Dráculas, e sobre Vlad Tepes em particular, em fontes que não ficaram registradas. Em sua autobiografia, Stoker menciona dois encontros com um amigo húngaro, Arminius Vambery (1832-1913). Vambery poderia ter falado sobre Vlad Tepes em alguma dessas ocasiões? Claro. Mas não há registro disso.

Para além da ausência de evidência, no entanto, há o fato de que os parágrafos e a nota de rodapé do livro de Wilkinson são suficientes para explicar tudo o que há de particularmente “draculeano” no personagem Conde Drácula. Apelos à vida ou à lenda de Vlad Tepes são supérfluos, desnecessários.

A maioria das pessoas que lê ou ouve a respeito da associação entre o (suposto) empalador e o vampiro, no entanto, para por aí – a história é boa, “faz sentido” (superficialmente), é, de certa forma, confortável: um daqueles fragmentos de erudição trivial que nos faz sentir mais bem informados do que, de fato, somos.

Algum problema nisso? Neste caso específico, não (a menos que você encontre um chato como eu numa festa). É o produto inócuo de um cacoete comum; mas o cacoete requer prestar atenção.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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