Os enquadramentos da pandemia

Apocalipse Now
20 mar 2021
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"Enquadramento" é a estratégia de tentar controlar a forma com que uma questão em debate é vista pelo público. Enquadramentos podem ser armados como uma espécie de funil conceitual, muitas vezes dirigindo a discussão para uma conclusão preconcebida, ao predefinir (ou redefinir) qual o sistema de valores e quais os pressupostos de fundo que serão considerados na avaliação do problema.

Por exemplo, a frase "você acha certo o governo poder punir você pelo conteúdo do seu sangue?" soa sinistra, com até alguns tons de eugenia e fascismo no meio, mas alguém poderia dizer que esse é, basicamente, o princípio por trás da proibição de se dirigir alcoolizado.

Claro que, no caso da lei contra motoristas bêbados, o governo na verdade pune as pessoas por colocar a vida dos outros em perigo: o conteúdo do sangue é avaliado por ser um indicador determinante desse perigo, na circunstância específica de quem está conduzindo um veículo automotor, e não por fetichismo, ou como algo pecaminoso em si, por si. A mesma taxa de álcool no sangue que pode mandar alguém para a cadeia, caso a pessoa esteja ao volante, é perfeitamente inocente se o mesmo cidadão estiver no banco de trás de um táxi, ou na cama.

Mas é assim que o enquadramento funciona: como num filme, o quadro mostra parte da cena diante das câmeras, e omite o resto. O enquadramento também inclui profundidade de campo: o que vai ser visto com clareza, magnificado em primeiro plano, e o que vai ficar minúsculo, desfocado, ao fundo. Num enquadramento ruim (ou desonesto), o que é omitido ou minimizado acaba sendo, de fato, mais importante do que o mostrado.

Muito das chamadas “guerras culturais” das últimas décadas, travadas principalmente ao longo do eixo esquerda-direita do espectro político (mas com diversas escaramuças laterais ou transversais a ele), é fundamentalmente formado por batalhas de enquadramento.

Por exemplo, as intermináveis discussões sobre o que seriam comparações razoáveis (ou não) entre líderes, governos, regimes políticos, etc., são, fundamentalmente, disputas sobre enquadramento: se este e aquele tirano cabem ou não no mesmo “quadro” (histórico, ético ou moral). Trata-se de uma disputa que pode ser, ela mesma, enquadrada: sob o ponto de vista das vítimas, por exemplo.

Não é de estranhar, portanto, que as mesmas armas e tecnologias discursivas tenham sido adaptadas para as trincheiras da pandemia, a partir do momento em que líderes negacionistas passaram a tratar problemas objetivos de saúde pública como questões ideológicas (o que, aliás, remete ao exemplo inicial do motorista embriagado, encontrado originalmente num website dito “anarcocapitalista”, ou “libertário”).

 

 

Fatos e mitos

Ter consciência do poder dos enquadramentos é importante para debelar um mito muito resistente, o de que os “fatos falam por si”. Até falam, se apresentados de forma honesta, na devida proporção e se nenhum dado disponível, relevante para a questão em debate, for omitido.

Mesmo atendidas essas condições, não é raro que, dependendo da ordem em que são apresentados e das ênfases aplicadas (que, mantendo a metáfora cinematográfica, poderíamos comparar a efeitos de iluminação), os mesmos fatos possam parecer dizer coisas muito diferentes. Se acrescentarmos omissões deliberadas e distorções de foco, a manipulação do enquadramento está completa.

 

O quadro necessário

É importante notar que nem todo enquadramento é maléfico ou desonesto: de fato, dadas as limitações da cognição humana, enquadramentos são não só necessários, como inevitáveis.

Não existe um ponto de vista absoluto, pendurado fora do Universo, capaz de abarcar a totalidade da existência e de emitir juízos perfeitos e completos. Mas, da mesma forma que o fato de que todo jogo de futebol requer um árbitro não justifica, e nem desculpa, instâncias de arbitragem incompetente ou corrupta, o fato de que toda questão requer um enquadramento não deve ser usado para dar passe livre a quadros desonestos ou inadequados.

Há quase um século, o físico Sir Arthur Eddington (1882-1944), defendendo o uso de modelos matemáticos simplificados em Física, dizia que “uma aproximação legítima é mais do que apenas um mal necessário; é o discernimento de que certos fatores — certas complicações do problema — não contribuem, de modo apreciável, para o resultado”. Assim como um bom modelo, um enquadramento honesto não deve jamais excluir coisas que “contribuem, de modo apreciável, para o resultado”.

Exemplos de enquadramento inepto (ou malicioso), no contexto pandêmico atual, podem ser multiplicados quase ao infinito. Um que já vem se tornando clássico é o que chamo de naturalizante. Soa mais ou menos como isto aqui: "É preciso compreender que, dada a virulência do patógeno, e a presença de variantes mais transmissíveis, um aumento no total de óbitos seria inevitável".

Este enquadramento, centrado no papel da natureza no surgimento e agravamento da pandemia, omite uma série de dados essenciais, excluindo-os do campo de visão e debate.

O mais saliente é o papel extremamente relevante da ação humana, principalmente da responsabilidade da liderança política. O que leva ao surgimento de novas variantes do vírus é sua livre circulação: variantes aparecem quando o vírus se reproduz, e as oportunidades de reprodução aumentam na medida em que aumenta o número de pessoas infectadas.

Ações e campanhas para conter o crescimento desse número – distanciamento social, restrições de movimentação, a compra de vacinas em quantidade adequada e na hora certa – deveriam ter sido adotadas por quem tinha a autoridade e a responsabilidade de fazê-lo, e não foram. Atribuir o agravamento da pandemia aos azares da natureza e à variabilidade do vírus é como culpar o iceberg pela falta de botes salva-vidas no Titanic.

Outro enquadramento maroto usado, num contexto muito próximo, é o de lançar a responsabilidade “nas pessoas”, em geral (por resistirem às orientações sobre uso de máscaras, distanciamento, etc.), omitindo do quadro o poder extraordinário das autoridades – seja seu poder legal, conferido pelo cargo, ou seu poder simbólico, como exemplo para o público – que, como bem define o Princípio de Peter Parker (ou Axioma de Stan Lee), implica responsabilidades extraordinárias.

 

Contrabando

Dar a devida relevância relativa a diferentes preocupações é a ferramenta fundamental do enquadramento. Isso aparece com especial clareza em dicotomias como “saúde ou economia” e “liberdades individuais ou saúde pública”. Enquadramentos desonestos tendem a tratar os polos de dicotomias assim como perfeitamente independentes entre si ou, ao contrário, como se estivessem envolvidos numa disputa de soma zero: tudo que se faz em benefício de atender a uma prioridade será, necessariamente, em detrimento da outra.

O que, numa análise racional, não faz sentido. Uma população doente prejudica a economia; uma população acuada não consome. E todo exercício de direito fundamental é limitado pelos direitos fundamentais das pessoas ao redor – meu direito de ir e vir termina na porta da casa do vizinho.

Direitos, afinal, não existem desligados de responsabilidades por eventuais danos causados em seu exercício: você pode reformar seu apartamento, mas é responsável caso sua obra danificar a fundação do prédio.

Um instrumento um pouco mais sutil é o contrabando de premissas: a conversa que já se inicia “no meio”, pressupondo a realidade de fatos e a validade de valores que, a rigor, deveriam ser estabelecidos, pactuados, aceitos ou rejeitados antes do argumento chegar ao ponto em que parece, de repente, começar.

Esse truque, quando bem-sucedido, gera a impressão de que as conclusões da parte omitida da conversa são verdades autoevidentes, ou parte de um amplo consenso científico ou social – o que pode muito bem não ser (no caso de um argumento desonesto, quase nunca é) o caso.

 

O óbvio

Muitas vezes, passar essa falsa impressão de consenso prévio é o verdadeiro objetivo de quem faz o enquadramento. Alguém que diz, por exemplo, “esta lei não deve passar, porque se for aprovada, mulheres poderão obter abortos em hospitais públicos” e não é imediatamente confrontado com um “e daí?” ou “qual o problema?” já obteve o assentimento tácito da plateia para a premissa, altamente discutível, que toda e qualquer interrupção de gravidez é, em si, um mal absoluto.

No debate político, a tática de deixar premissas controversas ou não-demonstradas fora do argumento explícito é comumente usada como uma espécie de teste de lealdade, uma senha, um “aperto de mão secreto”. Uma pessoa que pergunta “qual o problema?“ diante do enunciado de algo que o interlocutor deseja apresentar como um absurdo autoevidente – digamos, “o PT vai voltar”, ou “haverá privatizações” – não é “da tribo” e deve ser tratado como forasteiro (ou inimigo).

No contexto da pandemia, esse tipo de contrabando de premissa mambembe – no limite, uma tentativa de pressupor, como dado bruto da realidade, exatamente aquilo que o argumento deveria estar se esforçando para estabelecer – é muito comum nas discussões sobre tratamentos ditos alternativos, ou “precoces”.

Quem aponta para uma lista de países com baixo índice de mortalidade que, supostamente, estão usando cloroquina (ou ivermectina, ou qualquer outra coisa) ou para sites anônimos agregadores de estudos científicos que supostamente “provam” que cloroquina (ou ivermectina, ou qualquer outra coisa) funciona para COVID-19, está tentando vender, por baixo dos panos e como se fossem fatos inquestionáveis, uma série de afirmações altamente controversas, a saber:

 

Esses países realmente estão usando tal medicamento de forma sistemática e generalizada.

Os dados desses países são confiáveis, e não há subnotificação relevante em nenhum deles.

Há uma relação de causa e efeito bem estabelecida entre o medicamento citado e os números apresentados.

O site anônimo é confiável.

Os estudos agregados no site anônimo têm boa qualidade.

A análise feita no site anônimo é correta, competente e relevante.

 

É extremamente provável que nenhuma dessas afirmações seja verdadeira (para saber por quê, vale a pena dar uma olhada aqui e aqui). Se forem, cabe ao argumentador demonstrá-lo, antes de esperar que o levemos a sério.

Este, aliás, é outro ponto que merece reflexão, o do direito epistêmico, ou: o que me dá o direito de esperar que me levem a sério quando digo isto ou aquilo? Muita gente parece achar que, assim como vida, liberdade e busca da felicidade, direito epistêmico é algo conferido igualmente a todos pelo Criador, no instante da concepção ou nove meses depois. Não é. Mas esse assunto fica para outro artigo.

É óbvio que o uso de expressões como “é óbvio” representa um pedido velado de permissão para apresentar uma conclusão sem construir, de forma explícita, o caminho que leva até ela. Como a maioria das pessoas é muito educada, a permissão quase sempre vem. Mas deveríamos ser mais cuidadosos com o que aceitamos, graciosamente, presumir para agradar a nossos interlocutores. Enquadramentos não são meras molduras: são parte ativa, ainda que silenciosa, do argumento.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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