O desencanto do Outro Mundo

Apocalipse Now
30 jan 2021
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O jornal The New York Times anuncia que o milionário Robert Thomas Bigelow, que fez fortuna em hotelaria e hoje investe em pesquisa aeroespacial, na caça de discos voadores e na investigação de fenômenos paranormais que têm lugar numa fazenda mal-assombrada, decidiu oferecer prêmios acumulados de US$ 1 milhão para os melhores argumentos e linhas de evidência em defesa da ideia de que a personalidade sobrevive à morte do corpo. Inscrições estão abertas até 28 de fevereiro, relatórios devem ser submetidos até 1º de agosto e os ganhadores serão anunciados em novembro.

O relatório deve ter no máximo 25 mil palavras, o que é o tamanho de um ensaio longo (a maioria dos artigos publicados nesta revista tem menos de 2 mil palavras; uma edição em inglês de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, chega a mais de 150 mil). Dada a vasta literatura sobre o assunto, acumulada pelo menos desde que a sombra de Enkidu comunicou-se com Gilgamesh, lá se vão uns quatro mil anos, Bigelow está esperando de seus candidatos um fantástico poder de concisão.

O prêmio oferecido pelo milionário não é exatamente algo inédito, e nem se mostra especialmente generoso. O inventor das máquinas Xerox, Chester Carlson (1906-1968), por exemplo, não só financiou a carreira científica de Ian Stevenson (1918-2007) em busca de provas (nunca encontradas) da realidade da reencarnação, como ainda deixou, ao morrer, uma doação de US$ 1 milhão para a Sociedade Americana de Pesquisa Psíquica.

Mas o caso mais pitoresco provavelmente é o do minerador James Kidd (1879-1949), descrito por Milbourne Christopher (1914-1984) em seu livro Search for the Soul. Kidd, para todos os efeitos um homem de vida modesta e meios limitados, desapareceu em 1949, sem deixar família.

As autoridades declararam-no oficialmente morto em 1956, e o inventário revelou não apenas um patrimônio considerável, de mais de um quarto de milhão de dólares, como um testamento de próprio punho deixando todos os seus bens (exceto os custos do funeral e de um serviço religioso) para “a pesquisa de alguma prova científica de que a alma deixa o corpo humano após a morte”. Kidd, aparentemente semianalfabeto, completava: “Acho que deviam um dia tirar uma fotografia da alma deixando o humano na morte”.

Uma batalha judicial, envolvendo tanto supostos parentes de Kidd que viveriam no Canadá quando universidades, igrejas e pesquisadores independentes, todos disputando a herança, seguiu-se e durou de 1964 a 1972, quando o patrimônio de Kidd foi entregue à Sociedade Americana de Pesquisa Psíquica, a mesma que já havia se beneficiado da doação de Chester Carlson.

 

Girando em círculos

Claro, se os legados de Carlson e Kidd tivessem gerado algum resultado contundente, Bigelow não precisaria oferecer seu prêmio agora, quase 50 anos depois. A década de 1970, quando ambas as heranças foram postas em uso na caça aos espíritos, marcou a explosão do interesse em experiências de quase-morte (EQMs), trazida pelo trabalho do médico americano Raymond Moody, e por visões do leito de morte, estudadas por Karlis Osis (1917-1997). A diferença entre os fenômenos é que EQMs são descritas pela própria pessoa que teria escapado da morte e retornado, enquanto as visões são relatadas por médicos ou enfermeiros que descrevem as últimas palavras ou impressões narradas por pacientes que realmente morreram.

Anos e anos de pesquisa sobre esses temas falharam em convencer a comunidade científica de que EQMs ou visões do leito de morte trazem alguma informação válida sobre o Além, incluindo o dado crucial de que se haveria ou não algo “Além”, para começo de conversa. EQMs são melhor explicadas por diversos tipos de processo alucinatório, e visões do leito de morte são, além de possivelmente alucinatórias, relatos de segunda mão.

Desde a fundação da Sociedade de Pesquisa Psíquica britânica — primeira organização dedicada a estudar cientificamente a questão da sobrevivência da alma — em 1882, a busca por “prova científica” de que a personalidade pode existir sem o corpo continua onde sempre esteve: vasculhando um quarto escuro em busca de um gato preto que provavelmente nem está lá.

É improvável, para dizer o mínimo, que o concurso de redação lançado por Bigelow venha a mudar isso. Chama a atenção, porém, o fato de o milionário pedir textos, argumentos, não o desenho de experimentos ou prova física. Isso desaponta. A história da pesquisa empírica sobre a imortalidade da alma guarda episódios fascinantes, afinal.

 

21 Gramas

O filme de 2003 Vinte e Um Gramas, realizado pelo cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu (que depois viria a receber dois prêmios Oscar, por Birdman e O Regresso), deve o título à lenda de que este seria o peso da alma humana. Essa lenda, pouca gente sabe, tem uma origem científica, ou quase. Começa com a publicação em 1907, por Duncan McDougall (1866-1920), de um "paper" no Journal of the American Society for Psychical Research.

McDougall preparou um leito hospitalar montado sobre uma balança, e convidou voluntários — pacientes terminais de doenças como tuberculose — a morrer nele, garantindo que não haveria dor ou desconforto adicionais em relação à morte numa cama de hospital comum.

O primeiro voluntário morreu após três horas e quarenta minutos de repouso no leito especial, que registrou uma perda de 0,75 onça – em unidades civilizadas, 21,26 gramas. Este primeiro resultado, ao que parece, foi o que deu origem à lenda dos "21 gramas".

Mas esta não é a história completa: ao todo, McDougall realizou seis experimentos do tipo com seres humanos, e os resultados ficaram longe de ser consistentes. O segundo voluntário, por exemplo, perdeu uma onça e meia (42,5 gramas) em duas etapas, uma quando parou de respirar e outra, quando o coração parou de bater. Outro resultado encontrado foi de três oitavos de onça (10,6 gramas).

McDougall também usou seu leito-balança para pesar cães antes e depois de sacrificá-los, concluindo, a partir disso, que o melhor amigo do homem é, na verdade, um animal desalmado.

O trabalho do médico americano foi atacado, já na época de sua publicação, por questões tanto lógicas quanto metodológicas. Um ponto crucial seria o de determinar o momento exato da morte. Como fixar isso? Além do quê, outras variáveis — evaporação d’água, esvaziamento dos pulmões — poderiam muito bem estar envolvidas, alertaram os sábios da época. Para completar, a cama-balança tinha uma série de problemas mecânicos.

Logo em seguida, outro cientista americano, H.L. Twining — sobre o qual não consegui mais informações biográficas —, numa série de experimentos que hoje provavelmente fariam comitês de ética em pesquisa entrar em convulsões, dedicou-se a lacrar camundongos em tubos de vidro, apoiar os tubos em balanças e esperar que os roedores morressem sufocados. O lacre garantia que coisas como excreção, respiração ou transpiração não afetariam o resultado.

Nenhuma diferença de peso foi detectada entre o ante e o post mortem.

 

Íons da alma

Durante um congresso de pesquisa paranormal conduzido na Dinamarca em 1921, o “investigador psíquico” britânico Hereward Carrington (1880-1958) propôs o uso de uma versão adaptada das câmaras de nuvem usadas por físicos para detectar a trajetória de partículas subatômicas eletricamente carregadas a fim de determinar o formato dos espíritos, revelando “os íons da alma”.

A câmara de nuvem havia sido inventada por Charles Wilson (1869–1969) em 1911. Por sua criação, Wilson viria a ser um dos ganhadores do Nobel de Física de 1927. Era, portanto, tecnologia novíssima quando Carrington lançou a proposta.

Daria até para escrever um livro inteiro sobre esse hábito recorrente de proponentes de hipóteses esotéricas ou pseudocientíficas, de achar que a ciência de ponta da época em que vivem deve, necessariamente, confirmar suas ideias malucas (como fazem com a Física Quântica hoje), mas o interessante aqui é que, a longo da década de 1930, alguns cientistas acabaram pondo o plano de Carrington em prática.

Os detalhes dos experimentos realizados são um pouco mais complexos do que isso, mas em essência o trabalho envolvia sacrificar animais no interior de câmaras de nuvem (ou câmaras de Wilson, como também são conhecidas) e esperar para ver que padrões de condensação surgiriam.

Houve alguma controvérsia inicial quanto aos resultados, mas em 1939 a publicação Clould Chambers Investigations in Post Mortem Ions, de R.A. Watters e William B. Johnston, concluiu que as nuvens e manchas vistas nas câmaras após a morte dos animais eram produzidas pela interação do vapor d’água com os gases da decomposição do falecido, e não pela passagem dos íons do espírito.

 

Quarto escuro

Dado o histórico desse tipo de estudo, resta uma questão que talvez ainda mereça ser estudada: por que as pessoas insistem? Depois de quase 150 anos vasculhando o quarto escuro, seria razoável aceitar que o gato nunca esteve lá ou, ao contrário, assumir, como artigo pessoal de fé, que está, sempre esteve, mas que a ciência é inadequada para encontrá-lo. Afirmar a adequação da ciência para, no instante seguinte, desmerecer um século e meio de resultados negativos faz muito pouco sentido.

Há alguma escrita acadêmica (por exemplo, no livro Secular Spirituality, da historiadora Lynn Sharp) que enxerga a busca “científica” por provas de sobrevivência da alma como uma reação ao processo de “desencantamento do mundo” descrito por Max Weber (1864-1920). Curiosamente, Weber descreve o processo como um em que “tecnologia e matemática” substituem “meios mágicos e preces”. Nesse sentido, uma compreensão científica do mundo dos espíritos seria menos um “reencantamento”, isto é, uma reação contrária, e muito mais uma extensão do desencantamento ao além-túmulo.

Seja como for, essa busca por um desencantamento do pós-vida que, ao mesmo tempo, confirme sua existência — poderíamos chamar isso de uma busca pela simultânea realização e banalização do pós-morte — é algo de forte apelo: foi, afinal, um objetivo que moveu intelectuais como Carrington, milionários-celebridades como Bigelow e Carlson e homens simples como Kidd.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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