Um bom jeito de começar uma conversa que não termina nunca é perguntar “o que é a verdade?”. Em tempos pré-pandêmicos, esse era o tipo de questão capaz de manter as garrafas de cerveja reproduzindo-se alegremente sobre a mesa do bar.
Mas, pondo a filosofia de boteco de lado: no dia a dia, a chamada “teoria da correspondência da verdade”, somada ao princípio da implicação lógica, costuma bastar. Nessa chave, uma afirmação é verdadeira se corresponde (daí, “correspondência”) aos fatos. E uma afirmação que decorre logicamente de uma afirmação que corresponde aos fatos também será, por força da necessidade, verdadeira.
Podem-se aplicar infinitas camadas de sutileza e problematização a esse par de critérios, mas quando tratamos de alegações do tipo “tem um ônibus desgovernado vindo nesta direção, logo, se não nos mexermos, seremos atropelados”, a teoria da correspondência, mais implicação lógica, dá bem conta do recado.
Um aspecto comumente negligenciado quando se fala em definir “verdade” é o da emoção. A sensação de ter acesso à verdade — o barato da verossimilhança, digamos — é um estado emocional, quase sempre, recompensador e prazeroso.
Quando “aceitamos a verdade” e as “escamas nos caem dos olhos”, há satisfação, tranquilidade, talvez surpresa (“como não percebi isso antes?”), um senso de coerência que ganha corpo à medida que a nova verdade se ajusta às demais, e um alvorecer de esclarecimento: o mundo se torna mais claro, límpido, ganha luz. Coisas até então obscuras passam a fazer sentido. E uma vez assimilada, a verdade é como um cantinho seguro da mente, um cobertor quentinho das ideias.
Satisfazer o vício
Assim como outras fontes de prazer, a sensação da verdade incentiva comportamentos: uma vez tendo sentido o barato da verossimilhança, tendemos a buscar mais. E daí encontramos dois problemas — um, novas verdades, a partir de um certo ponto, tornam-se mais difíceis de encontrar e de compreender, ou mostram-se menos relevantes; dois, muitas verdades têm consequências desagradáveis, um custo emocional que se sobrepõe aos efeitos positivos. Pior, podem nos obrigar, por coerência, a abrir mão de “verdades” — cantinhos seguros, cobertores quentinhos — adotadas anteriormente.
Dependendo do contexto em que nos encontramos, há verdades que custam caro também em termos sociais: um membro de uma comunidade criacionista, por exemplo, corre o risco de perder amigos e estressar parentes caso decida aceitar a realidade da evolução. O mesmo problema pode se manifestar em outros contextos, como o político, o ideológico e, até mesmo, o profissional.
A criatividade humana, no entanto, não se deixa derrotar, e ao longo da história — provavelmente, desde a pré-história — desenvolvemos maneiras de conquistar o prazer da verossimilhança sem a necessidade de aceitar verdades verdadeiras. Um desses modos é substituir o critério de correspondência aos fatos, mais implicação lógica, pelo de coerência ideológica, mais implicação emocional. Esta é a maconha hidropônica da epistemologia.
Contradições
Coerência ideológica e implicação emocional batem correspondência aos fatos e implicação lógica porque, entre outros motivos, permitem acomodar contradições factuais e impossibilidades empíricas, num piscar de olhos. O fenômeno já foi descrito na literatura científica sobre psicologia e comunicação da ciência.
Num artigo de 2012, Michael J. Wood e colegas mostraram que pessoas são capazes de concordar com ambas as alegações feitas em um par de afirmações mutuamente exclusivas — por exemplo, que a princesa Diana está ainda viva e que a princesa Diana foi assassinada — se cada uma das afirmações for, por si só, coerente com uma crença de fundo dominante.
Os autores sugerem que o conspiracionismo, isto é, a convicção de que o mundo é regido por conchavos e conluios, é uma dessas crenças gerais, abstratas, dominantes, cuja presença aplaina ou reduz à irrelevância eventuais contradições na esfera dos fatos concretos.
Aplicando esses resultados à questão do negacionismo do aquecimento global, Stephan Lewandosky e colegas lembram que, no discurso dos adversários da ação contra a mudança climática, aparecem argumentos que negam que qualquer mudança esteja em curso; que dizem que o clima desta esfriando; que está esquentando, mas o aquecimento é benéfico; que o aquecimento é real, prejudicial mas que não há nada que se possa fazer a respeito.
“Coerência entre essas opiniões mutuamente contraditórias só pode ser obtida num nível altamente abstrato, a saber, o que de ‘algo deve estar errado’ com a evidência científica”, escrevem os autores. Esse é o nível da implicação emocional: dados contraditórios ganham consistência porque cada um deles, de forma independente, apoia um afeto comum — a sensação de que os cientistas estão “nos enganando”.
A reação negacionista aos estudos que indicam a inutilidade da cloroquina contra COVID-19 é outro exemplo: uma hora os estudos são inválidos porque analisam a população errada, pacientes hospitalizados; mas estudos com pacientes hospitalizados que chegam a resultados positivos são aceitos. Estudos sobre uso precoce geram dados inválidos, dizem os críticos, porque ou não fazem testes diagnósticos em todos os participantes, ou porque têm muito poucos participantes. Mas esses dados, irredimíveis e viciados na origem, passam a ser válidos se, quando devidamente torturados e manipulados em “análises” abstrusas, passam a indicar que o fármaco “funciona”.
Retórica
Coerência ideológica e implicação emocional batem correspondência aos fatos e implicação lógica também como ferramenta retórica, a menos que o público seja afiado e esteja prestando muita atenção. E, ainda assim, é preciso uma boa dose de finesse e paciência para navegar um debate em que um dos lados concede a si mesmo a prerrogativa de desdizer-se a qualquer momento, sem corar ou pedir desculpas.
Isso é muito comum em política: meu candidato é o melhor porque vai baixar os impostos e é o melhor também porque vai aumentar os gastos em saúde, a COVID-19 é só uma gripezinha e é urgente liberarmos cloroquina porque se trata de uma doença grave. O presidente fez um ótimo trabalho na contenção da pandemia e o presidente não pôde fazer nada a respeito da pandemia porque o STF não deixou. As queimadas não existem e as queimadas foram provocadas por ONGs, índios e caboclos.
A alegação factual mais recente anula, neste instante, a que foi feita dez minutos ou dez dias atrás (embora a afirmação anulada possa retornar, ressuscitada, em dez segundos ou dez minutos). Mas, contradição após contradição, aquilo que realmente importa — o afeto central, abstrato, a ideia de que a conspiração a tudo controla ou de que o líder é impoluto e infalível — é não só preservado, como reforçado.
Assim como a Rainha Branca em “Alice no País das Maravilhas”, o bom negacionista está preparado para acreditar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã, e também para usá-las na hora de confundir o público, ofuscar os críticos, angariar adeptos e, provavelmente, silenciar a própria consciência.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)