Olhando para o cardápio presente de catástrofes coletivas que assola a espécie, dos sintomas cada vez mais graves da mudança climática à pandemia atual, passando pelas devastações mais específicas da terra brasileira, convenço-me de que a humanidade sofre de um problema grave de viés de sobrevivência: uma cegueira coletiva que pode muito bem acabar nos condenando à extinção.
“Viés de sobrevivência” é um erro muito comum na literatura de negócios e autoajuda, e representa uma influência importante na capacidade que falsas curas e terapias alternativas têm, de impressionar pessoas e angariar adeptos: consiste no hábito de listar casos de desfecho feliz (ou, na linguagem dos negócios, “cases de sucesso”) e tentar abstrair dali o que teriam em comum — qual seria o “fator X” por trás do bom resultado.
O problema com essa abordagem é que, ao selecionar apenas quem já obteve êxito (quem já “sobreviveu”), ela deixa de olhar para quem também talvez tenha o tal “fator X”, mas deu com os burros n’água. O viés pega o que talvez não passe de coincidência (ou sorte) e fantasia de mérito.
Em termos de saúde, essa tática deixa passar despercebida a maioria silenciosa dos que tentaram alguma “cura milagrosa” e não sararam, as multidões que visitam santuários e não têm suas preces atendidas, os asmáticos que tomam homeopatia por anos a fio na infância e saram porque os pulmões se desenvolveram e a doença sumiu naturalmente. Ceder ao viés equivale a levar muito a sério os centenários que atribuem a longevidade à cachaça nossa de cada dia (ou ao cigarrinho após a refeições) e ignorar o número muito maior de vítimas de alcoolismo e de câncer de pulmão.
Em tempos atuais, o viés de sobrevivência manifesta-se nos casos de “gente saudável sem nunca ter tomado vacina”, e está por trás da falsa dicotomia entre “saúde” e “economia”.
Malthus revisitado
Em termos civilizacionais, o viés de sobrevivência aparece porque todos nós — com a exceção das minorias formadas pelos remanescentes de povos dizimados por desastres ambientais, ou conquistados por outros — representamos “cases de sucesso”, só estamos aqui porque as culturas e modos de vida que nos produziram foram capazes, até agora, de superar os desafios que encontraram. Isso nos leva a crer que esses modos de vida e culturas se distinguem por algum tipo de mérito.
A consciência de que existe um viés de sobrevivência, no entanto, deveria nos alertar para dois perigos. O primeiro, já mencionado, é ver “mérito” onde, na verdade, só existe sorte ou coincidência: parafraseando o filósofo Daniel Dennett, se você organizar um campeonato de cara-ou-cora com mil participantes, ao final haverá, inevitavelmente, alguém que adivinhou o lado certo da moeda mil vezes. Não por gênio ou método, mas por pura sorte.
O segundo perigo é identificar o fator errado como sendo o meritório. É muito fácil projetar ideologias do presente sobre o passado, e atribuir eventuais sucessos a qualidades que valorizamos — competitividade para alguns, solidariedade para outros, digamos — e fracassos àquelas por que temos menos apreço.
Pessoas que alertam para as bases frágeis da racionalidade por trás da atitude “até agora, tudo bem” costumam ser mal vistas, apontadas como pessimistas e estraga-prazeres. O mais famoso desses chatos de galocha provavelmente foi Thomas Malthus (1766-1834). Seu argumento era de que a população humana tende a crescer em proporção geométrica (2, 4, 8, 16…) e a capacidade de produzir alimentos, em proporção aritmética (1, 2, 3, 4…). Para Malthus, o progresso humano vai acabar quebrando o nariz no muro da escassez de recursos.
Salvação tecnológica
Uma resposta comum (e, dentro de certos limites, adequada) ao pessimismo malthusiano é que não parece correto supor que a capacidade produtiva cresça de forma linear com a população: ter mais pessoas significa, além de mais bocas para alimentar, mais criatividade e mais oportunidades de cooperação. Se um homem sozinho colhe, digamos, cinco baldes de milho (para repetir a unidade citada por Ronald L. Meek em seu livro “Figuring Out Society”), dois homens juntos podem operar uma máquina que vai colher cinquenta, ou cem baldes.
O viés de sobrevivência se manifesta quando a constatação de que criatividade, cooperação e tecnologia têm sido, até agora, capazes de evitar uma tragédia malthusiana global é projetada para a eternidade e vira artigo de fé — uma espécie de certeza metafísica de que, não importa o tipo de escassez, sempre haverá alguém capaz de bolar uma gambiarra que nos tire dessa. Logo, é relaxar e gozar. Tentativas de pôr esse dogma em questão geralmente são tratadas como ofensas diretas ao Espírito Empreendedor da Humanidade.
O problema é que, mesmo supondo que a criatividade humana e nossa capacidade de trabalho sejam infinitos, os recursos disponíveis para a ação humana transformar não são. Para ficar numa frase que já virou lugar-comum, não existe “Planeta B”. Incentivos de mercado tendem a estimular ganhos de eficiência — um “balde de milho”, hoje, rende muito mais do que um “balde de milho” rendia há cem anos —, mas ganhos de eficiência têm um teto, ditado, se não por limitações humanas, pelas leis da Física.
Efeitos indesejados
O viés de sobrevivência também nos assopra ao ouvido que a Natureza, assim mesmo, com “N” maiúsculo, tem uma capacidade infinita de assimilar e reciclar os subprodutos de nossa engenhosidade. De um ponto de vista literal, isso não está errado: uma vez desequilibrado, o sistema natural reencontra um equilíbrio. O detalhe é que o novo equilíbrio pode estar bem distante do antigo, e pode não ser nada favorável a formas de vida como nós.
A história da origem do oxigênio da atmosfera terrestre é um caso exemplar: durante milênios, a atmosfera foi sendo enriquecida por oxigênio produzido por microrganismos, até um momento em que essa “poluição tóxica” causou uma extinção em massa das formas de vida existentes na época. Um novo equilíbrio se estabeleceu, do qual resultaram as formas de vida modernas, incluindo a nossa espécie. O que não deve servir de consolo para os micróbios que viviam antes dessa chamada Catástrofe do Oxigênio, e foram dizimados por ela.
Os microrganismos, ao menos, tinham a desculpa de não saber o que estavam fazendo. Nós, ao contrário, enxergamos os incêndios, as temperaturas recordes que se seguem ano após ano, as epidemias e pandemias que se desencadeiam quando ecossistemas são invadidos. Antes do SARS-CoV-2 escapar dos morcegos na China, aqui no Brasil vivíamos o temor de a febre amarela escapar de vez de seus reservatórios silvestres e voltar a urbanizar-se.
Escapando do viés
Reconhecer que, como civilização, somos presas de um viés de sobrevivência que estimula uma espécie de fé metafísica no poder salvífico da “tecnologia” ou do “mercado” não quer dizer que não existam, ou não possam existir, soluções tecnológicas ou de mercado para, ao menos, parte dos desafios que enfrentamos.
Quer dizer que não podemos achar que essas soluções vão se apresentar inevitavelmente “no curso natural da História”, e com isso nos eximirmos do dever de tomar as atitudes mais responsáveis e racionais, de acordo com os fatos (e tecnologias) disponíveis hoje.
O que pode soar óbvio, mas infelizmente não é: no extremo liberal do espectro ideológico reina uma espécie de pensamento mágico segundo o qual toda demanda “real” será axiomaticamente atendida por alguma inovação tecnológica lucrativa vinda de onde menos se espera, uma dádiva da mão invisível. Se não vier, então a demanda não era “real”. Qualquer semelhança com “se a cura não veio foi porque faltou fé ao paciente” não é mera coincidência.
Existe, claro, o outro extremo — o que vê em qualquer apelo à tecnologia ou ao mercado mera cortina de fumaça e imobilismo tático. A despeito do que gritam nossos instintos tribais e a preguiça mental atávica da espécie, não há alinhamento ideológico automático que nos garanta o “lado certo”. Não há cartilha a seguir cegamente. Por mais cansativo que possa parecer, cada decisão ou atitude precisa ser pensada em seus méritos próprios e no contexto global.
Imobilismo irrefletido, ou baseado apenas em fé, é o principal perigo trazido pelo enorme viés de sobrevivência que aflige o Homo sapiens. Sempre é bom lembrar que “até agora, tudo bem” é o que o personagem da anedota disse ao passar, em queda livre, pela janela do décimo andar, rumo ao concreto da calçada.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)