A pandemia que (não) veio do espaço

Apocalipse Now
13 set 2020
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virus em órbita

Teria o vírus SARS-CoV-2, causador da COVID-19, chegado à Terra em um meteorito que caiu no nordeste da China em 13 de outubro de 2019? A resposta é não (por vários motivos, um deles sendo a conexão genética clara entre o vírus atual e outros coronavírus de morcego conhecidos há décadas), mas a história por trás dessa alegação — estruturada como artigo num livro acadêmico, já disponível online — é uma lição prática em ciência patológica: quando uma hipótese inicialmente razoável decai, ou ramifica-se, em ideias cada vez menos plausíveis e até insustentáveis, escoradas em vieses cognitivos, análise viciada da evidência e pela mistura de soberba e teimosia que é a falha trágica de muitas mentes que se pretendem científicas.

Um cientista que vê a natureza confirmar suas inspirações corre o risco de convencer-se de que suas inspirações são, ao fim e ao cabo, um canal privilegiado de acesso aos segredos da natureza — e que as engrenagens, processos e o próprio ethos do fazer científico não passam de formalidades burocráticas, obstáculos a serem superados ou nada mais do que “um jogo a ser jogado”.

É o que parece ter acontecido com o britânico Fred Hoyle (1915-2001), importante astrofísico do século 20,  injustamente preterido pelo Prêmio Nobel, grande escritor de ficção científica (seu romance A Nuvem Negra está em minha lista de favoritos), quando decidiu elevar a hipótese - extravagante mas não necessariamente maluca - da panspermia ao volume máximo, e passou a defender a ideia de que doenças infecciosas, viroses respiratórias em particular, não são transmitidas de pessoa para pessoa, mas “caem dos céu”: são causadas por partículas virais vindas do espaço.

Hoyle apresentou esse ponto de vista num livro de 1979 intitulado Diseases from Space (literalmente, “Doenças Vindas do Espaço”), escrito em parceria com o astrônomo cingalês Nalin Chandra Wickramasinghe, que é um dos autores correspondentes do artigo sobre a suposta origem cósmica do SARS-CoV-2, publicado agora em 2020.

 

Panspermia

Em termos bem amplos, “panspermia” é a ideia de que a vida pode se espalhar no Universo por meio de micro-organismos flutuando no espaço. O químico sueco Svante Arrhenius (1859-1927), a quem devemos os conceitos de ácido e base que aprendemos no ensino médio, apreciava a noção. Em 1996, cientistas da Nasa causaram estardalhaço ao argumentar que um meteorito de origem marciana havia trazido vestígios de bactérias alienígenas à Terra.

Não há nada de especialmente fantástico na hipótese de que rochas ejetadas da superfície de um planeta, seja por erupções vulcânicas ou pelo impacto de um asteroide, possam transportar micro-organismos a outros astros. A questão de se esses micro-organismos conseguirão se manter viáveis durante a viagem, e prosperar no novo mundo, é bem mais delicada.

Por via das dúvidas, as agências espaciais costumam desinfetar as sondas que enviam a outros astros: seria meio chato descobrirmos que os primeiros sinais de “vida extraterrestre” — sejam eles encontrados em Marte ou em alguma lua de Júpiter — são, na verdade, descendentes da microbiota pessoal de um engenheiro terráqueo que se esqueceu de lavar as mãos.

A palavra “panspermia” também é usada como nome de uma hipótese não sobre a mobilidade dos seres vivos através do espaço, mas sobre a própria origem da vida: nessa acepção, panspermia refere-se à ideia de que a evolução começou não num corpo planetário, mas em nuvens de gás e moléculas flutuando livremente no espaço, ou em cometas e asteroides. Biólogos, em geral, torcem o nariz para a hipótese porque veem-na apenas como um jeito de “chutar a bola no mato” – em vez de resolver o problema da origem da vida, empurra-o para outro lugar.

Mesmo nesse cenário há nuances: a evolução inicial no Cosmo, caso tenha ocorrido, pode ter sido pré-biótica (com o surgimento, no espaço, das moléculas que depois viriam a compor os primeiros seres vivos na superfície terrestre, ou no fundo dos oceanos) ou biótica (os primeiros seres vivos já existiam e se reproduziam no espaço).

A descoberta de moléculas orgânicas relativamente sofisticadas, como aminoácidos, em meteoritos e nuvens de poeira interestelar dá alguma plausibilidade à panspermia pré-biótica, mas não é disso que o pessoal dos vírus do espaço está falando.

 

Contra a evolução

Nas mãos de Hoyle e Wickramasinghe, a hipótese, já em si controversa, converteu-se numa espécie de descrição paralela da realidade, que nega ou distorce princípios fundamentais da microbiologia, da bioquímica, da epidemiologia e da evolução.

Numa edição ampliada e atualizada de Diseases from Space, publicada por Wickramasinghe agora em 2020, lemos que “se o ambiente tem estabilidade de longo prazo, assim também terão as formas de vida terrestres. Isso decorre inevitavelmente da evolução darwiniana, que otimiza plantas e animais ao ambiente. Se o ambiente não muda, plantas e animais também não. Uma coisa implica a outra”.

Para usar uma expressão muito cara aos físicos, isso nem chega a estar errado. A evolução não “otimiza” nada. A seleção natural procede a partir da pressão ambiental sobre uma diversidade genética pré-existente, e há outros mecanismos de evolução darwiniana, para além da seleção, como a deriva genética, em que a frequência de genes de uma população flutua aleatoriamente, ou em resposta a eventos fortuitos, sem necessidade de pressão seletiva.

Além disso, a separação entre plantas, animais e ambiente não faz o menor sentido: plantas e animais não são bonecos sobrepostos a uma paisagem de cartolina, plantas e animais são parte da paisagem — do “ambiente” — uns dos outros.

A incapacidade (ou falta de vontade) em compreender o básico da teoria evolutiva parece ser uma característica consistente da dupla: Fred Hoyle é o (suposto) autor da infame “Falácia de Hoyle”, segundo a qual a origem da vida por meios naturais, a partir de matéria inanimada, seria “tão improvável quanto um tornado, passando por um ferro-velho, deixar para trás um Boeing 747 montado”. De acordo com Richard Dawkins, foi Wickramasinghe quem atribuiu a tirada ao velho mestre.

Trata-se de uma falácia porque, primeiro, nenhum biólogo supõe que a vida tenha surgido de supetão, num instante mágico (a “passagem de um tornado”). Segundo, porque uma vez dados os primeiros passos fortuitos da evolução bioquímica inicial — uma vez surgida, por exemplo, a primeira molécula que catalisa a formação de moléculas semelhantes a si mesma —, as pressões da seleção natural passam a atuar, pressões que um proto-Boeing 747 decididamente não sente.

Uma resenha de outro livro conjunto de Hoyle e Wickramasinghe, Evolution from Space, publicada na revista Nature em 1981, chega bem perto de acusá-los de criacionismo puro e simples.

 

Contra a epidemiologia

O artigo recente em que Wickramasinghe e colegas tentam vender a ideia de que o SARS-CoV-2 (e também o fungo infeccioso Candida auris) veio do espaço argumenta, assim como já fazia o livro Diseases from Space, contra o fato de que doenças virais se transmitem de pessoa a pessoa – de pessoa infectada para pessoa suscetível.

De acordo com o modelo de Hoyle-Wickramasinghe, a disseminação desse tipo de moléstia segue um padrão que é melhor descrito pelo espalhamento de nuvens de vírus na atmosfera, nuvens transportadas por ventos e tempestades. Basicamente, substitui-se a epidemiologia pela meteorologia.

O fulcro é a alegação de que, em vários exemplos históricos, parece não ser possível reconstituir cadeias completas de transmissão: doenças virais parecem “saltar” áreas geográficas por onde deveriam ter passado no caminho entre um foco e o próximo. Citando o artigo (que data de fevereiro): “A evidência demonstra que muitos casos da doença (cerca de 30% dos informes) surgiram em localidades sem conexão com o mercado de carnes e frutos do mar de Wuhan”. 

A obra Diseases from Space constrói o caso de modo mais minucioso, referindo-se aos vírus de resfriado comum e da gripe, mas o ponto é o mesmo: a História registra discrepâncias entre o mapa real de disseminação de uma gripe, resfriado (ou COVID-19) e o que seria esperado a partir de um modelo matemático ingênuo, em que uma pessoa passa o vírus para algumas outras, e essas outras para outras, numa progressão geométrica que se desdobra em espaços geográficos contíguos.

E essa discrepância – exemplificada por supostos saltos geográficos dos vírus, pelo aparente surgimento de uma mesma doença em várias partes do mundo ao mesmo tempo, pela ausência de grandes surtos em certos locais onde seriam esperados – não se explica por questões como erros de diagnóstico, portadores assintomáticos, “super-disseminadores”, diferenças no alcance ou na competência dos diversos serviços locais ou nacionais de vigilância sanitária; nem mesmo pelas peculiaridades do sistema imune particular de cada indivíduo ou do perfil de imunidade das populações. A “explicação” é que os vírus não se transmitem horizontalmente, mas caem do céu como chuva.

 

Respeitabilidade

À primeira vista, essa poderia parecer uma disputa simples entre duas narrativas para dar conta de um mesmo fenômeno. O problema é que coisas como a complexidade do sistema imune, a existência de pacientes assintomáticos e o caráter probabilístico do contágio (contato com pessoas infectadas aumenta a chance de contrair a doença, não garante que se vai contrair a doença) são fatos bem estabelecidos. Já a existência de vírus em meteoritos e cometas não só nunca foi demonstrada, como apresenta enormes dificuldades.

Vírus como o SARS-CoV-2 são extremamente frágeis. Imaginar que partículas virais poderiam sobreviver à intensa radiação ultravioleta do espaço (e da alta atmosfera terrestre) está longe de ser trivial. O modelo Hoyle-Wickramasinghe propõe uma solução, insatisfatória, para essa dificuldade, solução que descreverei adiante.

Mais complicado ainda é entender como vírus — que precisam de células de hospedeiros para se multiplicar (lembrando sempre que sem multiplicação não existe evolução) e se degradam depois de algum tempo expostos ao ambiente externo — poderiam evoluir e se manter no espaço.

Hoyle e Wickramasinghe oferecem uma hipótese segundo a qual não foram os vírus que evoluíram de modo a infectar organismos mais complexos, e sim os organismos complexos que evoluíram de modo a ser compatíveis com os vírus que vêm do espaço e que evoluíram reproduzindo-se, talvez, em bactérias do espaço.

Além da lógica de a seleção natural favorecer uma vulnerabilidade a vírus infecciosos ser duvidosa (para dizer o mínimo), bactérias do espaço carregadas de vírus do espaço, assim como os próprios vírus do espaço, nunca foram observadas. Outros “nunca observados” requeridos pela panspermia radical de Hoyle-Wickramasinghe são as cápsulas ou invólucros que, supostamente, protegem os vírus dos raios ultravioleta e da entrada na atmosfera.

O modelo das “doenças que caíram do céu” se propõe a resolver uma aparente discrepância entre modelos e observações que só faz criar discrepâncias ainda maiores, multiplicando freneticamente o número de hipóteses auxiliares, de dificuldades conceituais e de entidades postuladas, mas jamais observadas. É a marca típica de uma hipótese proposta não para resolver um problema real, mas para tentar encaixar os fatos do Universo na camisa de força da intuição – Estética? Filosófica? Religiosa? – de seu autor.

Curiosamente, essa “panspermia radical” ainda sobrevive nas franjas da respeitabilidade acadêmica. Em 2003, a revista médica The Lancet publicou uma carta assinada por Wickramasinghe, sugerindo que o vírus da SARS teria vindo do espaço. A carta foi triturada na seção de correspondência da edição seguinte do periódico, mas o fato é que a ideia de vírus respiratórios vindos do espaço foi registrada num dos espaços mais nobres da medicina.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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