Desejar publicamente, ou celebrar, a morte de outrem é indigno do humanismo, mas também é muito humano. Festejar o passamento de maus governantes é uma tradição talvez tão antiga quanto os governos ruins. O “Dictionary of Popes”, da Universidade de Oxford, registra que o falecimento do papa Urbano VIII (que reinou de 1623 a 1644) foi “celebrado com furiosa alegria” pelo povo de Roma, “cruelmente oprimido por sua extravagância perdulária”. Hoje, Urbano VIII só é lembrado, quando é, como o papa que condenou Galileu. A história não é gentil com negacionistas.
Suspeito que ao menos uma parcela da repugnância frente à manifestação pública e explícita do desejo de morte vem de um senso supersticioso, atávico, de que desejos, uma vez libertos no mundo, acham um jeito de realizar-se. É algo do mesmo molde da culpa irracional que acomete quem, num destempero, deseja mal a um amigo ou amante e depois vê coisas ruins acontecerem ao “alvo”.
Essa crença intuitiva no poder dos desejos é tão forte que há toda uma indústria pseudocientífica, contemporânea, de autoajuda construída em torno dela. Curiosamente, muitas das prescrições dessa indústria preveem uma espécie de “efeito bumerangue”, em que o mal que se deseja aos outros retorna para nós mesmos. Como é impossível passar pela vida sem jamais desejar mal a alguém, o “bumerangue” oferece uma válvula de escape para explicar por que os desejos positivos não se concretizam: é retribuição pelo que você pensou, murmurou ou sonhou no verão passado.
Talvez tenha sido para resguardar o amaldiçoador do rebote maléfico da maldição que muitas pragas buscam amparo no divino. Em “Religião do Povo”, Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) nota que tradicionalmente, no Brasil, rogadores de pragas costumam tentar incluir “a cumplicidade do onipotente”, em formulações do tipo “Deus queira” ou “Deus permita”.
Réquiem
A ânsia pelo passamento alheio pode assumir formas cerimoniais. Em sua “Enciclopédia do Sobrenatural”, e também no volume “The Black Arts”, o historiador do ocultismo Richard Cavendish (1930-2016) conta que, na Idade Média, surgiram uma série de superstições em torno do “poder mágico” do rito da missa católica.
Uma dessas superstições era a de que uma missa de réquiem — um tipo de cerimônia em honra dos mortos — rezada para “homenagear” uma pessoa viva, causa sua morte. O verso tradicional requiem aeternam dona ei, Domine (dá-lhe o descanso eterno, Senhor) “deveria transformar a missa num golpe mortal”, diz Cavendish.
A prática, aparentemente, assumiu proporções tão escandalosas que o XVII Concílio de Toledo, realizado em 694, incluiu, entre seus cânones, a seguinte decisão: “Alguns sacerdotes realizam missas para os mortos em nome dos vivos, para que logo morram. O sacerdote que faz isso, e a pessoa que o induz, serão depostos e para sempre anatemizados e excomungados. Só no leito de morte poderão receber comunhão”.
Em seu monumental “O Galho Dourado: Um Estudo em Mágica e Religião”, o antropólogo escocês Sir James Frazer (1854-1941) registra algo parecido na França, e em pleno século 19: “camponeses gascões acreditam que, para se vingar de seus inimigos, homens maus, às vezes, induzem padres e dizer uma missa chamada Missa de St. Sécaire”. A descrição de Frazer parece saída de um romance gótico: “Apenas os padres mais pervertidos ousam realizar essa cerimônia obscena (…) a hóstia que consagra é negra e tem três pontas (…) bebe-se a água de um poço onde foi jogada uma criança não batizada…”
Até mesmo a “Enciclopedia Católica”, publicada no início do século 20, adverte: “o padre (…) que sabe que deveria oferecer uma missa para pessoas vivas e não para os falecidos, não tem motivo razoável para celebrar a missa de réquiem, e portanto não é lícito que o faça. Esta parece ser uma regra sem exceção”.
As forças do mal
O “Quarto Livro de Filosofia Oculta”, tradicionalmente atribuído ao filósofo e alquimista Cornelius Agrippa (1486-1535), mas que quase com certeza não foi escrito por ele, tem uma seção sobre o uso de versículos bíblicos (como por exemplo 2 Macabeus 15:16, “Recebe esta espada santa, presente de Deus, com a qual esmagarás teus adversários!”) na elaboração de feitiços para obter vingança contra os inimigos.
De fato, a observação de Câmara Cascudo — que quem roga uma praga busca uma cumplicidade supersticiosa do poder divino — parece aplicar-se à cultura ocidental, de matriz europeia, de forma mais ou menos generalizada. O que exemplos eruditos como o livro atribuído a Agrippa deixam claro é que não dá para desculpar a mistura entre crença religiosa e superstição citando “ignorância popular”.
A “Bíblia Satânica” de Anton Szandor LaVey (1930-1997), por sua vez, contém uma “Invocação para Conjuração da Destruição” que começa assim: “VEDE! As poderosas vozes de minha vingança esmagam a placidez do ar e se erguem como monólitos de ira sobre uma planície de serpentes retorcidas”. Se isso soa como algo tirado de um livro de fantasia ruim, é porque o espírito é o mesmo. Satanismo, em geral, só existe como paródia ou contraponto ao cristianismo, e LaVey construiu toda sua carreira de celebridade em cima do truque de nunca deixar as pessoas saberem quando, ou se, ele estava falando sério.
Nem todo sortilégio, no entanto, tem base bíblica ou eclesiástica — seja como superstição ou paródia. Um livrinho muito portátil, “The Little Giant Encyclopedia of Spells & Magic”, reserva suas últimas páginas (472 a 475) a “Feitiços do Mal” e “Feitiços de Morte”. Ali há receitas para fazer alguém ficar doente, usando aparas de unha pulverizadas, e uma receita para transformar um inimigo em objeto de ridículo que requer, para começo de conversa, um osso de rinoceronte (há modos mais fáceis de conseguir o mesmo resultado, aposto). Enterrar pertences do desafeto no túmulo de alguém e torturar bonequinhos de cera são outras recomendações.
Mau-olhado
Uma pessoa supersticiosa, ao saber que lhe desejam a morte, pode sofrer efeitos psicológicos deletérios ou, distraída pela preocupação, acidentar-se. Este é o “poder” do mau-olhado, um temor universal, verbete tanto de Câmara Cascudo, no “Dicionário do Folclore Brasileiro”, quanto no “Dictionary of World Folclore” de Alison Jones.
Em “Superstition: A Very Short Introduction”, o psicólogo Stuart Vyse diz que a ideia de que certas pessoas são capazes de causar o mal a outras, apenas com o olhar, já era registrada na literatura assíria, no século 7 AEC. O poder do mau-olhado é frequentemente associado à inveja. Segundo Alison Jones, o medo desse efeito faz com que, em algumas tradições culturais, elogios públicos sejam vistos com desagrado e desconfiança, porque deixariam o receptor vulnerável ao malefício da inveja alheia.
Mas a suscetibilidade a maldições públicas e ao mau-olhado é condicionada socialmente, e em muitos casos pode ser superada por mero bom-senso, ou audácia.
Vyse fala da mais de uma centena de “tabletes de maldição” do período romano encontrados na cidade inglesa de Bath. As pessoas despiam-se para entrar nas famosas águas “medicinais” da cidade e, ao sair das piscinas, às vezes descobriam que seus bens — roupas, joias, adornos — haviam sido roubados. Muitas dessas vítimas, revoltadas, pagavam para que maldições contra os ladrões (do tipo “que seus olhos e intestinos sejam devorados”) fossem gravadas em plaquetas de chumbo. A ineficácia das tabuletas é atestada pelo fato de haver tantas: os ladrões, ao que tudo indica, eram imunes.
A palavra final pode muito bem ficar com Câmara Cascudo: “Praga não serve, mas ajuda a raiva”.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)