“Vejo um ano muito bom e produtivo”. Foi assim que a astróloga americana e best-seller internacional Susan Miller resumiu suas impressões para 2020, em entrevista publicada em novembro de 2019 no site Fashion Week Daily. “O que é excepcional sobre o ano é que Júpiter se ligará a Plutão, algo que acontece a cada 13 anos. É uma fantástica assinatura de sucesso”, disse ela, cheia de entusiasmo. Em entrevista à rede de TV CBS, concedida em janeiro — quando o novo coronavírus já dava suas primeiras voltas — Miller dobrou a aposta, prevendo “um grande ano, um ano próspero. Não vejo recessão”. Para nativos de Touro, em especial, ela previu “viagens internacionais”.
No Brasil, o astrólogo João Bidu — dono de um pequeno império editorial de publicações esotéricas, centrado na cidade de Bauru (SP) — havia previsto um 2020 “mais leve” do que 2019. No YouTube, depois de fazer as mesmas previsões que qualquer pessoa de bom senso faria (celebridades vão se divorciar, presidiários vão se rebelar, algumas pessoas vão ganhar na loteria), Bidu acrescenta que 2020 assistiria a uma “sensível melhora da imagem do Brasil no exterior”, “melhora considerável no emprego” e, que “viagens internacionais devem crescer de forma robusta, melhorando o fluxo de estrangeiros para o nosso país”. Será que os taurinos de Miller viriam todos para cá?
Os céus disseram a Bidu que neste ano haveria “uma grande arrancada para [o Brasil] se tornar um dos grandes centros turísticos do mundo”. E que o presidente Jair Bolsonaro teria “muita sorte, carisma e alegria”. “Seu humor deve melhorar bastante” e o governo teria “grandes vitórias”.
Que a pandemia pegou os profetas profissionais de calças curtas é uma das surpresas menos surpreendentes — e uma das piadas sinistras — da crise atual. Bidu acabou se desculpando em nota publicada pelo G1. “Ninguém poderia imaginar que viria um coronavírus para fazer todo esse estrago”, disse, aparentemente sem sentir a ironia.
Guerras e epidemias
Prever pragas, guerras e outros tipos de desastre, no entanto, já foi parte importante do portfólio da astrologia. O antropólogo britânico Nicholas Campion, autor de uma monumental “History of Western Astrology” (“História da Astrologia Ocidental”), aponta que, em sua primeira manifestação organizada, na Mesopotâmia de 5 mil anos atrás, a astrologia voltava-se para questões de Estado: os rumos da cidade, as responsabilidades do rei, colheitas e guerras. Servia à “necessidade de (…) observar as estações do ano, manter a estabilidade política e a prosperidade econômica”.
À medida que o número de astrólogos se multiplicava e o imperativo de ampliar a clientela ia se fazendo sentir, a “arte” passou a tratar cada vez mais de questões biográficas individuais e menos de grandes eventos coletivos: afinal, o mundo, ontem como hoje, comporta muito poucos reis, mas o estoque de comerciantes preocupados com crédito e adolescentes inseguros no amor sempre foi inesgotável.
Nos anos finais da República Romana e nos primeiros tempos do Império, o horóscopo individual se viu transformado em arma de propaganda política, a ponto de uma lei ser criada proibindo a produção do horóscopo do imperador. Houve épocas em que ter uma carta astral muito positiva representava risco de vida, já que as estrelas favoráveis poderiam ser interpretadas como sinal de pretensão ao trono.
Foi nesse período que o senador Cícero (106 AEC-43 AEC), um dos maiores intelectuais produzidos pela civilização romana, compôs seu tratado De Divininatione, “Sobre a Adivinhação”, que trata das diversas formas de prever o futuro, ou interrogar os deuses, disponíveis no mundo romano.
No capítulo 42 do Livro Segundo, o autor elenca uma série de objeções à astrologia. A observação que faz sobre os mortos na batalha de Cannae (216 AEC), quando as tropas do cartaginês Aníbal massacraram 70 mil soldados romanos — “Teriam todos os romanos que caíram em Cannae o mesmo horóscopo? E, no entanto, tiveram todos o mesmo fim” — cabe como uma luva para as vítimas da COVID-19.
Astrologia médica
A despeito da migração milenar do foco de interresse da astrologia, do coletivo para o individual, a ideia de ligação entre estrelas e desastres coletivos seguiu firme na consciência popular. O nome “oficial” da gripe, influenza (literalmente, “influência”), por exemplo, vem de uma epidemia da doença que começou na Itália em 1743 e que, segundo diversas fontes, foi considerada uma “influência dos astros” (o linguista Deonísio da Silva registra uma derivação diferente, influenza della stagione, “influência da estação”, no caso, o inverno).
A “Encyclopedia of Medical Astrology” (“Enciclopédia de Astrologia Médica”), publicada nos Estados Unidos em 1933, tem verbetes para “pandemias” (“causadas por um máximo de influência planetária, por exemplo uma conjunção de vários planetas superiores num signo do ar”) e “epidemias” (“causadas pelos planetas maiores em periélio, especialmente Saturno e Júpiter, e também por Marte em perigeu”). E avisa: “Pessoas nascidas sob o signo de Escorpião são muito suscetíveis a epidemias”.
A astrologia médica atingiu um alto grau de sofisticação — e com isso, quero dizer requinte retórico e imaginação poética, nada a ver com eficácia ou relação com a realidade — entre a Idade Média e o Renascimento.
Por meio de uma teia de correspondências mitológicas e metafóricas ligando partes do corpo humano aos quatro elementos clássicos da cultura greco-romana (terra, fogo, água e ar), aos planetas, ao Zodíaco e a animais, plantas e minerais, o médico chegava a diagnósticos e receitas. O guia de ervas medicinais publicado na Inglaterra por Nicholas Culpeper (1616-1654), por exemplo, diz o seguinte sobre a margarida: “Esta erva é do signo de Câncer, sob a regência de Vênus, e portanto é excelente para feridas no peito”.
O tudo e o nada
Na mesma entrevista em que reconhece que “ninguém poderia imaginar que viria um coronavírus”, João Bidu chama atenção para o fato de que nem todas as previsões que havia feito para 2020 tinham sido róseas. “Não deixei de comentar sobre as outras influências e esclareci que Júpiter, Saturno e Plutão fariam movimento retrógrado entre maio e setembro, exigindo mais cautela, paciência, resiliência e sacrifícios”, aponta.
Supondo que os efeitos da pandemia se reduzam ou se dissipem em setembro ou outubro, Bidu poderá até desfrutar da glória de um “encaixe retroativo”, quando uma previsão vaga, feita no passado, é “encaixada” num fato do presente.
Este efeito aparece, classicamente, na obra do médico francês Michel de Nostredame, o Nostradamus (1503-1566), que deixou “profecias” tão vagas e ambíguas que só fazem sentido nesse tipo de encaixe: dado um fato histórico momentoso é, em princípio, possível encontrar uma quadra (dentre as mais de 900 existentes) de Nostradamus que pareça tê-lo “previsto”.
Prever muito, numa pirâmide com banalidades (infidelidade sexual entre celebridades, corrupção da política) na base, vaguezas (necessidade de “resiliência”: por que? economia? violência? problemas sentimentais?) no meio e umas poucas apostas arriscadas (“Brasil, meca do turismo”) no topo é o modus operandi típico do vate profissional.
As banalidades vão se cumprir, as vaguezas quase sempre podem ser reinterpretadas de modo favorável. E as apostas arriscadas provavelmente cairão no esquecimento, mas caso se cumpram, você pode se dar ares de profeta bem-sucedido. É a estratégia padrão. O que faltou, mesmo, foi prever o novo coronavírus.
E será que o choque dos astros com a pandemia vai minar a credibilidade da astrologia entre os millenials? O New York Times escreveu uma longa matéria a respeito, tendo como ponto de partida o fiasco de Susan Miller.
A resposta parece ser negativa: fãs de Miller ouvidos pelo jornal dizem já tê-la “perdoado”. A astróloga até postou uma análise da pandemia, atribuindo o problema a uma conjunção de Júpiter e Plutão em Capricórnio, o que é engraçado, porque Capricórnio é um signo da terra e, segundo “Medical Astrology”, pandemias acontecem quando há conjunções planetárias em signos do ar… e ela mesma havia dito, lá atrás, que Júpiter e Plutão juntos são uma ótima notícia... e, por que estou procurando lógica nesse negócio?
Além disso, de acordo o diário novaiorquino, o mercado astrológico, em geral, está bombando. Explicação? Assim como o terraplanismo e o bolsonarismo, a astrologia é um sistema de crenças que, ao preço de ser insustentável, oferece aos crentes um colchão de conforto emocional e um senso de pertencimento e comunidade.
A insustentabilidade do sistema é parte de sua força, na medida em que torna mais potentes e fraternos os laços comunitários. Ombro a ombro na trincheira contra o assalto da razão, todos são irmãos. E em meio à pandemia, o consolo da identidade tribal não tem preço.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência. É coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)