Um número para Bolsonaro chamar de seu

Apocalipse Now
8 mai 2020
Autor
números

Existe uma piada sobre o grande número de categorias contempladas nos Oscars — cerca de 30, incluindo os prêmios regulares e as estatuetas honorárias e especiais —, porque isso praticamente garante que cada filme ou estúdio receba pelo menos um. Os Estados Unidos têm esse hábito: o de medir coisas e pessoas em tantas dimensões diferentes que, inevitavelmente, todo mundo acaba sendo o “melhor do mundo” em algo. Nem que seja em estilo de laço de cadarço.

Veja, por exemplo, o caso de um certo Bob Shoudt, 44 anos, de Filadélfia, imortalizado por, em 31 de maio de 2010, ter consumido três quilos e seiscentos gramas de batatas fritas em inacreditáveis dez minutos.

No Brasil, o governo de Jair Messias Bolsonaro procura, ávido, por seu momento Bob Shoudt (ou Eric “Badlands” Booker, que em 12 minutos devorou 4,3 kg de ervilhas), um número solto que sugira que o Brasil está passando mais ou menos incólume pela pandemia de COVID-19, e que o “verdadeiro” problema não é o vírus, é a economia.

A síndrome manifesta-se, por exemplo, na insistência do presidente para que se divulgue o número de pacientes recuperados com mais destaque do que o de mortos. Bolsonaro mencionou o número em seu Twitter em 29 de abril (“30,1 mil brasileiros curados”), e o “Placar da Vida”, da Secretaria de Comunicação do Planalto registrava, em 4 de maio, “45.815 (43,5%) brasileiros salvos”. Na mesma publicação, somos informados de que há “52.119 (49,5%) em recuperação”, para um total de 105.222 casos.

Esse placar é bem didático, e por uma série de motivos, nenhum deles bom. O mais óbvio é o contorcionismo que faz para esconder os mortos: ele estão ali, mas a Secretaria de Comunicação (Secom), em vez de cumprir seu papel de bem informar o contribuinte, prefere obrigar o cidadão curioso a puxar a calculadora.

Se 43,5% foram “salvos” (por quem, aliás?) e 49,5% estão “em recuperação”, então 7% morreram. E 7% de 105.222 são 7.365, número que, na verdade, é um pouco maior do que o total de óbitos registrado pelo Ministério da Saúde na mesma data (7.321). Deve ser discrepância no arredondamento depois da vírgula.

 

Comparações

E aqui chegamos ao segundo problema, a confusão marota entre precisão e acurácia. Se eu disser que 98,741% dos brasileiros gostam de batatas fritas (o que é um número muito preciso — note as casas decimais!), você terá todos os motivos do mundo para questionar se ele é acurado, isto é, se de fato reflete a realidade. O uso de precisão para gerar uma impressão subliminar de acurácia e, por tabela, transmitir segurança — quem conhece os números tão bem, até depois da vírgula, “obviamente” está no controle da situação — é truque antigo e manjado.

No caso brasileiro, dada a pandemia de subnotificação (não apenas muito mais pessoas têm COVID-19, são internadas com COVID-19 e morrem de COVID-19, no Brasil, sem jamais receber um diagnóstico, do que as contabilizadas na estatística, como a própria contabilização dos números dos que têm diagnóstico é lenta e falha), qualquer insinuação de acurácia é brincadeira de mau gosto. Na melhor das hipóteses, o que os números oficiais nos dão é uma ideia sugestiva da forma e da tendência da curva da epidemia no país — e com um atraso substancial.

O terceiro problema, e mais grave, é a falta de balizas. O título, “Placar da Vida”, o tom triunfalista do tuíte presidencial, tudo sugere que seriam boas notícias — mas, são mesmo? O contexto necessário para uma leitura dos números que faça algum sentido é deliberadamente sonegado.

Os dados que aparecem no “Placar da Vida” já não significam muita coisa, de qualquer modo. Claro, cada vida que escapa da pandemia merece ser celebrada, mas os números e porcentagens, apresentados “crus”, não ajudam em nada o público a formar uma imagem mental coerente, seja da situação concreta ou da eficácia, supondo que haja alguma, da resposta governamental.

Pior, induzem ao erro, por sugerir que o risco trazido pela doença é mínimo, ou desprezível: com mais de 90% dos acometidos já curados ou “em recuperação”, qual o drama?

Comparações ajudam a extrair sentido dos números. Por exemplo: o total de mortes no mundo, causadas por gripe comum, neste ano, está em 169 mil. No mesmo período, as mortes por COVID-19 já somam 260 mil, ou 54% a mais. Isso ajuda a explicar o “drama”. Trazendo a questão mais para perto, entre janeiro e outubro de 2019 foram computadas menos de 700 mortes por dengue em todo o Brasil. Os dados oficiais brasileiros — subnotificados — sobre COVID-19 computaram 600 mortes apenas entre os dias 4 e 5 de maio.

Outras comparações úteis saíram recentemente na revista Piauí, por exemplo: entre 17 de março e 23 de abril, a taxa de mortos por COVID-19 na cidade de São Paulo superou a de homicídios e de acidentes de trânsito — somadas — em todo o ano de 2017.

 

Absoluto ou relativo

Quem começa a lidar criticamente com dados numéricos logo de cara vê a importância de considerar números relativos: frações, proporções, porcentagens, probabilidades. Dizer que existem dez funcionários plenamente satisfeitos na firma significa muito pouco sem sabermos quantos funcionários há ao todo — esses dez podem ser 100%, numa companhia pequena, ou muito menos do que 1%, numa grande multinacional.

Mas, como diz o ditado chinês (suponho que seja chinês), um pouco de sabedoria é uma coisa perigosa. O apego apaixonado ao dado relativo também cria vulnerabilidades. Uma cidade pequena onde uma pessoa morre atropelada num ano, e duas no ano seguinte, tem um crescimento de 100% na mortalidade do trânsito. Trata-se de uma taxa provavelmente muito maior do que a da maioria das metrópoles: nem por isso, porém, é válido concluir que a cidade pequena vive um carnificina nas ruas, e a cidade grande é um paraíso de paz e respeito ao pedestre.

Em 15 de abril, o presidente Jair Bolsonaro saiu-se com uma dessas, celebrando o que era então a taxa relativa de mortes por COVID-19 no Brasil (7 por milhão de habitantes), menor do que a dos países europeus mais afetados pela pandemia. Novamente, a falta de contexto é enganadora — mesmo tratando-se de um número relativo.

Um primeiro ponto a levar em consideração é que essa é uma taxa em que o denominador — proporcional ao tamanho da população — já tende a puxar o número de um país continental, como o Brasil, para baixo. De fato, o país com maior número de “mortes por milhão de habitantes” é um que tem menos de um milhão de habitantes: a minúscula República de San Marino, com a taxa de 1,2 mil mortes/milhão.

O segundo é que o número relativo realmente crucial para esta pandemia — e para avaliar o sucesso das políticas implementadas — é aquele que a comunicação oficial jamais menciona, a taxa de crescimento do total de casos e de mortes. Como o pesquisador Dalson Figueiredo, da UFPE, mostrou em artigo publicado nesta revista, a taxa de mortes por milhão de habitantes no Brasil foi a que mais se elevou na segunda quinzena de abril, na comparação com os países europeus mais atingidos, saltando de 7 para 30, um crescimento de mais de 300%. No Reino Unido, o aumento foi de 126%.

Se Bolsonaro realmente quer um número para chamar de seu, ele poderia tentar o recorde mundial de mergulho em águas rasas — o atual, de Darren “Professor Splash” Taylor, registrado em 2014, é de um salto de quase 12 metros de altura (Jair poderia tentar 13!) numa piscina de plástica 30 centímetros de profundidade. É certo que o Professor Splash é um artista profissional com muitos anos de treino, mas o presidente, afinal, é um atleta.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899