Parte do fascínio do estudo de teorias da conspiração absurdas vem de descobrir o que elas revelam sobre as fragilidades mentais do Homo sapiens: como relutamos em aceitar o acaso e a coincidência como dois fatores essenciais, quando não decisivos, de nossa história, como somos predispostos, por natureza, a enxergar padrões e intenções onde só há ruído.
Para nós, é quase automático pressupor que tudo o que acontece ao nosso redor corresponde à vontade ou às emoções de algo, ou alguém: não é por outra razão que metáforas como “o carro não quer pegar” soam tão naturais. Há hipóteses que ligam essa heurística – esse “atalho mental” – de atribuir eventos fortuitos a vontades externas à evolução do ser humano como um animal social (detectar as intenções e emoções do resto da tribo é importante, afinal), mas mesmo coisas boas podem ir longe demais.
Uma limitação desse olhar biológico/psicológico/filosófico sobre elucubrações conspiratórias é que ele abstrai o fato de que, fora do laboratório de nossas poltronas e mentes, crenças infundadas têm consequências muito reais.
Atrocidades
Quando, em 1995, Timothy McVeigh detonou uma bomba em um prédio público de Oklahoma City, matando 171 pessoas – o pior atentado terrorista da história dos Estados Unidos, pré-11/9 – ele acreditava estar combatendo uma conspiração insidiosa, a Nova Ordem Mundial, orquestrada pelas elites econômicas globais para impor uma ditadura socialista ao mundo. O ridículo de associar as “elites econômicas globais” a “socialismo” não deve nos distrair do fato de que essa crença maluca levou a homicídio em massa.
Outros casos, mais recentes, vão do (involuntariamente) cômico ao trágico. Em 4 de dezembro de 2016, Edgar Maddison Welch invadiu uma pizzaria em Washington, DC, armado com um rifle de assalto, para libertar as criancinhas que, segundo a teoria conspiratória conhecida como “pizzagate”, estariam sendo mantidas ali, como vítimas de uma rede de pedofilia comandada por Hillary Clinton. E há um ano, em 15 de março de 2019, um australiano carregando cinco armas de fogo matou 50 pessoas em duas mesquitas da Nova Zelândia, além de ferir várias outras.
O perpetrador desse morticínio deixou um manifesto, intitulado A Grande Substituição (“The Great Replacement”), onde denuncia uma conspiração para “substituir” a “raça branca cristã” por africanos e asiáticos. Nos EUA, teorias da conspiração que alegam que os massacres cometidos com armas de fogo em escolas seriam, na verdade, encenações – para virar a opinião pública contra o “direito” de portar armas – levaram famílias de vítimas a serem perseguidas e hostilizadas. Alguns dos propagadores dessa mentirachegaram a ser presos ou receberam pesadas multas.
Teorias e conspiração infundadas podem ter – e têm – impacto global. Em 2003, três estados do norte da Nigéria decidiam boicotar uma campanha de vacinação contra a pólio. Essa decisão representou um sério golpe contra o esforço de erradicação global da doença, que poderia ter sido a segunda praga eliminada da face da Terra por vacinação – a primeira foi a varíola, na década de 1970. Ainda hoje, 17 anos depois, a pólio não foi erradicada, e a varíola segue como a única doença apagada do mundo por iniciativa comum da humanidade.
O boicote foi provocado por uma confluência de motivações políticas, ideológicas e religiosas, que se consolidaram numa teoria da conspiração – a de que a vacina era, na verdade, um plano genocida do Ocidente, que as doses continham ou o vírus HIV, ou iriam tornar as meninas nigerianas estéreis.
O milenar antissemitismo europeu também se alimenta de conspirações imaginárias, desde a “calúnia de sangue” medieval – segundo a qual judeus sequestravam criancinhas cristãs para finalidades inomináveis – passando pelo horror aos “financistas judeus” do século 19 e chegando aos “Protocolos dos Sábios do Sião”, uma das fraudes literárias mais notórias do século 20, segundo a qual há um plano judaico de dominação mundial.
O texto inspirou Adolf Hitler: no Mein Kampf, ele escreve que o fato de a imprensa insistir que os “Protocolos” são falsos “representa a melhor prova de que são verdadeiros, afinal”.
Não é exagero afirmar que fantasias conspiratórias absurdas pavimentaram o caminho para o Holocausto. Relembrando a frase de Voltaire, sempre muito citada, mas que nunca parece ser levada tão a sério quanto deveria, quem induz as pessoas a acreditar em absurdos também pode induzi-las a cometer atrocidades.
Política e Mídia
O nazismo representou um caso extremo de manipulação política via confabulação conspiratória, mas não é preciso ir tão longe para ver a técnica funcionando. O uso deliberado de conspirações na política costuma envolver uma acusação feita sem provas, e o subsequente uso da falta de provas como evidência positiva – “se as provas não existem, é porque eles as destruíram” ou, “as provas existem, mas não posso apresentá-las agora por causa deles”.
Quando o senador americano Joseph McCarthy (1908-1957) fez seu famoso discurso afirmando ter uma lista de comunistas infiltrados no governo federal, a verdade era que a lista não existia: em seu discurso inicial sobre o assunto, ele afirmou que seriam mais de 200 os tais comunistas ocultos, mas ao registrar a fala nos anais do Senado, usou outro número, 57. Em outras ocasiões, disse 81. E assim por diante.
A sombra da conspiração comunista evocada por McCarthy manteria a sociedade americana sob tensão – e provocaria diversas injustiças – por muitos anos. Em seu livro “Post-Truth”, o jornalista britânico James Ball critica a imprensa americana da época por dar ampla repercussão às acusações de McCarthy, amplificando seu impacto.
“McCarthy constantemente buscava – e conseguia – manchetes baseadas no material mais tênue: promessas de novas alegações que ainda seriam feitas, números inventados, calúnias e ofensas contra quem tentasse embaraçá-lo”, escreve Ball.
Todas essas técnicas, claro, continuam em uso pelo mundo, inclusive em Brasília, e a imprensa segue tão vulnerável a elas quanto antes, presa ao cacoete de que “repercutir” a fala de autoridades é mais importante do que determinar se as autoridades falam a verdade.
A vulnerabilidade estrutural das mídias tradicionais às elucubrações conspiratórias, principalmente as que partem de autoridades públicas, é agravada pela dinâmica própria das redes sociais e da chamada “nova mídia”.
Ética da crença
Enquanto as sociedades modernas buscam soluções sistêmicas para o problema, indivíduos podem colaborar informando-se sobre os sinais do jeito conspiratório de ser e de pensar.
Os mais salientes são as acusações vagas, sem provas ou com a promessa de “provas futuras” que nunca chegam; a unção de grandes vilões universais responsáveis por “tudo isso que está aí”; a aceitação de “fatos” duvidosos só porque todo mundo ao nosso redor parece aceitá-los; e as conexões, de lógica vaga e sem evidência, elaboradas a posteriori, entre eventos desconexos que teriam sido orquestrados para redundar num certo estado de coisas (“o cara morreu de camisa vermelha, e dizem que foi acidente, mas veja só, em 1976 ele tinha brigado com um sujeito no bar e deixado o outro com a camisa toda ensanguentada!”).
É ainda necessário fazer o esforço de detectar esses sinais nas comunicações que recebemos, e em nós mesmos. O chamado “viés da terceira pessoa” – “eu” e “você” somos espertos, “eles” é que são tontos e se deixam manipular – é insidioso.
Quando o matemático e filósofo britânico William K. Clifford escreveu, em seu ensaio de 1876, A Ética da Crença, que “é sempre errado, para qualquer um e em qualquer lugar, acreditar em algo com base em evidência insuficiente”, seus contemporâneos acharam que ele estava exagerando. Hoje, o imperativo de Clifford talvez tenha se tornado um requisito civilizacional de sobrevivência.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência