Em junho, passei alguns dias na Costa Oeste do Estados Unidos e fiz uma breve visita à cidade de San José, na Califórnia. A Wikipedia descreve San José como “o centro econômico, cultural e político do Vale do Silício”, mas não foi a tecnologia que me atraiu para lá. Foi uma casa mal-assombrada.
Na verdade, a casa mal-assombrada mais famosa do mundo: a Mansão Winchester, uma monstruosidade em estilo vitoriano que contém, segundo o livro-guia vendido aos turistas, 160 cômodos, construídos num padrão caótico entre 1884 e 1906 por Sarah Winchester, nora e principal herdeira de Oliver Winchester, fundador e primeiro proprietário da indústria de armas de fogo que leva seu nome.
Sarah, natural da Nova Inglaterra, havia se mudado para a Califórnia após a morte do sogro, Oliver, e do marido William Winchester, este último, vítima de tuberculose. Em seu testamento, Sarah destinou parte significativa da fortuna Winchester para o estabelecimento e manutenção de instalações hospitalares voltadas para o tratamento de tuberculosos.
É claro que eu não esperava ver fantasmas, mas a história mais conhecida sobre as origens da bizarra mansão – a de que Sarah Winchester acrescentava cômodos obsessivamente para escapar da perseguição movida pelos espíritos vingativos das vítimas dos rifles Winchester (“a arma que conquistou o Oeste”) – me interessava.
No mínimo, uma crônica de domingo sobre como crenças supersticiosas podem vir a dominar a vida de uma pessoa racional parecia uma boa ideia. De acordo com o guia turístico, a decisão de Sarah Winchester de se mudar para a Califórnia e “construir uma grande casa para os espíritos” teria sido inspirada por um médium.
A mesma história é repetida no livro Haunted Houses of California, de Antoniette May: “A viúva do único filho do fabricante de rifles foi informada por um médium de Boston que os espíritos dos mortos por rifles Winchester haviam-na amaldiçoado. O médium aconselhou Sarah a se mudar para o Oeste e construir uma casa”. A Encyclopedia of Ghosts and Spirits dá até o nome do médium: Adam Coons.
Tudo isso traria ainda outro ângulo para abordar na crônica: como charlatões exploram o sofrimento das pessoas e as induzem a comportamentos extravagantes e gastos desnecessários. Seria uma fábula da vida real sobre os perigos da credulidade e a necessidade de ceticismo.
Enfim, esta era a crônica que estava na minha cabeça quando saí do tour guiado da Mansão Winchester e parei na loja de lembrancinhas. Mas não é esta a crônica que você está lendo.
A verdade e a lenda
Pensando mais detidamente sobre o que tinha ouvido durante a visita e o que dizia o livro-guia, encontrei algumas inconsistências e sinais de alerta. Primeiro, a informação, dada durante o tour guiado, de que Sarah Winchester havia decidido não reparar a mansão após o grande terremoto de 1906, limitando-se a garantir que a estrutura remanescente permanecesse firme, removendo o entulho e lacrando os acessos às partes destruídas. Isso, por si só, não bastaria para explicar as “escadarias para parte alguma” e as “portas para o vazio”, sem necessidade nenhuma de inspiração espiritual? E a decisão de não reconstruir após 1906 contradiz diretamente a alegação de que a construção teria continuado até a morte de Sarah Winchester, em 1922.
Segundo, a linguagem do livro-guia, que é propositalmente ambígua. O material está repleto de frases como “segundo certas fontes”, ou “quaisquer que fossem suas reais motivações”. Intrigado, fui procurar uma biografia de Sarah Winchester, e encontrei um volumoso livro, Captive of the Labyrinth: Sarah L. Winchester, Heiress to the Rifle Fortune, da historiadora Mary Jo Ignoffo.
É preciso dizer que Ignoffo é muito melhor pesquisadora do que escritora: ela certamente não soube o que deixar de forade seu livro. O leitor é brindado com resumos biográficos da família Pardee (o nome de solteira de Sarah) desde o início da colonização dos Estados Unidos. Até a participação de membros e amigos das famílias Winchester e Pardee na Guerra Civil americana é descrita com razoável nível de detalhe.
Esse gosto da autora pela anedota histórica às vezes traz informações curiosas, como o fato de o poderoso industrial Oliver Winchester ter sido uma das vítimas do impostor Edinboro Bey, um espertalhão que, durante algum tempo, morou em hotéis de luxo e comeu em ótimos restaurantes às custas da elite nova-iorquina, depois de convencer os ricaços de que poderia ajudá-los a conseguir contratos polpudos com o sultão da Turquia, para sumir sem deixar rastros em seguida.
O excesso de narrativas paralelas, no entanto, polui o que deveria ser a história de Sarah Winchester. De qualquer modo, a informação está lá, e é a seguinte: não existe nenhum registro histórico do envolvimento da viúva Winchester com espiritismo, ou de que ela algum dia tenha manifestado culpa ou paranoia por causa da origem de sua fortuna.
Ignoffo teve acesso amplo à correspondência entre Sarah e seu advogado, que cuidava de pagamentos, doações, negociações, etc., e não há nenhuma ordem ou cheque destinado a médiuns ou igrejas espíritas. De fato, Sarah Winchester frequentava uma igreja Episcopal.
Também não há vestígio de envolvimento de Sarah com o movimento espiritualista, seja na Costa Leste ou na Costa Oeste dos Estados Unidos. Uma busca, tanto nas listas de endereços de moradores de Boston quanto nos artigos publicados em Banner of Light, a principal revista espiritualista da cidade no século 19, não revelou nenhum “Adam Coons”, o que é estranho para um suposto “médium talentoso”, nas palavras da Encyclopedia. A historiadora rastreia a primeira menção de Coons como o médium inspirador da construção em San José até um livro sobre fantasmas, publicado em 1967.
A autora aponta que Sarah Winchester interagia muito pouco com a sociedade californiana. Sua quase-reclusão e a adição contínua de novos cômodos à casa causavam especulações entre o público e jornalistas. O envolvimento com espíritos e a culpa pelo dano causado pelas armas Winchester, conclui Ignoffo, foram invenções da imprensa americana do fim do século 19 e início do 20, a chamada era do “jornalismo amarelo”, quando a guerra comercial por mais circulação e leitores levou a uma corrida desenfreada rumo ao sensacionalismo.
Para completar o quadro, após a morte de Sarah Winchester a mansão acabou caindo nas mãos de uma família especializada em parques de diversão (o patriarca, John Brown, havia inventado um modelo pioneiro de montanha-russa), e o destino turístico Winchester Mystery House estava traçado.
A atração teve seus altos e baixos ao longo dos últimos 90 anos, mas a partir de 1973, quando a gerência do estabelecimento foi assumida por um ex-funcionário da Disneylândia, o negócio decolou. Assim como perpetuou-se, de vez, a distorção da memória de Sarah Winchester, transformada de filantropa excêntrica em mulher desequilibrada por sentimentos de culpa – ou, talvez, sugerem os guias turísticos, assombrada por fantasmas reais.
Ignoffo aponta que o legado mais palpável de Sarah Winchester, pondo a casa maluca de lado, é o Hospital Yale-New Haven, constituído, em parte, graças às doações da viúva para o tratamento da tuberculose.
“O conceito de culpa por causa das armas emergiu das ideias sociais progressistas da virada do século 20”, aponta a autora da biografia. “É altamente improvável que Sarah Winchester se sentisse responsável ou culpada (...) as pessoas associadas à Winchester Repeating Arms Company e as que escreveram a respeito quase sempre a encaravam como uma história americana de sucesso. Um senso de orgulho seria mais provável do que de culpa”.
Tudo isso, no entanto, deixa em aberto a questão: por que, de 1884 e até o terremoto de 1906, a herdeira milionária Sarah Winchester manteve a mansão de San José num estado quase contínuo de obras?
A resposta exata morreu com Sarah, mas a autora da biografia sugere algumas pistas. Para começar, excentricidades arquitetônicas eram comuns entre a elite endinheirada da época. Em San Francisco, por exemplo, “a maior ostentação” era Linden Towers, construída pela família James Flood, um milionário da mineração de prata, “uma massa de 43 cômodos de torres, cúpulas e empenas, encimada por uma impressionante torre de 50 metros”.
Uma segunda pista é que Sarah Winchester parecia realmente gostar de trabalhar com arquitetura, design e construção. Ela se havia envolvido profundamente no projeto da mansão da família Winchester na Nova Inglaterra, por exemplo, quando o marido ainda era vivo. Numa época em que as atividades profissionais de arquiteto, designer e empreiteiro estavam fechadas às mulheres, Sarah Winchester tinha dinheiro suficiente para financiar um hobby extravagante.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência