Eu, negacionista

Apocalipse Now
7 dez 2024
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papel e lápis

 

Semana passada interpretei o papel de negacionista climático para uma turma de pós-graduandos da Universidade Columbia, aqui em Nova York. O objetivo do exercício era dar aos estudantes uma chance de analisar não apenas o discurso, mas as manobras retóricas típicas da negação profissional. A ideia não era caricaturar, mas exibir. E, ao final, pelo menos uma estudante admitiu que, se não soubesse de antemão da natureza do exercício, teria sido convencida por meus pseudoargumentos.

A primeira coisa a saber sobre negacionismo organizado e profissional é que ele nunca representa um fim em si mesmo. Claro que existem negadores apaixonados pela tese específica que defendem de maneira explícita – a Terra não está esquentando, a vida não evolui, o cigarro não mata, o Holocausto não aconteceu –, mas esses são apenas a linha de frente, a vanguarda exposta, as buchas de canhão.

Quando se estrutura em movimento, o negacionismo existe não para negar, mas para que se possa afirmar alguma coisa: a Bíblia contém apenas verdades literais, fumar é inofensivo, está tudo bem em manter a economia dependente de combustíveis fósseis, nazismo é uma boa ideia. 

A consciência de que o negacionismo é uma finta que serve ao avanço de uma afirmação – afirmação que alguém prefere manter apenas implícita (ou totalmente oculta) – dá ao negador profissional a flexibilidade necessária para adaptar seu discurso à realidade do momento e ao público que tem diante de si.

Isso é importante: a menos que esteja se dirigindo a um público muito específico – digamos, bolsomínions do agronegócio –, um negacionista climático, nos dias atuais, teria muita dificuldade em ser levado a sério caso tentasse simplesmente dizer que a temperatura do planeta não está aumentando e que não vivemos uma crise climática.

Lembrando os vértices do triângulo aristotélico da boa retórica – ethos (credibilidade), páthos (emoção) e logos (razão) —, usar negacionismo climático descarado, ainda mais ao falar com universitários em Nova York, simplesmente arrisca queimar qualquer ethos que o argumentador possa ter, e logo na largada. Melhor pensar em outra coisa.

 

Meios e fins

Nesse aspecto, a construção de meu personagem seguiu uma linha muito semelhante à evolução do próprio discurso da negação da mudança climática, cuja corrente principal foi se deslocando, nas últimas décadas, da rejeição pura e simples do fenômeno em direção a um combo de estratégias que inclui transferência de responsabilidade (o problema não é das empresas e governos que faturam bilhões extraindo e queimando óleo, mas do cidadão que usa sacolinha plástica), catastrofismo (é tarde demais, e agora só o dinheiro e a energia do petróleo podem nos salvar) e sequestro de agenda (as empresas e governos viciados em óleo dizem para ficarmos tranquilos porque eles são responsáveis e estão cuidando disso, e por favor parem de encher o saco enquanto tentamos salvar o mundo e furamos mais alguns poços).

O negacionista que encarnei para os estudantes adotou um mix de catastrofismo e sequestro de agenda. Para completar a performance, incluí alguns gráficos capciosos (por exemplo, de variação das concentrações de CO2 na atmosfera nos últimos milênios – editado de forma a não exibir o obsceno pico do século recente), um pouco de conversa fiada sobre como as coisas são complicadas (ei, CO2 é parte do problema, mas não é todo o problema!) e retórica decolonial/terceiro-mundista (os países pobres precisam de mais petróleo para sair da pobreza; ambientalismo é um instrumento das potências centrais para manter o Sul Global de joelhos).

 

Infantil

O sentido geral do argumento foi de que descarbonizar a economia global vai nos privar dos recursos financeiros e da energia que são necessários para enfrentar os efeitos graves da mudança climática. Não neguei a mudança; apenas neguei a solução.

O que não mencionei, porque afinal eu era o vilão da história, foi o fato de que não descarbonizar a economia vai agravar ainda mais esses efeitos graves, aumentando os custos financeiros e energéticos, numa espécie de microfonia catastrófica, uma corrida para o abismo em que a retroalimentação entre causa e efeito empurra o planeta para o colapso.

Minha oponente no debate disse algo a respeito, e respondi com a palavra mágica, “tecnologia”. O dinheiro do petróleo e o livre mercado vão parir alguma coisa, em algum momento, que vai nos salvar – uma geo-engenharia tipo aerossol na atmosfera alta, ou sei lá.  Porque, engenho humano + liberdade = mágica.

Em geral, considero-me um liberal, tanto em questões sociais quanto econômicas, mas essa fé meio infantil que muitos liberais têm, de que não importa a fria em que a Humanidade se meta, sempre haverá uma tecnologia esperando na esquina para nos salvar, só o que precisamos fazer é deixar os mercados livres para criá-la, é exasperante, pois falsa: primeiro, porque não há lei da natureza que garanta que a criatividade e os recursos disponíveis sempre estarão à altura do desafio; segundo, porque faz pouco-caso irresponsável dos problemas já instaurados e do sofrimento que já existe por causa de crises que eram previsíveis e evitáveis antes de começar, e cujo agravamento segue sendo previsível e evitável.

É, no fim, um tipo de pensamento que me lembra de um par de anedotas. Uma, apócrifa, do cara que pula do alto de um arranha-céu e, a cada andar por que passa durante a queda, fala para quem está na janela: “Até agora, tudo bem!”. Outra, de Millôr Fernandes, diz que as pessoas que se preocupam com os riscos de superpopulação e de guerra atômica deveriam relaxar, porque uma coisa é a solução da outra.

Mas é uma fé amplamente compartilhada, inclusive por gente que se acha muito racional, então por que não a usar, certo?

 

Lição

O negacionismo profissional opera mais com ênfases do que com fatos, e com o que fica implícito, mais do que com o que é claramente expresso. “Carbono é um problema, mas não é o único”: uma verdade que, dependendo de como é usada, implicitamente sugere um deslocamento de ênfase.

Um truque especialmente eficaz, quando o negacionista se dirige a plateias formadas por não especialistas, é o que chamo de “apelo ao senso crítico de primeira ordem”: alerta-se a audiência para uma imprecisão do discurso científico – imprecisão muitas vezes introduzida ali por necessidade didática, para efeitos de simplificação –, insinua-se que ela, na verdade, serve a algum fim malicioso e, com isso, deixa-se o público não só hipercrítico e desconfiado em relação ao consenso científico, como mais receptivo ao que o negador tem a dizer: afinal, foi ele que “abriu nossos olhos”.

O trabalho de desmontar construções assim não é muito diferente do que seguir uma prova matemática linha a linha, em busca dos elos fracos, das deduções erradas, dos passos injustificados. Não é algo que caiba com facilidade no intervalo de atenção das mídias sociais, ou que fique bem em debates-espetáculo no YouTube. E personagens como o que interpretei para os estudantes de Columbia sabem muito bem disso.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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