A persistência do criacionismo

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2 dez 2024
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Uma ironia: o Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Princeton (New Jersey, USA), onde realizo meu "doutorado sanduíche", fica num edifício chamado Guyot Hall. Curioso que sou, resolvi investigar. Descobri que seu nome é uma homenagem ao geólogo suíço-americano Arnold Henry Guyot, que deteve o cargo de professor de Geografia Física e Geologia na Universidade de Princeton de 1854 a 1884, ano de sua morte. Rapidamente também fui levado a saber que Guyot mantinha ótima relação com o também suíço Louis Agassiz, que foi contrário às ideias de Charles Darwin até os seus últimos dias de vida. Para meu deleite, tomei conhecimento que Guyot tinha ideias bastante particulares sobre Criação e Evolução.

Suas ideias foram destiladas em sua última obra, publicada no ano de sua morte sob o título Creation, or the Biblical Cosmogony in the Light of Modern Science (“Criação, ou a Cosmogonia Bíblica sob a Luz da Ciência Moderna”, em livre tradução). Pelo primeiro parágrafo do prefácio, já se pode vislumbrar o que vem adiante:

“No início do inverno de 1840, tendo acabado de escrever uma palestra sobre a Criação que faria parte de um curso público de Geografia Física que eu estava ministrando em Neuchâtel, Suíça, ocorreu-me subitamente que os contornos que eu havia traçado, guiado pelos resultados das investigações científicas então disponíveis, eram precisamente os mesmos da grande história apresentada no Primeiro Capítulo do Gênesis”.

O propósito de Guyot era “alinhar esse texto tão antigo [a Bíblia] com a geologia da época”, dado que outras tentativas não se provaram muito eficientes, segundo ele. Embora o livro tenha certamente agradado a uma parcela considerável da audiência, também é verdade que recebeu críticas. Por exemplo, uma resenha anônima na Science afirma o seguinte:

“Certamente, se devemos ter reconciliações desse tipo entre o registro geológico e a cosmogonia mosaica, esta [obra] é a mais nobre e a mais racional que já vimos. Se a fé vacilante de alguém ainda necessita de um tônico assim, recomendamos cordialmente este; mas há muito tempo nos parece que uma completa mudança de ares é a melhor e, de fato, a única solução”.

Não quero passar a ideia de que Guyot era um criacionista daqueles literalistas bíblicos; na verdade, como exposto em seu livro e enfatizado na crítica supramencionada, há nuances nas ideias do autor. Ao ler sobre as ideias desse cientista, que era certamente muito habilidoso e astuto, não pude deixar de refletir, mais uma vez, sobre as necessidades dos “tônicos”, quando claramente (do meu ponto de vista, obviamente) “uma completa mudança de ares” é, realmente, a única saída. Afinal, como é possível que, dado todo o conhecimento científico que adquirimos nos últimos séculos, ainda existam pessoas que negam a realidade da evolução? A resposta, para mim, é óbvia: não é só de informação e conhecimento que se trata, há mais do que isso em jogo.

 

Os Ídolos da Mente

Embora haja muita literatura moderna sobre as diversas razões pelas quais as pessoas acreditam em coisas estranhas, proponho um exercício histórico. A obra Novum Organum do filósofo inglês Francis Bacon, publicada em 1620, contém insights fundamentais para a compreensão do porque acreditamos no que acreditamos. Nessa obra, Bacon formaliza os seus famosos ídolos da mente humana. Os ídolos são obstáculos que dificultam a compreensão objetiva da natureza. Bacon propôs uma taxonomia, classificando-os em quatro categorias principais. A Enciclopédia de Filosofia de Stanford sumariza os ídolos da seguinte maneira:

Os Ídolos da Tribo têm sua origem na produção de conceitos falsos devido à natureza humana, porque a estrutura do entendimento humano é como um espelho torto, que gera reflexões distorcidas das coisas no mundo externo. Os Ídolos da Caverna são concepções ou doutrinas que são valorizadas pelo indivíduo, mesmo sem qualquer evidência de sua veracidade. Esses ídolos são produzidos pelo sistema de pré-condicionamento de cada indivíduo, que inclui educação, costumes ou experiências acidentais ou contingentes. Os Ídolos do Mercado baseiam-se em concepções falsas derivadas da comunicação pública – os efeitos do discurso sobre o entendimento. De acordo com a visão de que o mundo é um palco, os Ídolos do Teatro são preconceitos originados de sistemas filosóficos recebidos ou tradicionais. Esses sistemas assemelham-se a peças de teatro, na medida em que apresentam mundos fictícios que nunca foram expostos a um exame experimental ou a um teste pela experiência. Os ídolos do teatro, portanto, têm sua origem na filosofia dogmática ou em leis erradas de demonstração.

Francis Bacon defendia que identificar e superar esses ídolos era essencial para alcançar o conhecimento verdadeiro e estabelecer uma ciência baseada na observação e na experimentação. Ele enfatizava que a mente humana não é uma tábula rasa. Não, nossa mente não é um receptor ideal, pronto para receber uma imagem perfeita do mundo, mas um espelho que traz consigo distorções implícitas. Em outra obra, Bacon já havia dito: “Em tábuas de cera, você não pode escrever nada novo até apagar o que está velho. Com a mente, não é assim; nela, você não pode apagar o velho até ter escrito o novo”. Como podemos aplicar o esquema de Bacon ao entendimento do criacionismo?

Os ídolos da tribo refletem as limitações inerentes à natureza humana, como a tendência de buscar padrões e explicações intuitivas. O criacionismo frequentemente atende ao desejo humano de encontrar propósito e ordem no mundo, oferecendo uma narrativa simples e reconfortante sobre a origem da vida, alinhada com nossas inclinações naturais para acreditar em histórias que conectem causa e efeito de forma direta. Quanto aos ídolos da caverna, aqui entram as experiências e influências pessoais. Uma pessoa criada em um ambiente religioso ou conservador pode estar exposta desde cedo a uma visão literal da criação bíblica, desenvolvendo preconceitos que dificultam a aceitação de ideias contrárias, como a evolução. A "caverna" cultural e familiar em que vivem reforça a visão criacionista.

Em termos de ídolos do mercado, a linguagem usada no debate entre criacionismo e evolução muitas vezes confunde mais do que esclarece. Termos como "teoria" podem ser mal interpretados, levando criacionistas a rejeitar a ciência evolutiva com o argumento de que "é apenas uma teoria". Além disso, slogans simplistas e frases de efeito podem perpetuar equívocos, como a ideia de que "a evolução é fruto do acaso", distorcendo o entendimento real do fenômeno. Por fim, os ídolos do teatro refletem a influência de sistemas filosóficos ou doutrinas que moldam a percepção da realidade. O criacionismo é frequentemente sustentado por narrativas religiosas que são apresentadas como absolutas e inquestionáveis. A aceitação dessas doutrinas pode impedir que a pessoa questione ou considere evidências científicas que contradigam essa visão.

 

A ‘raison d’être’ 

Como Bacon, acredito que o progresso do conhecimento depende em grande medida da superação desses ídolos. No caso daqueles de nós que lidamos com o criacionismo, seria recomendável sempre termos em mente que as pessoas são criacionistas por razões diversas, não porque são cognitivamente limitadas, ou porque lhes falta informação. É necessário cultivar uma abordagem mais crítica e aberta, que reconheça as imperfeições inerentes à cognição humana, agindo de forma a incentivar a reflexão sobre como esses vieses podem influenciar crenças — em todos os campos do conhecimento humano.

É por isso que defendo que a batalha contra o criacionismo é eterna. Pode parecer pessimista, mas é, na minha visão, libertador. O que posso fazer? Expor minhas razões para pensar que a evolução é uma verdade, ao mesmo tempo em que reconheço que não devo esperar que a outra pessoa as compreenda exatamente como eu. Eu tenho meus “ídolos”, ela terá os dela. E eles nem sempre coincidem. É por isso que não partilho da esperança dos anônimos autores da resenha na Science:

“Em conclusão, devemos dizer que, dado o ponto de vista, o estado de espírito do autor — um estado de espírito que ainda é o mais comum entre os homens religiosos —, o livro é indubitavelmente digno de grande elogio como o melhor de seu tipo. Mas temos certeza de que o estado de espírito do mundo religioso está à véspera de uma mudança, e, com a mudança, a 'raison d'être' [razão de ser] do livro deixará de existir."

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

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