Saiu semana passada o livro “Negacionismo & Desafios da Ciência”, sexta obra de não-ficção que publico e meu terceiro projeto solo nessa seara, depois de “O Livro dos Milagres” e de “O Livro da Astrologia”. Os demais livros sobre história e ciência que publiquei foram em coautoria, começando com “Pura Picaretagem”, com o físico Daniel Bezerra, “Ciência no Cotidiano” e “Contra a Realidade”, ambos com Natalia Pasternak.
Lançado pela Editora de Cultura, “Negacionismo”, embora seja uma obra independente, de certa forma pega a meada mais ou menos onde minha mais recente colaboração com Natalia, “Contra a Realidade”, parou: se o “Contra” (como o chamamos carinhosamente aqui em casa) é uma discussão do negacionismo pela óptica da história da ciência, este último tem como foco a história da negação como ideia – seus pretextos filosóficos, seus usos retóricos, seu poder na política e na psicologia.
Falando assim, pode parecer um livro complicado, mas não é (ou, ao menos, espero que não seja). É uma obra curta, cerca de cem páginas com tipologia generosa, e a editora houve por bem suplementar alguns trechos com destaques breves que oferecem pílulas de informação histórica e contexto.
O objetivo é que seja uma leitura rápida e fluida, acessível para jovens e adultos. Faz parte de uma nova coleção de textos introdutórios sobre assuntos contemporâneos – outros títulos recém-lançados são “Estado e Desenvolvimento” (de Fausto Oliveira) e “Imperialismo” (de Diego Pautasso).
“Negacionismo” também consolida – de novo, espero, em termos simples e de modo fácil de entender – muito do trabalho de crítica de mídia, letramento midiático (educação sobre como ler e interpretar o que sai na mídia) e divulgação filosófica, principalmente de filosofia da ciência, que venho tentando desenvolver neste espaço nos últimos anos. O capítulo final é “estratégico”: tento resumir ali a sabedoria disponível a respeito de como combater o negacionismo, incluindo em relações interpessoais e no caso de eventuais “desafios” para “debate”.
História
Embora os dicionários datem a palavra da língua inglesa denialism do século 19, e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o majestoso VOLP da Academia Brasileira de Letras, só tenha incluído o vocábulo “negacionismo” neste século 21, o conceito – em termos de caracterização psicológica e reconhecimento do impacto social – é registrado desde a Antiguidade, principalmente na história militar.
Do relato de Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, ao livro de Júlio César sobre a conquista da Gália, o número de derrotas atribuídas ao fato de o lado perdedor se recusar a encarar os fatos, preferindo agarrar-se a fantasias confortáveis (mas, no fim, insustentáveis) é notável. Nessas narrativas, às vezes o negacionismo é estimulado pelo adversário, às vezes é 100% nativo, mas o resultado é sempre o mesmo: desastre.
Resumo alguns episódios, retirados dessas fontes clássicas, bem rapidamente no início de “Negacionismo & Desafios da Ciência”. Confesso que, enquanto pesquisava o material, acabei desenvolvendo uma profunda simpatia pela visão de mundo, que alguns podem chamar de amarga ou cínica, do historiador ateniense. Quero aproveitar o lançamento do livro para citar, por aqui, um pouco mais dessa obra, que é também precursora da reportagem e da ciência social.
Tucídides é mais lembrado hoje por seu relato vívido da praga que atingiu a cidade-estado de Atenas logo no início da guerra. Ele mesmo contraiu a doença (varíola, tifo, peste bubônica ou algum tipo de febre hemorrágica são possibilidades) e sobreviveu, mas muitos de seus conterrâneos – talvez até 100 mil, ou um quarto da população local na época – não tiveram a mesma sorte.
Dada a pandemia recente, vale reproduzir alguns trechos:
"Os médicos eram impotentes, já que tratavam da doença pela primeira vez e em estado de ignorância: de fato, quanto mais contato tinham com os afligidos, mais provável era que perdessem as próprias vidas. Nenhum recurso da Humanidade oferecia socorro. Além disso, súplicas nos santuários, apelos aos oráculos e coisas assim eram todas inúteis. No fim, as pessoas foram esmagadas pelo desastre e abandonaram todos os esforços para combatê-lo”.
(...)
“Algumas das vítimas eram abandonadas e morriam; outras, morriam a despeito de receber muitos cuidados. Não havia remédio, pode-se dizer, que devesse ser aplicado, pois o que ajudava um afligido, prejudicava outro. Nenhum tipo de constituição, forte ou fraca, mostrou-se suficiente contra a praga, que matava a todos, não importa o que fosse feito para cuidar deles (...) terrível era ver as pessoas que morriam como ovelhas, por terem ajudado a cuidar de outros”.
Perto do fim da história da praga, encontramos um comentário, precioso, a respeito da maleabilidade da razão humana: buscando uma causa ou explicação para a calamidade, algumas pessoas se lembraram de uma antiga profecia, que dizia que uma guerra contra os dórios (grupo étnico que incluía os espartanos) viria acompanhada “de uma pestilência”. A leitura, feita a posteriori, foi de que se tratava de uma previsão da praga.
Não entrarei no mérito desse tipo de profecia safada, que só “faz sentido” diante do fato consumado (e por isso, na verdade, nunca prevê realmente nada; pelo mesmo motivo, jamais erra). Vou só copiar aqui o comentário de Tucídides:
“Houve controvérsia sobre se a palavra neste antigo verso seria ‘penúria’, em vez de ‘pestilência’ [no grego original, a diferença entre as palavras é de uma letra, apenas: “limos’, literalmente ‘fome’, e ’loimos’, ‘peste’]; mas no atual estado de coisas, a ideia de que a palavra era ‘pestilência’ naturalmente prevaleceu; era um caso de as pessoas adaptarem suas memórias a suas dores. Com certeza, penso que se houver outra guerra contra os dórios depois desta, e se uma penúria resultar dela, então com toda probabilidade as pessoas passarão a citar a outra versão”.
Política
O caso da profecia não configura exatamente negacionismo, mas mostra a atenção particular que Tucídides dedicava aos processos mentais que torcem fatos e memórias para que se alinhem a preferências pessoais e à “fome de sentido” que motiva muito raciocínio torto há, ao que tudo indica, vários milhares de anos.
Outro trecho notável dá conta dos efeitos das paixões políticas sobre a linguagem e a moral. O contexto imediato é a onda de revoltas e rebeliões que tomou conta das cidades-estado gregas à medida que suas lideranças internas polarizavam-se entre as que desejavam aliar-se a Atenas ou a Esparta, em meio à guerra das “superpotências” do mundo grego.
Mais uma vez, dadas as circunstâncias atuais, uma citação breve parece bem apropriada:
“Para acompanhar a transformação dos tempos, as palavras, também, transformaram seus sentidos comuns. O que costumava ser descrito como ato de agressão impensada agora era visto como a coragem esperada de um correligionário; pensar no futuro e esperar era apenas outro modo de declarar-se covarde; qualquer proposta de moderação não passava de tentativa de esconder um caráter pusilânime; capacidade de entender todos os lados de uma questão significava que a pessoa era incapaz de agir. Fanatismo era a marca do verdadeiro homem, e conspirar contra um inimigo pelas costas, autodefesa perfeitamente legítima”.
O episódio explícito de negacionismo aparece na história das cidades da órbita de influência ateniense que decidem, digamos, “proclamar a independência”, acreditando que a capital imperial está enfraquecida demais pela grande guerra e que os rebeldes poderão contar com o apoio de Esparta. Ambas são crenças falsas, sustentadas porque os seres humanos “entregam-se à esperança irrefletidamente, empregando toda a força da razão para rejeitar o que lhes parece desagradável”.
Tucídides pôs essas reflexões por escrito há 2400 anos. Se seu relato da peste de Atenas nos permite dizer que o conhecimento científico evoluiu muito nesse meio tempo – como o enfrentamento da COVID-19 mostrou, hoje sabemos como encurtar, e muito, o período de perplexidade e impotência que acompanha o surgimento de uma nova doença – seus juízos sobre o elemento humano revelam uma criatura dolorosamente fácil de encontrar (ao nosso redor ou em nós mesmos), tragicamente vulnerável a mentiras, falsas profecias e falsas esperanças.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)