Múmia, Frankenstein e o medo do conhecimento

Resenha
13 out 2022
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A Múmia

 

Estamos na temporada de Halloween aqui nos Estados Unidos, e alguns dias atrás um cinema perto de casa fez uma exibição especial, em programa duplo, de dois clássicos do terror estrelados por Boris Karloff (1887-1969), “A Noiva de Frankenstein” (1935) e “A Múmia” (1932). Foi a primeira vez em que tive oportunidade de assistir a ambos os filmes numa tela grande, embora já os conhecesse dos tempos das fitas VHS e do DVD.

Primeira surpresa: várias cenas de que não me lembrava, principalmente em “A Múmia”, que na telona me pareceu um filme mais redondo e bem construído do que a memória sugeria. Sem os velhos videocassetes e DVDs à mão, não tenho como confirmar, mas minha impressão é de que as versões anteriores a que tive acesso haviam sido editadas de modo diferente dos originais.

Ambos os filmes são parte da série de películas de terror produzidas pela Universal e consideradas “clássicas”. A linha começa em 1931 – com “Drácula”, estrelado por Bela Lugosi (1882-1956) – e segue até 1956, ano do lançamento da terceira (e última) aventura do Monstro da Lagoa Negra.

“A Múmia” é dirigido pelo austríaco Karl Freund (1890-1969), que havia sido diretor de fotografia em “Drácula”, e a principal qualidade do filme está no impacto visual das imagens e na interpretação contida, mas ameaçadora, de Karloff. A crítica publicada pelo New York Times em janeiro de 1933 repara que “a fotografia é superior aos diálogos”. E é mesmo. Em especial, os diálogos que constroem a história de amor entre a heroína Helen Grosvenor (interpretada por Zita Johann) e o audaz jovem Frank Wemple (David Manners) são constrangedores – na sala de cinema em que assisti ao filme, repleta de fãs devotos, cada vez que as juras de amor começavam, a plateia ria. Além dos diálogos capengas, o mise-en-scènce ainda está muito próximo, assim como no caso de “Drácula”, do praticado no cinema mudo.

Este é o primeiro terror da Universal sem uma fonte literária direta. Histórias de terror envolvendo múmias redivivas não eram novidade da literatura (o que se poderia talvez considerar o clássico do gênero, o romance “A Joia de Sete Estrelas”, de Bram Stoker, mesmo autor de “Drácula”, havia sido publicado em 1903, e antes disso Arthur Conan Doyle havia usado uma múmia assassina como o monstro de seu conto “Lote 249”, de 1892), mas o roteiro de “A Múmia” não bebe diretamente em nenhuma dessas fontes.

O filme se baseia num enredo original desenvolvido para o estúdio pela escritora Nina Wilcox Putnam, sobre um alquimista que se mantém vivo por 3.000 anos e, a cada século, busca seduzir a reencarnação de sua amada original. Mas os executivos da Universal queriam um monstro no filme, e por isso o alquimista foi convertido numa múmia. O tema do imortal (ou morto-vivo) que percorre a eternidade em busca de um amor perdido acabou incorporando-se depois às versões cinematográficas de Drácula, embora não esteja presente nem no romance de Stoker, nem no filme de 1931.

Dirigido por James Whale (1889-1957), “A Noiva de Frankenstein” é um filme superior a “A Múmia” em todos os aspectos, exceto talvez na atmosfera. Os diálogos são eficientes, a direção de cena é ágil e moderna, sem nenhum ranço da era do cinema mudo. A fusão entre horror, tragédia e os momentos de comédia é eficiente, e as cenas criadas para inspirar piedade pelo monstro – o período de convivência com o eremita cego, o encontro fatídico com a Noiva – comovem ainda hoje, a despeito das inúmeras paródias dos últimos quase 100 anos (por exemplo, a fantástica sátira em “O Jovem Frankenstein”, de Mel Brooks).

Mas o que realmente me chamou atenção agora ao rever “A Noiva” – e, em menor medida, “A Múmia” – foi o caráter sinistro dado ao conhecimento em geral, e à pesquisa científica em particular, em ambos os filmes. Em “A Múmia”, o sábio orientalista Dr. Muller (interpretado por Edward Van Sloan, o mesmo Dr. Van Helsing de “Drácula”) exorta seus colegas arqueólogos a não estudar o Papiro de Toth, a descoberta que acaba trazendo a múmia de volta à vida.

Além disso, Imhotep, o sacerdote egípcio que é embalsamado vivo no Egito Antigo (e retorna como múmia ambulante em 1932) tinha sido punido pelo faraó por buscar um conhecimento proibido, o segredo da ressurreição dos mortos.

Já em “A Noiva de Frankenstein” a mensagem de que há coisas com que a ciência não deveria se meter, e de que os cientistas são punidos pelo pecado de tentar penetrar os segredos de Deus, é repetida tantas vezes, e de tantos modos diferentes, que a situação toda chega a ser irritante ou (involuntariamente) cômica.

Noiva de Frankenstein

Na sequência que serve de prólogo à história principal, a jovem Mary Shelley (1797-1851), interpretada por Elsa Lanchester (1902-1986) já anuncia que seu objetivo é “escrever uma lição de moral sobre o castigo que recai sobre o mortal que ousa imitar Deus”, algo a anos-luz de distância do objetivo da Mary Shelley real ao escrever o romance “Frankenstein”.

Parte desse prurido todo se explica pela instauração do Código Hays, o sistema de autocensura adotado pela indústria cinematográfica americana em 1934. Segundo o autor James L. Neibaur no livro “The Monster Movies of Universal Studios”, a censura “levantou objeções a quaisquer comparações que Frankenstein pudesse fazer entre si mesmo e Deus, quis que o número de homicídios no filme fosse reduzido e disse que o vestido de Elsa Lanchester nas cenas como Mary Shelley mostrava muito dos seios”.

A ideia de que a investigação científica do princípio da vida é diabólica em si é reforçada pelo verdadeiro vilão do filme, Dr. Pretorius (Ernest Thesinger), um “cientista” que fala, comporta-se e veste-se como uma espécie de sumo-sacerdote satânico. É Pretorius que anuncia a Frankenstein que ambos agora estão “num novo mundo de deuses e monstros!”

O tema do conhecimento como fonte do mal e da busca do conhecimento (mágico, no caso de Imhotep, científico, no de Frankenstein) como pecaminosa e digna de castigo é mola mestra nos dois filmes, certamente não por obscurantismo deliberado dos roteiristas e diretores, mas porque coadunava-se com o senso comum da época e aplacava os censores. Traz tranquilidade imaginar que a zona de conforto do “normal” é, além de confortável, também segura, e que horrores esperam apenas quem busca sair dessa bolha. Mas essa é apenas uma fantasia agradável. A experiência do real mostra que, na maioria das vezes, horrores nascem não da busca pelo conhecimento, mas da insistência na ignorância.  

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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