Física quântica para "um mundo melhor"

Resenha
11 mar 2021
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Quem nunca se divertiu com o topete e a irreverência com que o personagem Ace Ventura (Jim Carrey) resolve seus conflitos nos filmes em que investiga eventos relacionados ao mundo animal? Esses filmes, que marcaram minha infância, fazem parte dos primeiros destaques da carreira do diretor Tom Shadyac. Nos seus trabalhos subsequentes, conduziu outras famosas comédias, como O Professor Aloprado e O Mentiroso. Em 2010, lançou um documentário intitulado I am – você tem o poder de mudar o mundo.

O fio condutor é a experiência pessoal que o diretor compartilha com o público: após um acidente de bicicleta, ocorrido antes das gravações, Shadyac passou a sofrer de uma síndrome pós-concussão, com dores de cabeça intensas e hipersensibilidade a alguns estímulos, como som e luz, dificultando que levasse uma vida normal.

No caminho de busca pela cura, relata o diretor, ele passa a se questionar sobre a própria essência humana e o que há de errado no mundo. Assim, o documentário mostra o cineasta à procura de respostas a partir de entrevistas com diferentes personalidades, como apresentadores, ativistas ambientais, psicólogos, filósofos, líderes espirituais e também famosos propagadores de pseudociência (como Lynne McTaggart e Dean Radin).

Quais os problemas do mundo, afinal? Como é de se esperar, não há uma resposta definitiva para a questão, mas diferentes fatores são discutidos: o consumismo desenfreado, o incentivo constante à acumulação de riquezas, nossas relações degradantes com o meio ambiente e as demais espécies, a fome, e a competição extrema entre indivíduos, seja na busca individual para ser o melhor, o mais bonito ou o mais rico, seja em conflitos diretos.

Embora não seja um lançamento recente, somente nos últimos dias recebi a indicação para assistir ao documentário, por um motivo bastante simples: as correlações (altamente questionáveis) feitas entre Física Quântica (FQ) e as discussões de cunho ambiental e social.

 

Forçando a amizade com a Física

Ao menos para os leitores frequentes da Revista Questão de Ciência, não é mais novidade o fato de que muita gente vem usando a Física Quântica para promover produtos e serviços pseudocientíficos, ou seja, usam termos da ciência de modo indevido, fora de contexto ou com distorções, na esperança de passar uma mensagem aparentemente convincente para aqueles que não conseguem perceber as fraudes.

Já abordamos, por exemplo, as alegadas relações da FQ com a homeopatia, com a memória da água, com a mente humana e também com argumentações motivacionais. Eu mesmo cheguei a participar, a pedido do Instituto Questão de Ciência, de um congresso de saúde quântica, cujo relato foi publicado aqui. O que vamos analisar agora é a validade das conexões apresentadas entre as ideias da Física Quântica e as ações que podemos executar para buscar um mundo melhor, de acordo com o filme de Shadyac. A criatividade das pessoas não tem limites.

Para quem não sabe, a FQ trata de estudar os fenômenos que ocorrem, primariamente, na estrutura da matéria: de que maneira átomos absorvem ou liberam energia, como descrever o comportamento da luz, dos elétrons, dos núcleos e a radioatividade, por exemplo, são do escopo desta área da Física. Parte do motivo por trás de toda essa confusão pseudocientífica gerada a partir da FQ reside no fato de que, realmente, muitos fenômenos do mundo quântico são completamente estranhos ao que indicaria nossa intuição.

Cito os dois fenômenos explorados no documentário:

 

Emaranhamento quântico

Quando alguém mergulha em um dos cantos de uma piscina, leva um intervalo de tempo para que as ondas geradas atinjam outra pessoa que está, por exemplo, boiando próxima à margem oposta. Essa ideia também se aplica para a comunicação entre duas pessoas: se uma delas usar uma lanterna para enviar um sinal à outra, o tempo necessário para receber a mensagem depende da velocidade com que a luz se propaga. Estamos acostumados com a ideia de que a troca de informação entre dois pontos sempre leva tempo.

O fato estranho da FQ, sobre isso, é que, em alguns experimentos devidamente preparados, é possível gerar partículas que estejam com seus estados correlacionados, algo que chamamos de emaranhamento quântico. Quando isso acontece, qualquer intervenção numa dessas partículas gerará um efeito imediato, sem qualquer intervalo de tempo, na companheira emaranhada, independentemente da distância que as separe. Apenas para efeito de gerar danos à sua próxima noite de sono, destaco que isso vale mesmo que uma dessas partículas esteja aqui na Terra e a outra, na galáxia vizinha.

Usando o fenômeno para fazer um mundo melhor:

No documentário, essa ideia é usada para dizer algo como: “a ciência moderna comprovou que todos nós estamos conectados a tudo a nosso redor, portanto nossas ações geram consequências tanto para outras pessoas quanto para o ambiente”.

Problema:

Estados emaranhados, ou “entrelaçados”, aparecem, como disse, em experimentos devidamente preparados para isso. Em geral, são difíceis de produzir e controlar. Interferências externas podem destruir o emaranhamento. Por isso, é uma grande ilusão pensar que nossos corpos, ou nossos cérebros, constituídos por células, que são de tamanho muito maior que o do mundo dos átomos, conseguem entrar (e permanecer) em estados emaranhados com outros seres vivos ou com todo Universo.

 

O papel da medição

Quando lançamos uma moeda para cima e depois a pegamos, mantendo-a na mão fechada, não temos como saber qual é a face que está virada para cima, mas ninguém discorda que o resultado do lançamento, mesmo escondido, já é bem determinado (cara ou coroa). Dessa forma, quando abrimos a mão, podemos “medir” o sistema, ou seja, “conhecer passivamente” a face da moeda que está à mostra. Em outras palavras, nossa ação de “observar/medir” um sistema do mundo cotidiano não gera efeitos significativos no sistema.

Porém, as coisas ficam mais interessantes na FQ: se a moeda fosse uma partícula, na estrutura da matéria, onde os efeitos quânticos dominam, se a “lançássemos para cima” e não verificássemos o resultado, ela não mais estaria com seu estado bem determinado, ficando em uma espécie de “estado sobreposto”, contendo cara E coroa, até que alguém resolvesse “medir” qual é a “face da moeda para cima”. No mundo quântico, portanto, as medidas não são ações de apenas “conhecer passivamente” o sistema, mas fazem, de alguma maneira ainda não bem compreendida, com que o sistema deixe a sobreposição e assuma apenas um dos resultados possíveis.

 

Usando o fenômeno para fazer um mundo melhor:

O documentário tenta sustentar uma ideia assim: “da mesma forma que um observador, na FQ, tem o poder de criar o estado de um sistema, estamos constantemente observando o mundo ao nosso redor e, portanto, somos os responsáveis, juntamente com todas as demais criaturas vivas, por criar a realidade que queremos”.

Problema:

Essa afirmação de que “observador cria uma propriedade do sistema” cria uma confusão entre “observar” e “medir”: enquanto os físicos podem acabar usando ambas as expressões como sinônimos, os místicos forçam uma separação, alegando que a tal quebra da sobreposição só ocorre porque existe um ser consciente por trás da medida, o “observador”. Porém, até onde sabemos, não é necessária qualquer consciência: a medida, ainda que realizada por equipamentos inanimados, já quebra a sobreposição.

Também sabemos que o observador não tem condição de escolher o resultado da medida de um sistema quântico. Podemos, como no caso da moeda macroscópica, calcular a probabilidade de ver um resultado ou outro, mas nada além.

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Vale destacar que um dos entrevistados no documentário, Dean Radin, é um ativo realizador de experimentos cujos resultados, segundo ele, demonstram positivamente a influência da consciência sobre resultados da FQ. Porém, ao revisar os dados obtidos por ele, fica claro que diferentes experimentos envolvendo o papel da consciência apontam que essa suposta influência ocorre de modo contraditório. Como se isso já não fosse um sinal de alerta, outras revisões apontam que seus resultados são do tipo falso-positivo, por vários problemas metodológicos.

 

Analogia?

Ora, mas será que as argumentações envolvendo Física Quântica não são apenas analogias? – argumentam aqueles que não veem (ou não querem ver) maldade nas manobras quânticas dos charlatães. De fato, até os próprios cientistas se utilizam de analogias para explicar diversos fenômenos. Basta lembrar-se do meu exemplo anterior da “moeda quântica”, ou então de quantas vezes seu professor de Física ou Química se referiu à “nuvem de elétrons” em sala de aula: tenho certeza de que ele não estava tratando de um fenômeno meteorológico.

Analogias devem servir para ilustrar ou facilitar o entendimento, mas o discurso do documentário segue um viés totalmente diferente: além de não citarem, em momento algum, que estão fazendo analogias, ainda usam os resultados da FQ como meio de comprovação das ideias que sustentam, e isso, como vimos, não condiz com a realidade.

 

Salvando o Bebê

Abstraindo a bobagem pseudocientífica, a mensagem mais geral do filme, de que nossas ações têm impactos no ambiente e nas outras pessoas; e que precisamos nos conscientizar dos problemas ao nosso redor para tomar atitudes que visem melhorar o mundo, é, a meu ver, bastante pertinente.

Precisamos mesmo continuar explorando a natureza sem nos preocuparmos com o futuro dos recursos naturais e do clima? Devemos continuar a promover uma agenda humana baseada apenas nos desejos dos mais poderosos? Mesmo que não possamos realizar ações que mudem o mundo, será que não podemos tomar pequenas atitudes para contribuir, ao menos, com nossa comunidade local?

É por essas razões que, como diz o ditado, não vou “jogar fora o bebê junto com a água do banho”.

É certo que já passou da hora de começarmos a executar mudanças em escala global, especialmente no modo como nossa sociedade administra seus recursos e interage com as demais espécies e com o ambiente. Os problemas são urgentes, mas lamento informar que a mistura de misticismo com Física Quântica não é parte da solução.

 

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

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