Expor a infraestrutura filosófica das ciências e preparar oa ânimos de cientistas e filósofos para o que os autores veem como a próxima trincheira da batalha do intelecto contra o senso-comum — a unificação corpo-mente — são dois objetivos bem ambiciosos para um livro em formato bolso de 122 páginas. A tarefa, no entanto, é desempenhada com valentia e competência pela dupla de autores, o escritor e roteirista (formado em Física) Ronaldo Marin e o semiólogo Gustavo Rick Amaral, em “Os Avanços da Ciência Podem Acabar com a Filosofia?”, da Coleção Interrogações, publicada pela Estação das Cores e das Letras.
Marin e Amaral expõem, nos capítulos iniciais, o contraste entre as visões aristotélica e cartesiana do mundo — derivadas, respectivamente, dos trabalhos de Aristóteles (384-322 AEC) e René Descartes (1596-1650) — e propõem que a virada empírica da ciência, a partir do século 18, quando fatos experimentais, e não mais o raciocínio abstrato sobre a finalidade e o significado último das coisas, passaram a ser privilegiados, teve a vitória do cartesianismo como pré-condição: a revolução científica teria sido consequência da filosófica.
Trata-se de uma visão bem comum do processo da nascimento da ciência moderna, e os autores a utilizam para argumentar que as “notícias da morte da filosofia”, trazidas por cientistas como Stephen Hawking ou Neil DeGrasse Tyson, “são exageradas”. Se o substrato da ciência é filosófico, um cientista que descarta a filosofia age como o jardineiro imprudente que se senta no galho mais alto de uma árvore e logo se põe a serrá-lo.
A conclusão dos autores é válida, mas o argumento construído no livro representa apenas uma primeira aproximação: a relação entre ciência e filosofia é bem mais complicada do que a sugerida, da filosofia como o terreno (ainda que instável) sobre o qual se ergue a ciência.
Muita filosofia — isso acontece em trabalhos de Aristóteles e Descartes — começa com o filósofo tomando idiossincrasias de seus momento histórico ou da sociedade em que vive como dados apriorísticos e, a partir daí, deduzindo “verdades” sobre a tessitura da realidade. Avanços da ciência podem expor esses provincianismos e, assim, também ajudar no avanço da filosofia.
Sem hierarquia
Em “Science and Values”, por exemplo, o filósofo Larry Laudan propõe um modelo em que a relação hierárquica linear filosofia-método-ontologia (onde considerações filosóficas levam ao estabelecimento de um método de investigação que, por sua vez, vai revelar a ontologia, isto é, as coisas que existem no mundo) é substituído por um anel de influências mútuas e interdependências, onde tanto a ontologia quanto o método podem, por meio de um processo paulatino de erosão e reconstrução, transformar a filosofia.
Casos clássicos são o de forças que agem à distância, ou da existência de átomos e moléculas: a pressão, sobre o método, para manter uma ontologia que excluísse “entidades inobserváveis” do rol das categorias válidas de discurso acabou se mostrando insustentável e levando à aceitação, pela filosofia-base da ciência, da incorporação desses entes.
Laudan sugere um modelo em que a ciência é a atividade que “resolve problemas”, mas que o faz sob a pressão constante de dois imperativos: o de minimizar anomalias empíricas (isto é, choques entre teoria e experimento) e os conflitos conceituais, como contradições, explicações ad hoc ou excessivamente convolutas ou complexas. Esse processo de minimização é contínuo e envolve uma comunicação constante, e largamente não-hierárquica, entre as esferas empírica e filosófica.
Outro filósofo contemporâneo, James Ladyman, propõe uma metafísica informada pelas ciências. Numa entrevista publicada em 2015, por exemplo, Ladyman pondera que “nas ciências, causação pode se dar no nível populacional ou individual, e pode ser probabilística ou determinística. Correlação, em si, não é causação, mas estatísticas muitas vezes são o único meio de avaliar uma estrutura causal em ciência. Esses métodos têm muito pouca semelhança com as ideias de causa do senso-comum ou com versões filosóficas delas, como as de condições necessárias e suficientes”.
Do ponto de vista dos cientistas, a rejeição da visão hierárquica — ou construtiva, tipo base/estrutura — entre filosofia e ciência é muito bem expressada pelo ganhador do Nobel de Física Steven Weinberg, em seu livro sobre história da ciência “To Explain The World”: “Aprendemos a fazer ciência não inventando regras sobre como fazer ciência, mas pela experiência de fazer ciência, levados pelo desejo do prazer que temos quando nossos métodos têm sucesso em explicar alguma coisa”.
Weinberg acredita que o papel das contribuições filosóficas de Descartes e outras figuras da mesma época, como Francis Bacon (1561-1626), para a fundação da ciência moderna, é superestimado por filósofos e historiadores.
Para ele, a ciência é primeiro feita e, só depois, pensada. Os pressupostos filosóficos iniciais da atividade seriam os mesmos do cidadão na rua, com sua confiança nos sentidos, no poder das mãos e nas lições da experiência. O refinamento dessa visão ingênua emergiria da própria prática.
Mente e religião
Os autores de “Os Avanços da Ciência Podem Acabar com a Filosofia?” veem ciência e religião numa rota inevitável de colisão. “O mecanicismo é uma infraestrutura metafísica que faz com que a visão científica da natureza não admita existência, no mundo natural, de causas que não sejam mecânicas”, escrevem, elaborando o argumento de que, ao banir os “fatos” da religião — Gênesis, Jardim do Éden etc. — para o reino dos mitos, a ciência acaba esvaziando as próprias bases semânticas do discurso religioso.
Ao causar esse esvaziamento e oferecer à Humanidade uma visão de mundo que, segundo Marin e Amaral, é fria e desprovida de sentido ou propósito, a ciência teria o efeito indesejado de empurrar parte da população para a irracionalidade anticientífica. O argumento não é articulado desse modo no livro, mas me parece estar lá, implícito.
Os autores lamentam ainda que “defensores otimistas e ingênuos da ciência” subestimem a capacidade das tecnologias modernas da comunicação em disseminar informação anticientífica, ao mesmo tempo em que são impotentes para “transmitir, em linguagem acessível, conceitos que sejam favoráveis à mentalidade científica”.
Após uma breve excursão pelas Humanidades (onde dão à teoria psicanalítica de Sigmund Freud mais crédito do que ela realmente merece), Marin e Amaral fecham o livro especulando sobre como deverá se dar o que chamam de Terceira Grande Unificação entre mente e corpo, e que segundo os autores se segue à Primeira (céu e terra, operada por Newton) e Segunda (homem e biosfera, de Darwin).
Essa unificação terceira irá requerer, segundo eles, o desmonte da barreira entre “exatas, biológicas”, de um lado, e “humanas”, de outro. O processo terá de acontecer ao mesmo tempo em que os cientistas precisam lutar contra os populismos anticientíficos na arena política.
“Os Avanços da Ciência Podem Acabar com a Filosofia?” cobre muito terreno em pouco espaço, o que torna simplificações e hipérboles quase inevitáveis (os positivistas, ou empiricistas lógicos, do século 20 são tratados de modo mais duro do que merecem, em minha opinião).
A linguagem às vezes é escorrega para o grandiloquente (“esta máquina farejadora de causalidade cospe narrativas frias e defeca novidades tecnológicas”). Mas a obra representa uma introdução acessível, ainda que necessariamente simplificada, da troca íntima que existe entre ciência e filosofia.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)