Jonathan Haidt: o perigo das mentes moralistas

Resenha
11 jan 2020
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capa haidt

Um traço comum das disputas políticas no interior do Brasil é a intensa polarização em época de eleições. Na atualidade, quando a divisão motivada por crenças e expectativas políticas é uma constante em todo o país, quem viveu ou vive no interior não estranha muito a situação (escreve-se em outubro de 2018). Isso ocorre por que nas cidades médias e menores da nossa jovem democracia, as pessoas manifestam e conhecem as posições umas das outras, identificando os grupos a qual pertencem com bastante facilidade. Num ambiente pequeno e de poucas opções, a divisão entre “nosso lado” e o “lado deles” floresce com muita intensidade, com consequências práticas que beiram a violência e a perseguição. 

Quando a apuração dos votos da eleição termina e os resultados são publicados, não é incomum que o lado “perdedor” receba algum tipo de manifestação. Essa divisão cria uma estranha distinção moral entre os grupos, onde ambos os lados se consideram moralmente superiores ao outro grupo. Também podemos observar essa divisão próxima do tribalismo nas relações entre as diferentes religiosidades, onde elementos históricos e metafísicos (“O Livro”, “O Povo Eleito”, etc.) inflam ainda mais as divisões e distinções. No entanto, na política democrática tais conflitos chamam a atenção por se tratar de um processo de escolha sobre a organização da comunidade, pautado em ideais de liberdade e racionalidade. Por que nos dividimos tanto, pautados por curiosas distinções morais pouco explicadas?

Essa é a questão que o psicólogo americano Jonathan Haidt enfrenta em The Righteous Mind: Why good people are divided by politics and religion. Para responder, Haidt aborda os possíveis modos como nossa psicologia moral se desenvolveu ao longo da história evolutiva, juntamente com uma abordagem sobre os limites da racionalidade quando lidamos com questões que envolvem as relações humanas. Também questiona os modelos tradicionais da psicologia moral e traz à tona questões interessantes sobre a relação entre filosofia, psicologia e evolução, através de curiosos experimentos e levantamentos. Algumas das conclusões de Haidt são questionáveis e abertas à objeção. Porém, trata-se de uma investigação interessante e fundamentada sobre o desenvolvimento de nossa psicologia moral e nossas tendências moralizantes. 

Publicado em 2012, em meio aos intensos debates políticos e culturais dos Estados Unidos, The Righteous Mind (algo como “A mente moralista”) compila estudos e pesquisas realizados pelo próprio Haidt e outros especialistas, além de abordar hipóteses filosóficas tradicionais sobre a moralidade, avaliando seus argumentos e viabilidade a partir do ponto de vista da psicologia moral. Além de ser uma boa introdução à psicologia moral, contextualiza esse campo de pesquisa, descrevendo os passos da construção de suas hipóteses, e o coloca em diálogo com os desenvolvimentos científicos de outras áreas. 

O livro é dividido em três partes, que o autor anuncia através de hipóteses gerais, demonstradas através de estudos e experimentos sobre a psicologia moral. Na primeira delas, Jonathan Haidt mostra como “A intuição vem antes e o raciocínio estratégico vem depois”. Essa hipótese intuicionista sobre a moralidade humana difere-se de posições racionalistas tradicionais, que acreditam que os juízos morais são fruto de análises e reflexões detidas sobre as circunstâncias. Na maior parte das vezes, nossas intuições e emoções são a base para nossas avaliações morais. Haidt utiliza uma metáfora para ilustrar o modo como nossa moralidade funciona: temos um condutor (razão) tentando controlar um elefante (intuição e emoções). Fruto de um longo e lento processo evolutivo de desenvolvimento, a psicologia moral humana tende mais ao modelo proposto por David Hume (“razão como escrava das paixões”), do que ao modelo racionalista de Immanuel Kant (“a lei moral dentro de mim”). 

Na segunda parte, Haidt defende que “A moralidade não se resume ao mal e a à justiça”: segundo seu modelo, o processo desenvolvimento da espécie humana produziu seis elementos aos quais somos moralmente sensíveis: (i) cuidado/dano; (ii) equidade/trapaça; (iii) lealdade/traição; (iv) autoridade/subversão; (v) santidade/degradação; (vi) liberdade/opressão. O autor identifica essa caracterização como Teoria das Fundações Morais, que variam em termos de nuance nos diversos agrupamentos e sociedades humanas. Assim, a moralidade humana vai muito além da dicotomia entre bem e mal: a moralização constante das circunstâncias é um traço decisivo da natureza humana, desde a infância. A metáfora utilizada para ilustrar o ponto é: “A mente moralista é como uma língua com seis receptores de sabor”.  Às vezes, na mesma sociedade, diferentes grupos podem apresentar visões ou nuances diferentes em cada uma delas, e Haidt utiliza o exemplo das divisões entre liberais e conservadores na política americana. Conservadores possuem certa vantagem nos debates, uma vez que seu discurso impacta mais elementos de nossa sensibilidade moral do que o discurso liberal racional e cuidadoso.

Por fim, na terceira parte, cujo tema central é “A moralidade enlaça e cega”, Haidt mostra como os seres humanos se dividem com tanta facilidade em termos morais. Mais uma vez, a base da hipótese é o modo como nossa moralidade evoluiu, a partir de circunstâncias tribais e grupais, que que nos transformou no que Haidt chama de Homo duplex: 90% chimpanzés e 10% abelhas. Isso nos torna egoístas e grupalistas ao mesmo tempo. Política e religião são o campo onde manifestamos nossas tendências morais com mais intensidade, matando e morrendo por visões morais diferentes. Discordamos com violência, pois nossos vieses morais gritam a partir de diferentes nuances entre as fundações morais. Na maioria das vezes, debates e questões morais irão nos dividir, como nos casos tradicionais dos intensos debates envolvendo política e religião.

Ao final, Haidt sugere que um passo fundamental para evitar ou minimizar as polarizações envolve outro traço humano fundamental: a empatia. Para além do que nos separa, possuímos uma série de situações em comum (segundo autor, “estamos presos juntos por aqui”). O diálogo bem feito e civilizado, a escuta paciente e a aceitação de visões diferentes sempre aconteceram, mostrando que é possível conviver com diferentes matrizes morais. Não se trata de uma tarefa fácil para seres humanos, devido aos modos como nossa psicologia moral se desenvolveu, mas não é impossível. Construir esse hábito evitaria as tensões e violências entre adeptos de diferentes posicionamentos.  

É interessante ressaltar que a hipótese de Haidt utiliza cenários evolutivos para explicar a moralidade humana para a além do genocentrismo, a hipótese dominante em análises do tipo. Trata-se de uma visão na qual os genes são elementos chave na seleção natural (O Gene Egoísta, de Richard Dawkins, é a principal publicação que divulgou essa visão). Haidt, com base em hipóteses mais recentes em filosofia da biologia, aponta a relevância de outros níveis, como o indivíduo e o grupo, defendendo a evolução multinível. Esse debate mais avançado na biologia teórica está em andamento, e mostra como as bases filosóficas das ciências são relevantes.

Uma das principais objeções ao modelo proposto por Haidt, levantada pelo filósofo Joshua Greene, é que o intuicionismo não deixa muito espaço para o raciocínio moral, sempre limitado pela intuição e pela emoção. Isso seria um problema, pois torna difícil a mudança de visões morais. No entanto, mesmo com tal crítica, o modelo nativista e intuicionista de Haidt explica as tensões dos embates morais de todos os tempos com base em evidências da psicologia moral humana, dialogando com a filosofia e as ciências sociais. Mostra os perigos da moralização constante e de como ela pode nos dividir, às vezes com muita violência. Os recentes debates na política brasileira servem como exemplos dos efeitos de diferentes visões da moralidade numa sociedade. 

Em tempos de política e religiosidades intensas, com redes sociais, que nos estimulam, impactam e indignam a todo momento, é importante compreender o papel das violentas emoções morais desencadeadas. A violência que a moralização intensa pode trazer em sociedades polarizadas é um risco que nos assola, mostrando principalmente o quão perigoso pode ser alguém que tem certeza que é “um cidadão de bem”.

 

 

José Costa Júnior é professor de Filosofia e Ciências Sociais do Instituto Federal de Minas Gerais - Campus Ponte Nova

 

REFERÊNCIA:

 

HAIDT, Jonathan.  The Righteous Mind: Why good people are divided by politics and religionNova York: Vintage Books, 2012.

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