Imagine que, quatro ano atrás, o Chiririquense da Serra terminasse o Brasileirão rebaixado. Não bastasse o vexame, o time não enfrentou o adversário da 32ª rodada porque o presidente do clube sumiu com a bola. Agora, quatro anos depois, a CBF exige que os dois times realizem a partida, só para cumprir tabela. Se isso de fato ocorresse no futebol, produziria intenso debate nos jornais, programas de TV e rádio, sem falar nas redes sociais. E, certamente, a mídia especializada não cometeria o erro de tratar a partida burocrática como um tira-teima da final. Quando o assunto é ciência, no entanto, o público não é tão bem servido pela imprensa.
Porque o time em questão é o da “fosfoetanolamina sintética” (“pílula do câncer” ou apenas “fosfo”). A alegação, sem base científica, de que a molécula, se preparada de acordo com o processo recomendado por seus defensores, poderia curar qualquer tipo de câncer causou furor há quatro anos, a ponto de o então Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), sob intensa pressão popular, ter alocado R$ 20 milhões para submeter a substância a testes científicos rigorosos.
Nesse meio tempo, porém, um estudo com 59 pacientes do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), seguindo a prescrição do químico de São Carlos Gilberto Chierice, que inventou a pílula, e acompanhado de perto por seus representantes, foi suspenso por “ausência de benefício clínico significativo” – ou seja, o produto não tinha efeito nenhum contra o câncer, a despeito do que Chierice e seu séquito afirmavam.
Os “fosfoadeptos” reclamaram, alegando que a dose usada era inferior à indicada pelo inventor. O teste, porém, serviu para tirar o composto das manchetes e do holofote da política.
O problema é que a CBF – no caso, o atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), somado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – quer que o laboratório contratado para realizar os testes iniciais entregue os resultados da pesquisa e a prestação de contas.
Problema: o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da Universidade Federal do Ceará, contratado para o estudo, nunca conseguiu obter acesso à “fosfo” original, da grife de Chierice, ao longo de todo esse tempo.
Duvidosa pureza
Agora, quem tem de descascar o abacaxi é o professor Odorico de Moraes, doutor em Oncologia pela Universidade de Oxford e diretor do NPDM.
“É um teste de fase 1, básico, em que 60 voluntários saudáveis, divididos em cinco grupos de 12, vão receber doses progressivamente maiores do composto, de 500 mg iniciais até 3 gramas,” explica Moraes. “Vamos avaliar toxicidade, eventuais efeitos colaterais e farmacocinética, ou seja, quanto tempo o composto leva para ser absorvido e metabolizado pelo organismo.”
A despeito do que foi publicado por alguns serviços noticiosos na última semana, não se trata de um início de pesquisa, mas de um encerramento. É teste para cumprir tabela.
“Nosso laboratório foi contratado, quatro anos atrás, e o MCTIC está nos cobrando a pesquisa, os resultados, o CNPq quer que apresentemos prestação de contas,” continua o pesquisador. “Tudo que eu quero é terminar o trabalho e entregar a encomenda, por assim dizer, porque não posso ter outro projeto enquanto não entregar esse. Eu recebi a verba há quatro anos, mas só agora recebi a ‘fosfo’”, conta.
A substância que Moraes finalmente recebeu foi produzida pelo Baruk Laboratórios Ltda., com sede na cidade de Aparecida de Goiânia. O material chegou acompanhado de laudo de empresa privada assegurando que, de cada 500 miligramas do composto, 469 são fosfoetanolamina, ou seja, uma pureza de 93,8%.
“Eu gostaria de ter uma contraprova, porque sequer sabemos o método analítico que utilizaram,” disse Odorico de Moraes. “Outros estudos mostraram grau de pureza bem inferior, mas não temos verba para confirmar isso. Estamos tentando um acordo com a Unicamp, que anteriormente seguiu o método de Chierice e obteve apenas 30% de fosfo.”
Contramão da ciência
Quatro anos atrás, no auge da histeria nacional sobre a “pílula do câncer da USP”, o então Ministério da Ciência e Tecnologia alocou uma verba de R$ 20 milhões para que a substância fosse submetida a testes de avaliação.
Havia enorme demanda popular para liberação imediata do uso médico da fosfoetanolamina produzida pelo químico Gilberto Chierice, que durante duas décadas foi distribuída ilegal e gratuitamente dentro do campus São Carlos da Universidade de São Paulo (USP). A produção da tal pílula, dentro de um laboratório inadequado para a fabricação de material para consumo humano, já havia se tornado parte do folclore de São Carlos quando foi, finalmente, proibida pela reitoria.
A notícia da proibição, veiculada em escala nacional, fez com que a “fosfo” se convertesse em mania por todo o país.
Chierice, com vários trabalhos na área industrial, alega que sua pílula cura o câncer, qualquer tipo de câncer, desde que o sistema imunológico do paciente esteja intacto – ressalva que levou muitos pacientes a interromper tratamentos médicos sérios, como quimioterapia e radioterapia.
Infelizmente, o inventor se prende a uma visão da biologia do câncer superada já há mais de 70 anos. O arsenal contemporâneo de estratégias para combater as quase duzentas doenças diferentes conhecidas como câncer é enorme, e ganha cada vez mais qualidade e especificidade. Nos Estados Unidos, a taxa de mortes causadas por câncer caiu 27% nos últimos 25 anos, a despeito do aumento no número de diagnósticos.
Patentes diversas
No início da crise nacional em torno da “fosfo”, o professor de São Carlos afirmava que queria entregar a fórmula, gratuitamente, ao SUS. Em seguida, anunciou-se que a Fundação para o Remédio Popular (Furp), de São Paulo, produziria o composto, seguindo o método de Chierice. Depois, firmou-se contrato com o laboratório PDT Pharma, da cidade de Cravinhos (SP), de propriedade de um ex-aluno de Chierice, a fim de fornecer o composto tanto para as pesquisas oficiais como para as pessoas que foram à Justiça exigir o produto.
Atualmente, o responsável por executar a fórmula de São Carlos é o laboratório goiano, que produz “fosfo” sob supervisão do químico Salvador Claro Neto, braço direito de Chierice.
Com o passar do tempo, o grupo original, formado ao redor de Chierice, dividiu-se: o clínico geral Renato Meneguelo e o biotecnólogo Marcos Vinicius de Almeida registraram uma patente de “fosfo” nos Estados Unidos, contrataram uma empresa de Miami para produzir a substância, enviá-la para o Uruguai e, de lá, vendem-na pelos Correios para brasileiros.
Uma análise do produto de Miami, feita pela Unicamp, a pedido do jornal Zero Hora, não mostrou sequer traço da molécula fosfoetanolamina na cápsula. O negócio, porém, vai muito bem. Mesmo enfrentando concorrência: há inúmeros suplementos alimentares de fosfoetanolamina, vendidos em sites de diversas empresas, das mais variadas procedências.
Só no escritório de patentes dos Estados Unidos, existem mais de 140 patentes referentes à molécula, seja de processos de produção, de usos industriais ou como componente de suplementos alimentares. Fosfoetanolamina é uma molécula comum do corpo humano, e métodos para produzi-la industrialmente existem desde 1940.
“Não funciona”
Quem analisou a “fosfo” de Meneguelo e Almeida, vendida a partir do Uruguai, e testou o processo descrito por Chierice para produção da “fosfo” de São Carlos foi o professor de Química da Unicamp Luiz Carlos Dias.
“O problema do método de síntese do Chierice é que ele simplesmente não funciona. Como eu já disse no relatório para o MCT,eles não sabem o que estão fazendo. Não produzem ‘fosfo’, apenas degradam a ‘fosfo’ em seus componentes originais,” dispara o químico.
“Eles fazem um tratamento na ‘fosfo’ com carbonato de cálcio, magnésio e zinco para produzir ‘fosfo’ de cálcio, zinco e magnésio, mas acabam degradando o composto, submetendo-o a altas temperaturas. E, como têm certeza absoluta que estão produzindo substância pura, nem passa pela cabeça deles purificar o produto,” explica.
O pesquisador de Campinas confirma que tem interesse em avaliar a pureza do composto produzido em Goiás. “Vai que aprenderam alguma coisa e passaram a purificar o composto, né?”
Para os que acreditam no poder antitumoral da pílula – e isto é, sim, um artigo de fé –, a legitimidade do composto não depende de método de síntese, de teor de pureza ou de qualquer outra característica cientificamente verificável. Depende apenas da chancela – ou bênção – do químico de São Carlos.
Nas páginas fechadas de redes sociais em que se manifestam parentes de pacientes que apelaram para a “fosfo” (as postagens nunca são de pacientes, sempre de parentes), as mortes de doentes são sistematicamente atribuídas ao uso de “falsa ‘fosfo’” ou ao início tardio do “tratamento”.
Etapa final
É possível que, burocrática e oficialmente, a história da pílula do câncer da USP tenho um ponto final com a pesquisa de Odorico de Moraes e sua equipe.
Em tempos de vacas magérrimas em termos de recursos governamentais para ciência, não faz sentido investir num composto sem plausibilidade bioquímica e que já se mostrou ineficaz em testes com humanos, embora o atual presidente da República, enquanto deputado federal, tenha defendido a liberação da molécula, sem testes, e endossado legislação nesse sentido.
Na prática, porém, a “fosfo” entrou para a sempre crescente lista das falsas “curas do câncer”, que já contém centenas de supostas terapias, medicamentos e dietas, algumas com mais de cem anos, que teimam em voltar à moda, repaginadas ou não, agora se alastrando metastaticamente, graças às redes sociais.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros.