Em “Deuses Fantasmas e Outros Mitos”, o autor nos recorda de que uma simples chuva já foi motivo para sacrifícios de animais e de seres humanos. Caso esses rituais não fossem realizados, povos inteiros acreditavam, a população iria sofrer com uma seca que duraria dias ou até anos, fome e sede. Eram os castigos dos deuses. Com essa introdução, somos levados a refletir sobre a origem de nossas crenças até a necessidade (ou não) de um ser sobrenatural existir para que a moral se estabeleça em nossa sociedade.
Nos dias de hoje, rituais de espírito semelhante, acompanham, por exemplo, partidas de futebol. Vestir sempre a mesma calça, ou carregar o amuleto da sorte para que o time saia de campo vencedor. Quando o resultado não vem, a explicação mais aceita é a falha na execução do ritual. “Eu não estava no meu lugar de sempre no sofá” ou “Minha cueca da sorte foi lavada bem no dia do jogo”. Esses exemplos parecem bobos, mas qual a diferença entre o ritual da sorte, a homeopatia, o curandeirismo ou outras técnicas da medicina alternativa? O objetivo do autor, Gabriel Filipe, é questionar como surgem e o motivo da persistência dessas crenças e rituais.
Filipe é filósofo, com especialização em ciência política e fundador da Revista Ateísta, a primeira publicação para ateus e agnósticos do Brasil. O livro levantou fundos através de financiamento coletivo pela plataforma Catarse e foi publicado pela editora Pense. O Catarse também é a plataforma utilizada para financiar a publicação da Ateísta.
Em alguns momentos, o autor traz relatos da sua experiência pessoal em questionar e enfrentar dilemas sobre suas convicções religiosas. O autor recorre ao clássico Mito da Caverna, apresentado no diálogo A República, de Platão, para oferecer uma explicação da origem de nossas crenças, e as dificuldades em abandoná-las.
O paralelo atual do mito, trazido pelo autor, propõe que, hoje, as cavernas estão um pouco mais sofisticadas, são erguidas à base de fibra óptica e diversos moradores da cavernas na verdades são “bots” (robôs criados pela inteligência artificial), que concordam com tudo que esbravejamos em textões nas redes sociais.
Nas cavernas em formato de bolha, convivemos com centenas (ou até milhares) de seres que pensam exatamente como nós. Recebemos likes de robôs e humanos, o que na prática não tem diferença nenhuma no mundo dos números de seguidores e compartilhadores. Na segunda parte da alegoria atualizada, algumas pessoas se atrevem a sair da própria bolha e visitar a bolha vizinha. Esses corajosos logo sentem os olhos arderem. Seja pela luz intensa ou talvez pela escuridão intensa.
Televisão e diluição
A cada capítulo o autor passa pelos mitos mais frequentes que encontramos no Brasil. Ele nos lembra da Operação Bola de Cristal – quadro no programa Fantástico da TV Globo, apresentado em 2006 – que mostrou como charlatões que se diziam videntes conseguiam enganar as pessoas. O ator que participou do quadro conquistava a confiança das pessoas usando observação e de um fenômeno psicológico básico, a tendência que temos de interpretar afirmações genéricas como sendo específicas e dirigidas a nós.
Em um paralelo apresentado pelo autor, a astrologia se aproveita desse mesmo fenômeno para arrebanhar seguidores até hoje. “Você é extrovertido e sociável, mas há momentos em que você é introvertido e reservado”. Você e as outras sete bilhões de pessoas que vivem em nosso planeta poderiam se encaixar nessa descrição, mas há quem fique espantado com tamanha “precisão”.
Ao abordar a homeopatia, o autor continua nos conduzindo muito bem com sua narrativa clara e exemplos excelentes. Porém, cometeu um pequeno deslize em dizer que é impossível fabricar soluções homeopáticas como a 30C (que envolve uma parte de soluto em 10^60 partes de solvente).
Como o autor argumenta, de fato precisaríamos de um volume de água maior do que o planeta Terra para preparar essa solução – mas só se quiséssemos prepará-la de uma vez só. O que os homeopatas, na verdade, fazem para chegar a essas ultradiluições é um processo chamado de diluição seriada. A partir do extrato original, diluímos uma parte em 10 de água (1:10). Caso a solução homeopática tenha um “C” depois do número, como em 100C, o mesmo processo é feito mas em 100 partes de água (1:100).
Então para preparar uma solução 15X, por exemplo, precisamos repetir a diluição 1:10, 15 vezes. Pegamos 1 ml do extrato original e diluímos em 9 ml de água. A partir dessa primeira diluição, repetimos o processo, ou seja, 1 ml do primeiro extrato diluído em outros 9 ml de água. Notem que agora essa nova diluição já é 100 vezes mais diluída do que a primeira – 10 vezes da primeira diluição multiplicado por 10 vezes da segunda diluição. No final do processo 15X teremos uma solução diluída a 10^15, isso é o número 1 seguido de 15 zeros.
O texto de Stephen Barrett que o autor cita não menciona que é impossível fabricar tais soluções. Barrett diz que, para fins práticos, seria como diluir um composto qualquer em no volume de água igual ao que encontramos no planeta todo. E mesmo assim não encontraríamos uma molécula sequer do extrato inicial.
Isso nem é tanto assim. A diluição padrão de uma das soluções homeopáticas mais vendidas no mundo é de 200C. Como foi dito anteriormente, “C” significa que o extrato é diluído 1:100 e agitado. Esse processo é repetido duas centenas de vezes. Isso resultaria em uma diluição de uma molécula de extrato para cada 10^400 moléculas de água. Nem na revista digital temos espaço para escrever esse tanto de zeros. Como o número de átomos no Universo é estimado em 10^80, a chance de encontrar uma única partícula vinda do extrato original em um frasco qualquer do produto final é zero.
Fosfo e moral
Continuando com exemplos bem próximos dos brasileiros, o autor lembra do caso da fosfoetanolamina. Nesse episódio, além do Executivo gastar dinheiro público para (voltar a) provar que a substância não era eficaz no tratamento do câncer, o Judiciário deixou intocados todos os envolvidos. Um dos promotores da “pílula do câncer” registrou a substância como suplemento alimentar e hoje ganha dinheiro vendendo o produto online. Esse é apenas mais um dos perigos das decisões políticas que não são baseadas em evidências científicas.
O capítulo final começa com uma pergunta que deixará os leitores se sentindo como o próprio autor se sentiu, quando começou a se questionar sobre suas convicções religiosas. “A moralidade depende de um ser sobrenatural?”. Confesso que esperava mais da parte biológica dessa questão, quando as ideias de Darwin e Dawkins foram evocadas. Certamente, por culpa do meu viés de formação acadêmica. Mas isso não tira o mérito do melhor capítulo do livro.
A definição de moral adota por Gabriel Filipe é a de que “a moral é um conjunto de normas que visa proporcionar a um coletivo de animais humanos, com consciência de si e dos outros, uma condição social amistosa para o surgimento e afloramento da vida em sociedade”
Esse conjunto de normas é estabelecida pelo Estado. Um ser incorpóreo que detém o monopólio da violência, e que portanto manipula o medo, e pode nos levar ao inferno na Terra com um julgamento em vida, caso você seja pego cometendo um delito e acabe na cadeia. Assim, nas palavras do autor, “o homem cria deuses à sua imagem e semelhança, com o objetivo de santificar seu sadismo e promover o seu ideal de mundo”.
Ótimo livro para pessoas que questionam as lacunas do nosso conhecimento e não se contentam com explicações fantasiosas ou mitológicas. Sem ser agressivo com as palavras o autor mostra importância do ceticismo que pode, e deve, ser utilizado não apenas por cientistas. “Em face de poucas evidências a melhor posição a ser tomada é a da dúvida”.
O livro pode ser adquirido pelo site brasileiro da Amazon.
Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no estado de São Paulo