A água é um recurso natural bastante precioso: mesmo ignorando a necessidade hídrica para fazer funcionar as hidrelétricas, ainda dependemos dela para muitas tarefas cotidianas, como beber, cozinhar, plantar, limpar e tomar banho. Bom seria se todos tivessem acesso a um sistema regular de canalização de água e esgoto, mas não é o caso. E o que você acha de construir seu próprio poço, dispondo de uma fonte de água limpa bem aí no seu quintal?
A ideia pode soar estranha para quem reside nos centros urbanos, mas pode ser tentadora para quem vive no campo: áreas geralmente maiores, sítios e fazendas, além de eventuais dificuldades no abastecimento hídrico através da rede de distribuição, podem tornar atraente a busca por água subterrânea disponível no local. Uma vez tomada a decisão de construir um poço, a pergunta que se segue é óbvia: onde cavar?
Cientificamente, é possível utilizar uma multiplicidade de técnicas para responder à pergunta: imagens de satélite, levantamento hidrogeológico, medidas e identificação do tipo de solo e de rochas da região. A análise conjunta dos dados fornece indicativos dos locais com boas chances de uma perfuração bem sucedida.
Mas nem todo mundo pensa em ciência na hora de resolver os problemas no dia a dia, infelizmente: basta surgir o assunto de poços artesianos na roda de conversa que logo haverá alguém para relatar uma perfuração de sucesso após a utilização de radiestesia, ou rabdomancia: o uso de instrumentos como forquilhas ou pêndulos, nas mãos de supostos “sensitivos”, para localizar água. Ao mesmo tempo em que a prática é rica em crédulos, ela é pobre – miserável, eu diria – em evidências científicas confiáveis que a corroborem.
Radiestesia
Para a minha surpresa (e, talvez, para a sua também) existe desde 1998 a Associação Brasileira de Radiestesia e Radiônica (ABRAD). Neste vídeo, o presidente da entidade afirma que a radiestesia é uma técnica que permite que pessoas treinadas utilizem instrumentos – como pêndulos, forquilhas de galhos de árvore em formato de “Y” e arames ou hastes metálicas em formato de “L” – para obter informações acerca do ambiente ao seu redor.
Quais informações? Bem, existem aplicações radiestésicas para todos os gostos. Em medicina alternativa, por exemplo, alega-se que a manipulação do pêndulo é capaz de perceber problemas em diferentes sistemas, como órgãos e glândulas; em geologia, radiestesistas podem ser chamados para investigações subterrâneas em busca de água ou minerais específicos; há quem use a técnica até mesmo para “harmonizar ambientes” (residenciais ou empresariais) e localizar artefatos arqueológicos em áreas de interesse histórico.
O mecanismo supostamente capaz de explicar o funcionamento da técnica, porém, é vago, predominando o uso frequente do termo “energia”: as alegações giram em torno do fato de que radiestesistas – por meio da forma como ocorre o movimento do pêndulo, da haste ou da forquilha – podem perceber “desequilíbrios energéticos” nas pessoas e nos ambientes, ou captar “sinais” emitidos pela água ou metais enterrados para poder indicar o local certo para encontrá-los. Como físico, não posso deixar de registrar que até a boa e velha física quântica é invocada como pano de fundo explicativo para o funcionamento da prática.
Seria possível encerrar este artigo por aqui mesmo, afinal essas afirmações de cunho energético são recorrentes no contexto das pseudociências: “energia” é uma palavra que tem sido amplamente utilizada de forma cientificamente inadequada, uma vez que nem se explica exatamente de que tipo de energia se está falando, nem mesmo se apresentam formas de medir ou quantificar essas energias. Em ciência séria, energia é algo que pode ser detectado, quantificado e medido de forma objetiva – seja, por exemplo, em quilowatts-hora, no caso de instalações elétricas, ou calorias, quando se fala de alimentos – sem depender da sensibilidade ou sensitividade pessoal de quem quer que seja. Além disso, apelar para a física quântica é só uma maneira de levar a argumentação para um cenário de aparência científica que não passa de fachada para um discurso vago e vazio.
Mas, caso você considere os cientistas “cabeças fechadas” por desprezar argumentações baseadas em “energias misteriosas”, vamos lhe fornecer o benefício da dúvida: se assumimos como verdade que a água – ou metais, ou a sua casa – emana energias passíveis de percepção por meio do instrumento do radiestesista, então podemos submeter essa afirmação a testes científicos. E, veja só, os mesmos cientistas frequentemente acusados de “cabeças fechadas” já se debruçaram sobre experimentos desse tipo. Os dois descritos abaixo foram registrados pelo mágico James Randi (1928-2020).
Experimento 1
No primeiro experimento que vou explorar, sete caixas são distribuídas no ambiente e apenas uma delas esconde um pedaço de minério de zinco. A função do radiestesista é usar sua haste metálica para investigar o entorno e desvendar qual é a caixa correta. Resultado: durante a primeira passagem do instrumento nas proximidades das caixas, uma por uma, nota-se que não há qualquer indicação positiva ao redor da correta. É somente após duas tentativas fracassadas que o nosso candidato indica o alvo onde realmente está o zinco.
Mas e se o radiestesista tivesse acertado logo na primeira tentativa? Será que isso seria evidência científica confiável para ratificar a técnica? Antes de decidir, lembre-se de que, nesse caso, ele teve cerca de 14% de chance de acertar a caixa no primeiro palpite, considerando-se, claro, uma escolha ao acaso – que é o que esperamos que realmente ocorra, caso a radiestesia seja ineficaz.
Tentativas seguidas, mantida a hipótese de puro acaso, são como novos sorteios. Se as caixas forem misturadas após cada chute, toda nova tentativa volta a ter 14% de chance de acerto: é como rolar um dado hipotético de sete faces toda vez. Por outro lado, como foi realmente feito neste experimento, se elas continuarem exatamente como estavam – o que permite que o radiestesista evite apontar para uma mesma caixa vazia seguidas vezes –, as chances aumentam a cada novo palpite, chegando, claro, a 100% na sétima e última oportunidade.
Perceba que mesmo um acerto “de primeira” poderia ser resultado de um golpe de sorte. É por isso que para construirmos boas evidências científicas torna-se necessário avaliar a consistência dos acertos, a partir de experimentos que envolvem rotinas com repetições: diferentes radiestesistas realizando diversas tentativas. Ao final, contabilizam-se as indicações bem-sucedidas e são feitas as contas para saber se os candidatos conseguiram um resultado suficientemente acima do esperado por pura sorte.
Experimento 2
Assim, chegamos ao nosso segundo experimento. Agora, um sistema hidráulico de 10 encanamentos foi montado e enterrado no solo. Um controle externo era responsável por fazer com que somente houvesse fluxo de água em um dos tubos por vez, mantendo os demais vazios. Diversos radiestesistas se empenharam na missão de caminhar por sobre o sistema e indicar em qual encanamento havia água corrente. Adicionalmente, pediu-se que encontrassem, em testes separados, uma barra de ouro e uma peça de latão escondidos em uma entre 10 caixas.
Vale salientar que os radiestesistas que se submeteram a esse teste, realizado na Austrália, não eram iniciantes: todos contavam com vasta “experiência de sucesso” na tarefa de aplicar a técnica para localizar água e minérios enterrados, e, por isso, chegaram a afirmar previamente que esperavam uma taxa de acerto de 100%, ou pelo menos próximo a isso. Resultado: considerando-se apenas o teste com o sistema hidráulico, ocorreram 50 tentativas e apenas 11 acertos, levando a uma taxa de sucesso de 22%; no entanto, quando foram consideradas todas as tentativas dos três testes (água, latão e ouro) houve somente 15 acertos em 111 palpites. Agora, apenas 12% de taxa de sucesso.
Ainda que esses resultados estejam um pouco acima do esperado por pura sorte (que é 10% de acertos), perceba como eles estão distantes do que foi anunciado pelos próprios radiestesistas. Além disso, vale comentar que quando afirmamos esperar “10% de acerto com escolhas ao acaso”, isso não significa, é claro, que sempre que houver palpites aleatórios a taxa de sucesso será de exatamente 10%, pois, no mundo real, a taxa de acertos obtida pode variar com o número de tentativas executadas. Por isso, é comum encontrar resultados com variações sobre o valor esperado, seja para mais ou para menos. Em espaços amostrais maiores (com maior número de tentativas), a taxa de resultados positivos resultantes do acaso tende a ficar mais próxima do valor esperado – e foi exatamente isso que aconteceu aqui.
Para ilustrar o raciocínio em outro contexto, pense na Mega Sena: espera-se que a probabilidade de levar o prêmio com uma única aposta de 6 números é cerca de 0,000002%. Porém, se apenas uma pessoa participar do concurso e ganhar, a análise desse caso isolado (com espaço amostral pequeno, portanto) pode levá-la a concluir que sua taxa de sucesso é de 100% – afinal, fez uma única aposta e foi bem-sucedida. Porém, considerando situações mais reais, que levam em conta um número bastante elevado de concorrentes e de apostas participantes, as taxas de sucesso calculadas ficam bem mais próximas do valor ínfimo que é esperado.
Há outros experimentos feitos com radiestesistas, mas, por economia de espaço e de tempo, basta dizer que eles, quando bem conduzidos, acabam simplesmente reafirmando os mesmos resultados essenciais aqui apresentados.
Inconsciente
O desempenho negativo da radiestesia em testes científicos surpreende muita gente, pois tanto o radiestesista como os espectadores ao redor tendem a afirmar que o instrumento se mexe sozinho, sem uma ação deliberada do operador. Será mesmo que são as “energias externas” que movimentam o pêndulo ou a forquilha?
Para responder essa pergunta, deixe-me contar um fato curioso sobre os dois experimentos que exploramos anteriormente. Antes das tentativas às cegas, os radiestesistas foram submetidos a uma rodada prévia de verificação: para isso, no primeiro experimento, a caixa foi colocada sobre o minério de zinco bem na frente do candidato; no segundo, o registro de apenas um encanamento foi declaradamente aberto (ou a peça de latão, ou a barra de ouro, respectivamente, eram guardadas em uma caixa à vista de todos).
Nesse “ensaio” inicial, é importante destacar, todos os candidatos conseguiram demonstrar plenamente que a radiestesia estava “funcionando” muito bem, indicando corretamente o alvo mesmo quando eles manipulavam o instrumento de olhos fechados (no primeiro experimento). É por isso que os participantes que se submeteram aos testes cegos concordaram previamente que a metodologia utilizada era justa e suficiente para verificar a eficácia radiestésica. Essa informação é importante porque evita reclamações a posteriori, quando os sujeitos testados colocam defeitos imaginários no processo apenas para tentar justificar o próprio fracasso.
Juntando este fato com os resultados antes discutidos, percebemos que os radiestesistas acertam o alvo de maneira eficaz apenas quando já sabem onde ele está; quando estão às cegas, suas chances de acerto são as mesmas que chutes ao acaso. Isso deixa bastante claro que, ao contrário do que nossa intuição pode indicar, o movimento do instrumento deve ser produzido pelo operador.
Esse processo tem nome: efeito ideomotor. Em outras palavras, a mudança na posição da forquilha, das hastes ou do pêndulo é produzida por pequenos movimentos musculares que o radiestesista executa de forma inconsciente. É por isso que quando ele afirma que “não está fazendo nada” para movimentar o instrumento, provavelmente está falando a verdade (pelo menos “a verdade” em relação ao que faz conscientemente). Como o efeito ideomotor reage às expectativas do indivíduo, isso explica o sucesso da radiestesia para identificar um alvo já conhecido pelo operador.
Aliás, para a sua curiosidade, o mesmo efeito também está por trás de várias práticas supostamente paranormais para fazer contato com o Além, como a “brincadeira do copo”, a “brincadeira do compasso” e a movimentação da ponteira em um tabuleiro ouija (isso tudo, é claro, quando já não há ali mesmo um participante decidido a deliberadamente “produzir mensagens” específicas para assustar ou surpreender os amiguinhos).
Casos de sucesso
Outra forma de resistência intelectual à realidade exposta pelo fracasso da radiestesia em testes científicos é, claro, citar os inúmeros casos conhecidos de sucesso, quando o radiestesista acerta o local onde a água está. Porém, é bom lembrar que registros de fracassos também existem, como esta empresa especializada em poços artesianos relata: recorrer à radiestesia é uma das causas frequentes que levam a perfurações malsucedidas. É por isso que testemunhos de experiência pessoal não são suficientes para validar a prática: quando a adivinhação acerta, todo mundo fica sabendo; quando erra, nem o radiestesista, e muitas vezes nem o cliente (que pode se sentir envergonhado) saem falando por aí.
Mesmo assim, podemos elencar alguns fatos que ajudam a esclarecer as razões pelas quais uma perfuração guiada por radiestesia pode chegar a um desfecho positivo. O primeiro é que a experiência acumulada do radiestesista em busca de água, seja avaliando sucessos e fracassos passados, ou seja pelas dicas recebidas de outros que já praticam a técnica há mais tempo, pode levá-lo – ainda que de forma intuitiva – a se guiar por pistas fornecidas pela vegetação, pelo estado do solo, pelo relevo e por fontes de água próximas e conhecidas na hora de “decidir”, inconscientemente, movimentar o instrumento de forma a determinar o local a ser perfurado.
O segundo é que as chances de encontrar água subterrânea são elevadas em muitas regiões. No Brasil, por exemplo, um dos aquíferos de destaque é o Guarani, que abrange as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, além de países vizinhos. Nesse sentido, é curioso notar que há tanta água no subsolo de alguns locais que apenas no estado de São Paulo mais de 7 milhões de pessoas têm seu abastecimento hídrico através de fontes desse tipo. O fato é que a existência de boas quantidades de água subterrânea não se resume apenas ao Brasil, mas à maioria dos locais do planeta, inclusive abaixo do leito oceânico. Assim, podemos concluir que uma atuação bem sucedida de um radiestesista pode levá-lo, incorretamente, a crer que indicou o único local capaz de servir para instalação de uma fonte de água, pois, na verdade, mesmo perfurações a esmo poderiam acabar resultando em poços igualmente produtivos.
Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)