Por que a vacina de gripe muda todo ano?

Questionador questionado
9 mar 2020
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Vírus influenza
Vírus influenza. A hemaglutinina e a neuraminidase aparecem marcadas em claro e escuro

 

Muitas vacinas, como BCG, poliomielite e hepatite B, devem ser administradas logo nos primeiros anos de vida. Ao longo da infância, recebemos, ou deveríamos receber, doses extras e de reforço, para garantir que o sistema imune esteja preparado para enfrentar os agentes que causam essas doenças. Mais tarde, recebemos algumas outras vacinas, como a de HPV, febre amarela, tétano e sarampo. 

Somos informados que, após a vacinação, já estamos imunizados contra essas doenças, e o sucesso desse procedimento é evidente. Não convivemos mais com a poliomielite, por exemplo, doença que causa paralisia muscular e pode levar à morte ou com a varíola. Mas, e a vacina da gripe? Por que é que adultos, principalmente idosos, precisam tomá-la todos os anos? O que a vacina tem de diferente, que não consegue nos imunizar para a vida toda, como a maioria das demais?

Bem, não há nada de errado com as vacinas de gripe, mas os vírus que causam essa doença são uma ameaça contínua. Pergunte para qualquer virologista qual vírus é o mais temido pela humanidade e certamente ele ou ela responderá: o influenza vírus, que causa a gripe! 

 

O genoma do influenza

Graças ao surto atual do SARS-COV-2, mais conhecido como o novo coronavírus, alguns jargões científicos popularizaram-me. Mesmo assim, vamos sempre explicá-los aqui. “Genoma” é o conjunto completo de informação genética onde está contida toda (ou quase toda) a informação necessária para o funcionamento de organismos e células. Essas informações são como a planta de uma casa, com instruções para montar desde as paredes até o sistema de saída de esgoto.

Na maioria dos seres vivos, essas informações estão codificadas nas moléculas de DNA, que vêm na forma de uma escada espiral, compondo a chamada “fita dupla”. Os vírus são um pouco mais complicados: alguns têm genoma de DNA, outros usam um tipo diferente de molécula, o RNA. O papilomavírus humano (HPV), por exemplo, é um vírus de DNA. Já vírus como o da dengue, coronavírus e influenza têm o genoma composto de RNA. O número de fitas – uma ou duas – também varia, de vírus para vírus. A orientação da fita também pode variar, e ela ainda pode vir segmentada, em vários fragmentos.

 

Fitas de DNA

 

Assim como em outros organismos e células, o genoma dos vírus contém a informação para produzir as estruturas que o compõem. Na parte externa dos vírus, existem estruturas formadas de proteína que são extremamente importantes para que eles consigam se prender e penetrar em outras células. Imagine como se fosse um daqueles “fluffies” de borracha cheio de pontinhas, como o da imagem abaixo. 

 

Fluffy

A instrução para a forma, composição, tamanho e atividade dessas pontinhas estão todas codificadas no genoma do vírus, portanto, dependendo do genoma, as pontinhas podem variar.

Pois bem, algumas delas são utilizadas para que o vírus consiga detectar a presença de uma possível célula hospedeira. Esse primeiro encaixe é muito específico, e por isso alguns vírus só conseguem infectar um tipo de célula. É por isso, também, que não somos infectados, por exemplo, por vírus que atacam plantas. A superfície de uma célula de planta é muito diferente da superfície de uma célula humana, e cada vírus tem uma afinidade maior por um tipo de célula. 

Assim que o vírus entra na célula, a informação contida no genoma dele “hackeia” a célula hospedeira, como um vírus de computador, mesmo. A hospedeira está apenas fazendo seu trabalho normal, que inclui, dentre outras coisas, replicar o próprio genoma. Advinha que parte do sistema da célula o vírus “hackeia”? Sim! O de replicar genoma! Vírus dependem de células. Eles são incapazes de, por conta própria, produzir novos vírus, por isso precisam sequestrar todo o maquinário de replicação que as células têm. 

Eclipse viral

 

Vírus são entidades estranhas. Após invadir uma célula, eles se desmontam por completo, e depois se reconstroem. Atente para o fato de que o indivíduo “vírus” original, que entrou na célula, deixa de existir por completo! Apenas a informação para produzir outros vírus persiste! Por isso, biólogos se digladiam para definir se vírus deve ser considerado um ser vivo, ou não. E não é para menos, o danado some! Desaparece! Capuf! E depois volta a ser vírus! Eles praticamente atingiram o estado de nirvana. Desapego material total.

Para se reconstruir, os vírus executam um balé dentro da célula. Tudo em plena sincronia: o material genético é replicado, uma nova “casa” é construída e, incrivelmente, o genoma é empacotado dentro da casa nova. Centenas e até milhares de novas partículas virais são produzidas dentro da célula infectada, que agora já está com os dias contados e é uma verdadeira bomba relógio, cheia de novas cópias do vírus. Alguns vírus destroem a célula de dentro para fora. Outros saem da célula infectada e procuram a vizinha para reiniciar o ciclo de sequestro, eclipse e replicação. 

 

Quebra-cabeça

Agora, podemos montar um cenário bem legal do funcionamento de um vírus com que estamos bem familiarizados. Abaixo temos o esquema de como é a organização do genoma do vírus influenza, causador da gripe. 

 

Genoma da gripe

Reparem que o genoma de RNA é segmentado em oito partes: três são longas, outras três têm um tamanho intermediário e as duas restantes são as menores. 

Muito bem, o ciclo é semelhante ao que descreveremos acima. Imaginando um cenário onde apenas um vírus infecta uma célula, não temos muitas dúvidas que ele consegue empacotar os fragmentos certos e montar uma nova casa (estamos tratando isso como uma mera casualidade, mas o processo todo é fantástico – embora talvez não do ponto de vista de quem contraiu o vírus, claro). Agora, vamos imaginar outro cenário.

Existem um grupo de vírus da gripe que causa doenças em aves, e um outro grupo de vírus da gripe que causa doenças em humanos. Não somos infectados pelo vírus da gripe de aves, pois a superfície das nossas células é diferente da das células de um pato, por exemplo. As pontas dos “fluffies” dos vírus de aves encaixam nas células das aves. Já as pontas dos “fluffies” dos vírus que infectam humanos se encaixam perfeitamente na superfície de células de humanos. A evolução é a responsável por isso.

Legal, patos e humanos infectados, OK. Agora, vamos colocar mais um animal na jogada. Porcos! E por que porcos? Bom, a superfície de algumas células da garganta dos porcos é compatível tanto com vírus humanos quanto com vírus de aves. Vê onde vamos chegar? E se você está se perguntando como é possível que um pato, um humano e um porco se encontrem, você precisa sair mais de casa e conhecer de onde vêm os alimentos. Sério, vá dar uma volta.

Continuando nossa história. Imagine que os vírus de aves e os de humanos tenham contaminado porcos seguidas vezes. O que teremos é o seguinte:

shift viral

 

“Ah, mas o vírus é inteligente, ele vai saber qual fragmento do genoma empacotar para evitar confusão”. Não existe design inteligente. Existem o acaso, mutações, evolução e o caos em forma de vírus. Essa interação entre vírus de origens diversas possibilita o surgimento de todo o tipo de combinação possível, pois assim que o vírus se desmonta dentro da célula hospedeira, a geração seguinte de partículas virais pode empacotar de volta pedaços de material genético ao acaso, inclusive aqueles provindos de vírus que infectam outras espécies.

“Mas então essa recombinação pode acontecer e a gente criar um vírus meio de pato, meio de humano, dentro do porco?” SIM! “E o vírus meio-pato-meio-humano pode sair do porco e voltar para o ser humano?” SIM! E é tão verdade que foi assim que a pandemia de H1N1 de 2009 aconteceu. Estima-se que de 43 milhões a 89 milhões de pessoas contraíram o H1N1 entre abril de 2009 e abril de 2010, com de 8.870 a 18.300 mortes relacionadas.

 

Hemaglutinina e Neuraminidase (H e N)

Sempre ouvimos essas siglas quando as manchetes dos jornais anunciam: “O H1N1 infectou milhares de pessoas no mundo todo”. A hemaglutinina (H) e a neuraminidase (N) são duas das proteínas encontradas na superfície do vírus da gripe. Os números (H1N1, H2N3, etc.) representam diferentes versões dessas moléculas: H1 é um pouco diferente de H2, e assim por diante. A hemaglutinina é a responsável pela ligação íntima com as células do hospedeiro, e a neuraminidase é superimportante na hora de o vírus deixar a célula. 

A neuraminidase é como uma tesoura, que corta a conexão da hemaglutinina com a superfície da célula hospedeira. O Tamiflu, remédio antiviral usado contra gripes mais sérias, funciona bloqueando essa ação: o vírus fica preso na célula infectada, não consegue sair para atacar células vizinhas e o sistema imune aplica o golpe de misericórdia. A título de curiosidade, o Tamiflu não funciona contra o coronavírus, porque ele, até onde sabemos, não produz neuraminidase. Mesmo assim, cientistas testaram diversos inibidores da neuraminidase quando houve o surto de SARS em 2002, e de MERS em 2012. Como era de se esperar, o medicamento não apresentou eficácia contra nenhum desses vírus. 

Mutação

Muito bem! Se você chegou até aqui, saiba que ainda tem mais! Se o Aedes aegypti é o cavaleiro do apocalipse, o vírus da gripe é o próprio senhor do juízo final. Porque além desse quebra-cabeça todo (que tem o nome pomposo de “shift”) o genoma do influenza vírus também é altamente mutável. Isso ocorre por erros na hora de replicar o genoma. A maioria dos seres vivos, e alguns vírus, tem um sistema de detecção e reparo de erros que “censura” os eventuais equívocos que ocorrem no momento em que o genoma faz cópias de si mesmo. Como se fosse a ferramenta de verificação ortográfica do seu processador de textos favorito. Mas é claro que o vírus da gripe deixou isso de lado. 

A informação do genoma afeta toda a construção da estrutura do vírus, o que inclui a hemaglutinina e a neuraminidase. Essas moléculas são os alvos que as células do sistema imune usam para reconhecer o vírus e atacá-lo. À medida que o vírus replica seu genoma, cometendo erros – as chamadas mutações –, a cada ano nos deparamos com modelos de influenza que têm pequenas modificações nessas estruturas. Consequentemente, a proteção obtida em um ano não garante proteção no próximo, e é por isso que as vacinas anuais contra a gripe são necessárias.

Mais de 140 centros nacionais de influenza realizam vigilância durante todo o ano para saber as tendências e tipos do vírus influenza corrente. Essas informações são transmitidas para várias agências que trabalham em conjunto com a Organização Mundial da Saúde, incluindo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, o Instituto Nacional de Pesquisa Médica no Reino Unido e o Instituto Nacional de Controle e Prevenção de Doenças Virais na China, e também no Brasil. A Organização Mundial da Saúde faz recomendações gerais sobre quais cepas – “modelos”, por assim dizer – do vírus influenza devem ser incluídas na vacina, mas cabe a cada país tomar sua própria decisão. 

No Brasil, cabe à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidir quais vacinas poderão ser aplicadas a cada ano e, como era de se esperar, a composição deste ano já mudou em relação ao do ano passado. 

A vacina pode ser tri ou tetravalente, protegendo contra as três ou quatro versões do vírus que mais circularam no hemisfério norte durante o inverno. Uma das instituições que produzem a vacina da gripe no país é o Instituto Butantan, uma instituição pública estadual, ligada à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

O tempo é crítico, pois a decisão final para a composição da vacina deve ser tomada o quanto antes, para haver tempo suficiente para a produção. Qualquer atraso ou erro no processo pode gerar consequências trágicas. Devido ao surgimento de casos confirmados de infecções por coronavírus no Brasil, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou a antecipação da campanha de vacinação da gripe, marcada para ter início no próximo dia 23 de março. 

Por isso a importância da vacinação anual contra gripe! Caso você tome a vacina e, no dia seguinte, fique com gripe, provavelmente já estava infectado, ou o vírus que chegou até você era um diferente do que a vacina usa.

shift – quando vírus que atacam outras espécies combinam-se aos de seres humanos e criam uma nova versão capaz de infectar-nos – acontece a intervalos mais ou menos longos (ainda bem), de cerca de 50 anos. Mas com o aumento da densidade populacional e da interação entre diversos seres vivos em um mesmo ambiente, esse intervalo certamente deve diminuir. Como evitamos mais mortes? Com mais pesquisa, inclusive tentando prever qual será a próxima mutação que acontecerá no vírus, e monitorando áreas de alta densidade populacional, além de tomar vacina todos os anos.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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