Excluindo a ciência da política industrial

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4 nov 2024
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O recém-criado Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico (FNDIT) altera consideravelmente a dinâmica de uma das maiores fontes de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) do Brasil. Infelizmente, foi desenhado de forma imprópria para a industrialização contemporânea. Primeiro, pode servir para desvincular de PD&I investimentos que, na origem e por determinação legal, deveriam ter esta destinação. Segundo, sua governança não inclui academia ou cientistas, tornando as decisões alienadas dos avanços científicos e tecnológicos. Estes dois fatores comprometem o desenvolvimento industrial, na época da economia do conhecimento, da Indústria 4.0.

Uma boa definição de Indústria 4.0 é dada pela OCDE: novas tecnologias digitais, de comunicação, a internet das coisas (IOT), inteligência artificial, manufatura aditiva (impressão 3D), navegação em nuvem, novas tecnologias em ciência de materiais (nano materiais, por exemplo) e avanços na bioengenharia promoveram um novo modelo de produção em que o ganho de eficiência e novos usos tecnológicos é capaz de gerar novos bens e serviços.

O quadro de referência mais utilizado para analisar a governança desta nova indústria é o da Tríplice Hélice. Ele destaca três atores: governo, indústria e universidades. As universidades seriam responsáveis pela produção do conhecimento. A indústria gera riqueza por meio de produção de bens comerciais. Já o governo é responsável tanto pelo aspecto regulatório, quanto de financiamento da pesquisa.

Por este modelo, inicialmente, relações duais destes atores vão se tornando mais complexas. Com o aprendizado mútuo, os agentes ganham características dos outros atores, dando início à hibridação das instituições. Há também o surgimento de entidades intermediárias, tais como “universidades empreendedoras”. Chega um momento de maturidade em que há cogovernança do processo de geração de riqueza na economia do conhecimento. Não mais uma governança tripartite, mas arquitetada em conjunto e levando em consideração os diferentes interesses envolvidos.

No Brasil, este modelo tem sido defendido há alguns anos e influenciou a legislação PD&I. No entanto, apesar dos avanços, há certas limitações que impedem o fenômeno da hibridação.

Neste cenário de Tríplice Hélice ainda incipiente, o investimento em PD&I é um excelente indicativo da dinâmica Estado-indústria-academia na industrialização tardia brasileira. Uma das formas de investir é particularmente interessante.

Trata-se do investimento em PD&I decorrente da delegação ou outorga de serviços públicos por agências reguladoras. Esta forma de investimento consiste basicamente na obrigatoriedade de empresas delegatárias ou outorgadas investirem uma porcentagem de seu faturamento diretamente em projetos de PD&I.

Em linhas gerais, as empresas escolhem projetos junto a institutos de ciência e tecnologia (ICTs) previamente habilitados pelas agências reguladoras – e, assim, cumprem esta obrigação. No âmbito de cada agência, há diversas regulamentações e procedimentos próprios, não sendo tarefa simples executar esta obrigação legal.

Em síntese, podemos dizer que a necessidade de se investir em PD&I foi decidida pelo Estado, por meio do Poder Legislativo (por determinação legal). Já a escolha do risco e do projeto se dá de maneira conjunta entre empresas, ICTs (universidades) e governo (agências reguladoras).

Os valores destinados a projetos não são baixos. De acordo com pesquisa no site da Anel, os valores dos últimos cinco meses são bilionários, conforme tabela a seguir:

tabela 1

 

No âmbito do petróleo, a ordem de grandeza é semelhante, conforme gráfico evolutivo dos valores investidos por ano:

 

Gra'fico 1
Gráfico1(obtido em https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYmEzZTM3NTQtNzk1Yy00ZWRiLWE1YmItOGYyMTk1MWJlODJiIiwidCI6IjQ0OTlmNGZmLTI0YTYtNGI0Mi1iN2VmLTEyNGFmY2FkYzkxMyJ9, dia 18 de outubro de 2024)

 

Esta forma de investir sofreu forte alteração com a Lei 14.902.

Com o advento da Lei 14.902, o BNDES foi autorizado a criar o FNDIT, cujo objetivo é captar recursos das políticas industriais e apoiar financeiramente “projetos prioritários de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico” (artigo 29). Esta lei determinou a finalidade e as fontes de recursos do fundo. Dentre as fontes, destaca-se a prevista no artigo 30: a decorrente de obrigações de investimento em projetos de PD&I das empresas outorgadas ou delegatárias de agências reguladoras.

Sobre a governança do fundo, não houve manifestação legislativa. Coube ao Decreto 12.214 desenhar as primeiras linhas dessa governança. O principal órgão de deliberação é o Conselho Diretor, a quem cabe, entre outras obrigações, determinar as diretrizes de investimentos, estabelecendo as áreas prioritárias de apoio financeiro (artigo 3º, III).

O processo decisório deste órgão se dará por votos da maioria absoluta de seus oito membros, sendo: dois do Ministério do Desenvolvimento Industrial, um do Ministério da Ciência e Tecnologia, um do Ministério da Fazenda, um representante da  Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras, um da Central Única dos Trabalhadores, um da Confederação Nacional da Indústria e um da Força Sindical.

O decreto também prevê a possibilidade de o Conselho Diretor trabalhar em conjunto com conselhos gestores de órgãos responsáveis pela política pública associada ao recurso destinado ao fundo (artigo 5º).

Outro aspecto interessante do processo decisório é a destinação dos recursos. Tanto o decreto quanto a lei que tratam do FNDIT não incluem inovação em seu escopo, a despeito de, na menção às fontes de custeio, haver determinação expressa da inovação.

Não há dúvida de que o nascimento do fundo se deu como tentativa de superar as dificuldades encontradas na política de investimento em PD&I das agências reguladoras. Sempre houve muita dificuldade, por parte das empresas, em cumprir estas obrigações, gerando custos burocráticos e insegurança jurídica. O mero depósito de valores simplifica sobremaneira a operação. Contudo, tal como está, o fundo e a política pública que o fundamenta mostram-se problemáticos.

Uma primeira crítica: a possibilidade de o recurso originalmente destinado à PD&I ser utilizado para outras políticas públicas. Não há qualquer obrigação de o fundo vincular esta destinação específica. Há tão somente a definição do escopo, que está associado à industrialização.

Pela definição atual do FNDIT, os recursos podem ser empregados em infraestrutura da indústria, crédito para aumento de produção e outros investimentos associados à indústria, mas não necessariamente a PD&I.

Uma vez que o legislador determinou não só a origem do recurso mas sua destinação, não pode o Executivo, por meio do FNDIT, estabelecer destinação diversa, sob risco de violação legal. O Legislativo já havia decidido a necessidade de se investir em PD&I, não sendo adequado o fundo desconsiderar a decisão.

Uma segunda crítica: o Conselho Diretor traz representantes do governo federal, do empresariado e dos trabalhadores. O poder de decisão se concentra majoritariamente no governo, que detém quatro dos oito votos. Havendo empate, o Presidente do Conselho tem, além do voto ordinário, o voto de desempate. Provavelmente, na regulamentação ainda mais fina (o decreto prevê a edição de regulamento), será escolhido como presidente alguém do próprio governo.

Este modelo segue os mesmos padrões escolhidos para criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, cuja composição é majoritária do governo, com representantes dos empresários, da indústria e dos trabalhadores.

Por esta configuração, é difícil ver uma cogovernança sequer com a própria indústria (empresariado e trabalhadores), sendo um fundo governamental, representante dos interesses do próprio governo. É um modelo de hélice assimétrica e dupla.

Além disso, a ausência da ciência no processo de governança desconfigura o caráter tecnológico da política industrial, tornando o modelo impróprio para a Indústria 4.0. O ganho de eficiência advindo do uso de tecnologias novas é preterido, diminuindo a competitividade da indústria brasileira no cenário.

Ainda se observa o fenômeno contrário à hibridação das “pás” da hélice. O governo repele a coparticipação dos outros atores, não internalizando suas características em sua estrutura. Questões ligadas à tecnologia não podem mais ser delegadas para técnicos para implementação de políticas públicas, mas devem fazer parte da própria escolha destas políticas.

A despeito dos problemas encontrados, acredito ser possível mitigar estas limitações, através da regulamentação mais fina:

1. Deve ser garantido que os valores que originalmente vinculados à PD&I mantenham esta destinação.

2. Os conselheiros devem ser acompanhados por cientistas, que poderão fazer parecer técnico sobre as escolhas tecnológicas do Conselho.

3. O artigo 5º prevê a existência de conselhos gestores de outras pautas. Neste caso, é recomendável o empoderamento de conselhos com participação da comunidade científica.

Estas três medidas não resolvem, mas diminuem o problema.

O modelo de investimento das agências regulatórias não era perfeito, mas desenhava uma cogovernança que garantia o investimento em PD&I. Com o FNDIT, esta garantia se perde, e uma hélice tripla imperfeita dá espaço para uma hélice dupla, e bem assimétrica.

É importante ressaltar a existência de algumas instâncias do Estado brasileiro em que há cogestão com as universidades. Contudo, a política industrial tem se mostrado refratária a este modelo. Os efeitos desta escolha serão vistos em decisões que não necessariamente levarão em conta as premissas e consequências das escolhas tecnológicas, tornando difícil o sucesso desta política pública, em uma época em que conhecimento é o motor e finalidade da economia.

 

Rafael Seco Saravalli é  bacharel e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP,  procurador da USP, fundador e membro do South America Research Security Consortium

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