Não é preciso perder muito tempo argumentando que um belo céu estrelado, especialmente nas cidades do interior, é capaz de nos fazer viajar. A imaginação toma conta enquanto contemplamos o firmamento. É fácil questionar-se sobre nosso papel no mundo, a vida, a existência e o universo. Sendo sincero, essa reflexão e a necessidade de tentar entender a natureza foram motores essenciais que me levaram a cursar física. Hoje, dentro das minhas atividades acadêmicas, dedico uma parte do tempo a fazer divulgação científica, tentando mostrar ao público como a ciência pode ser fascinante.
A maioria das pessoas, quando se questiona (ou questiona os pais, na infância) sobre a origem do universo, tem como primeira informação a de origem mitológica ou religiosa. A religião está pronta para nos acalentar, oferecendo respostas sagradas e milenares para diversas questões, como, inclusive, a origem do universo. Diferentes povos com diferentes culturas, porém, oferecem, baseados em seus sistemas de crenças, respostas diferentes: enquanto as religiões cristãs apontam para a Bíblia, com uma divindade criando os céus e a Terra ao longo de uma semana, a tradição Boshongo afirma que viemos do vômito do grande deus Bumba, como Veronica Parkes, graduada em estudos medievais, nos conta aqui.
Como você talvez já tenha ouvido por aí ou aprendido na escola, a Teoria do Big Bang, ou Modelo Cosmológico Padrão, é a resposta científica mais difundida para explicar as características do universo no passado. E ela é bem diferente de todos esses mitos de criação. A diferença está, justamente, na forma como a ciência produz conhecimento. Enquanto a religião explica o mundo baseado em afirmações ditas reveladas, divinas e dogmáticas, o exercício científico segue no sentido oposto: temos que nos opor ao dogma, às verdades absolutas e inquestionáveis.
O conhecimento científico vem de uma conversa constante entre a razão e a experimentação. A partir da razão, elaboramos modelos, teorias, hipóteses e planejamos experimentos. Com a experimentação, temos a capacidade de colocar nossas teorias à prova, ou seja, comparar os resultados previstos pela teoria com os resultados obtidos.
Boas teorias são as que conseguem explicar e prever acontecimentos e fenômenos da melhor maneira possível. Por exemplo, com a teoria da gravitação, hoje conseguimos planejar todo o percurso de um foguete que leva uma sonda para estudar Marte. É possível usar a teoria e prever o dia e a hora que a sonda pousará no solo marciano. Da mesma maneira, teorias químicas nos permitem prever a quantidade de um produto gerado a partir de determinadas quantidades iniciais dos reagentes. Aliás, já discutimos aqui na Revista Questão de Ciência justamente a diferença entre previsões científicas e previsões esotéricas.
Outro ponto importante é que as teorias científicas não são fixas e imutáveis. À medida que novos fenômenos são observados e novos experimentos são propostos, eles podem acabar contradizendo as previsões das teorias vigentes. Quando isso acontece, há duas possibilidades: ou o experimento foi feito incorretamente, ou então a teoria é incapaz de explicar o resultado. Assim, ao longo do tempo, as teorias científicas evoluem! Elas vão sendo corrigidas, melhoradas e até abandonadas, para serem substituídas por outras, melhores. Essa é a principal diferença entre o conhecimento científico e o religioso.
Essa introdução é importante para que se perceba qual é a origem, em essência, de explicações como a Teoria do Big Bang. Ao longo do tempo, a explicação científica para as características do universo mudou. No início do Século 20, as ideias vigentes apontavam para um universo vazio, estático e eterno. Vazio porque se acreditava que nada mais existia além da nossa galáxia. Estático, por não haver evidências a favor de uma expansão ou contração do universo. E eterno, porque parecia que o universo sempre existira e sempre existiria, sem início ou fim.
Porém, durante o século passado, diversas evidências foram descobertas e apontaram para outra forma de compreender tanto o passado quanto o futuro do universo. O conhecimento científico, portanto, foi se moldando ao longo do tempo a essas novas bases. Explorei as evidências principais em uma série de vídeos produzidos a convite da NSC Comunicação, afiliada da Rede Globo em Santa Catarina. Foram quatro episódios de cerca de 3 minutos e meio cada, todos contendo artes que ajudam a visualizar o processo. Vou explorar, brevemente, as evidências a seguir. Caso o leitor queira queira assistir ao audiovisual, aqui estão os links dos quatro episódios da série “A História que o Céu nos Conta”.
Mas, e então: quais as evidências modernas sobre a origem do universo?
Efeito Doppler: Quando percebemos um avião decolando, ou passando por nós em alta velocidade e baixa altitude, o som que ouvimos durante a aproximação é mais agudo do que o som percebido durante o afastamento da aeronave. Essa mudança nas características do som é conhecida por “Efeito Doppler”. Vesto Slipher, em 1912, percebeu que esse mesmo efeito era perceptível em mudanças nas características da luz das estrelas que chegam aqui na Terra. Com base nesses dados, hoje sabemos que o universo inteiro está em expansão: as galáxias distantes estão se afastando umas das outras. Essa evidência é usada para fazer o “raciocínio reverso”, ou seja, entender que, no passado, todas as galáxias estavam mais próximas umas das outras: universo era menor e, portanto, mais denso. Cálculos da taxa de expansão são usados para determinar a idade do universo, ou seja, o tempo que se passou desde o momento em que tudo estava reunido em uma singularidade inicial e até os dias atuais. Esse período corresponde a cerca de 13 bilhões e 800 mil anos. Sabemos, portanto, que nosso universo teve um início.
Finitude da Velocidade da Luz: Quando ligamos a lâmpada no quarto, temos a real sensação de que tudo se ilumina instantaneamente, não é? O senso comum nos faz acreditar que a velocidade da luz é infinita, mas não é bem assim. Aqui, encontramos um histórico de como foram feitas várias tentativas e experimentos para medir a velocidade da luz. Hoje sabemos que a velocidade é de 1 bilhão e 80 milhões de km/h. Nesse sentido, talvez você já tenha ouvido falar na expressão “ano-luz”, que nada mais é do que uma unidade de distância definida em termos de quanto a luz se desloca, em linha reta, pelo tempo indicado. No caso, 1 ano. Por exemplo, o Sol está a cerca de 150 milhões de quilômetros da Terra, o que equivale a 8 minutos-luz. Isso significa que ao olharmos para o Sol neste momento (não faça isso, pode danificar sua retina), estaremos vendo seu estado há 8 minutos atrás, pois foi esse o tempo que a luz levou para sair de lá e chegar aqui. Portanto, se estudarmos aglomerados de galáxias muito distantes, a bilhões de anos-luz da Terra, estaremos então estudando as primeiras galáxias formadas no nosso universo. Isso permite compreender quando se formaram as primeiras galáxias, e também como evoluem sistemas galácticos e estelares.
Aceleradores de Partículas: Se pudéssemos pegar uma laranja e seguir cortando-a ao meio por um número suficientemente grande de vezes, terminaríamos a brincadeira descobrindo que ela é feita de átomos. Hoje, conhecemos uma série de átomos diferentes, que estão devidamente catalogados no que a gente chama de Tabela Periódica dos Elementos. Um pedaço de papel, por exemplo, tem grande quantidade de carbono e hidrogênio, enquanto os fios condutores de eletricidade na sua parede são feitos de cobre. Nessa linha de raciocínio, as estrelas no universo também são feitas de elementos da Tabela Periódica. São bolas de gás a altas temperaturas. O nosso Sol, por exemplo, tem temperatura superficial de, aproximadamente, 5 mil e 500 graus Celsius e é formado majoritariamente por hidrogênio e hélio. Como as estrelas são feitas de átomos, então a existência dos átomos no universo deve anteceder as próprias estrelas. Por isso, entender quais são as partículas que compõem a matéria e como elas interagem é essencial para investigar a tenra infância do cosmos. Esse entendimento é feito atualmente por meio de máquinas conhecidas por “aceleradores de partículas”, que estudam o resultado de colisões em alta energia entre partículas elementares. Aqui na Revista Questão de Ciência, já falamos também sobre aceleradores de partículas.
Radiação Cosmológica de Fundo: Em 1965, Penzias e Wilson anunciaram que, enquanto trabalhavam em uma antena de comunicação, detectaram um sinal eletromagnético “de fundo”, como um ruído que, segundo constataram, vinha de todos os lados, de modo uniforme. Esse sinal é estudado até hoje, e não vem da Terra. Com base nas características estudadas desse sinal, percebeu-se que ele tem um comportamento de emissão térmica, da mesma forma que um metal aquecido brilha e uma estrela quente também emite luz. A radiação cosmológica de fundo indica, portanto, que nosso universo tem um comportamento térmico, e a temperatura atual é bem baixa, próxima do zero absoluto, por volta de 2,7K (equivalente a, aproximadamente, -270 C).
Agora, podemos juntar essas peças de evidência para construir a linha de raciocínio atual para a evolução do universo: você já reparou que, ao apertar o botão do desodorante aerossol, ele atinge a nossa pele gelado? O motivo é que o gás ali dentro se expande rapidamente para fora do recipiente. As leis da termodinâmica indicam que um gás que se expande, sem uma fonte externa de energia, também se resfria, por isso sentimos o desodorante gelado.
Para o universo isso também vale. A radiação cosmológica indica que existe um comportamento térmico: como o universo está em expansão, também está resfriando com o tempo. No passado, o universo era menor, mais quente e mais denso. Apesar de a ciência ainda não saber responder exatamente o que causou o surgimento do universo, sabemos que assim que isso ocorreu, há 13,8 bilhões de anos, ele passou a expandir e resfriar. Assim, o Big Bang é entendido mais como uma grande expansão do que uma "explosão" de fato.
Na sua tenra infância, a temperatura era tão alta que não existia nada do que atualmente vemos quando olhamos para o céu: a matéria inicial no universo eram apenas partículas subatômicas. Somente 380 mil anos após o início é que as condições de temperatura chegaram a níveis capazes de permitir a formação dos primeiros átomos neutros, a partir da interação de partículas elementares.
Depois disso, a atração gravitacional começa a gerar aglomerados de matéria que foram crescendo até formar as primeiras estrelas e galáxias, quando o universo já tinha centenas de milhões de anos de idade. A formação de átomos mais pesados, como carbono e oxigênio, ocorreu dentro das estrelas. (os elementos mais pesados que o ferro tiveram outros processos de formação, que não trataremos neste texto). Esses átomos são liberados para o espaço quando as estrelas explodem, no fim das suas vidas. Esses elementos acabarão formando nuvens de poeira interestelar que darão origem a novos sistemas de estrelas e planetas. Foi assim que o Sistema Solar surgiu, incluindo a Terra, há cerca de 4 a 5 bilhões de anos.
É claro que existem questões em aberto no processo. Isso é normal, não compreendemos tudosobre o universo e sua origem. Mas a história contada aqui não é uma anedota, um mito. Apesar de estar simplificada em ideias gerais, é nesse caminho que as teorias modernas andam para estudar a origem e a evolução do universo. No futuro, certamente essas ideias podem mudar, uma vez que novas evidências e descobertas poderão levar a isso.
Quando tratamos desse assunto, é frequente que nos questionem sobre implicações religiosas. Gosto de dizer que, ao mesmo tempo, há e não há implicações. Digo que há implicações porque é inegável que a forma como a ciência se propõe a entender e explicar a natureza é bastante diferente das religiões. Não é à toa que vários cientistas e divulgadores da ciência, e eu me incluo no grupo, defendam que a ciência é a melhor maneira de entender a natureza, de estudar seus fenômenos e interagir com ela.
Por outro lado, não há implicações porque a ciência não visa competir com a religião. Embora a religião, por vezes, faça afirmações sobre a natureza, há pessoas que conseguem conviver bem com essas duas formas, usando a ciência ao buscar explicações sobre a natureza, e partindo para a religião quando vê necessidade.
Marcelo Girardi Schappo é doutor em Física e professor do Instituto Federal de Santa Catarina. Coordenador do projeto “Astro&Física” focado em divulgação científica de temas de astronomia e física moderna