Previsão científica vs. previsão esotérica

Artigo
5 jan 2019
Um dos naipes de um baralho de tarô
Um dos naipes de um baralho de tarô. Reprodução

O que você faria hoje se soubesse o que vai acontecer na sua vida dentro de uma semana? E um mês? Ou talvez ao longo de todo o próximo ano? É tentador pensar nessas respostas, não? Afinal, muita gente pagaria, e muito dinheiro, para dar uma espiadinha no futuro. Há quem afirme ter a capacidade de oferecer algumas frestas nessa janela fechada para o amanhã... E, para explorar essa questão, no dia 31 de dezembro de 2018, Ana Maria Braga exibiu em seu programa "Mais Você", na Rede Globo, uma série de previsões para 2019. Previsões baseadas em cartas, numerologia e astrologia.

De acordo com a doutrina dessas práticas, parece haver uma conexão entre o futuro de uma pessoa, ou do país, e números que compõe uma data, ou cartas sorteadas num baralho ou as posições dos astros no céu... O que muita gente não sabe é que todas essas práticas são consideras pseudocientíficas para a ciência moderna, ou seja, elas parecem científicas, por possuírem regras e práticas para executar a análise do futuro, têm cursos, especialistas, e você pode pagar por uma consulta pessoal. Mas seus argumentos e conclusões não se sustentam quando testes rigorosos são aplicados. Apesar de eu, e este texto, não termos absolutamente nada contra a Ana Maria, Rede Globo ou os espectadores do programa, penso ser uma ótima oportunidade para discutir um pouco essa questão e tentar justificar o motivo dessas práticas serem consideradas ineficazes, do ponto de vista científico, para prever o futuro.

Antes de mais nada, é preciso dizer que existem previsões científicas sobre o futuro. O que não deveria ser surpresa! Perceba que, sabendo a distância entre duas cidades e a velocidade média do carro durante o percurso, um passageiro pode fazer uma previsão sobre a hora de chegada, e informar alguém para buscá-lo. Dentro de uma margem de erro, essa previsão costuma funcionar, exceto quando há congestionamentos inesperados, acidentes ou o veículo quebra...

A ciência faz previsões desde este tipo mais simples até outras, com modelos matemáticos mais complexos, como o dia em que uma sonda enviada ao espaço chegará a Marte ou as previsões sobre mudanças climáticas ao redor do planeta para o próximo século. Todas com a sua devida margem de erro, que será tão menor quanto mais conhecermos sobre os fenômenos que regem o processo. A questão é: por que essas previsões são aceitas pela ciência enquanto a numerologia, ou as outras pseudociências citadas anteriormente, não?

As previsões aceitas são aquelas construídas a partir das leis da natureza já conhecidas, elaboradas com base na observação sistemática da natureza e no desenvolvimento árduo de um corpo de conhecimento teórico que consiga explicar os fenômenos observados. Durante esse processo, de elaboração de leis e teorias usadas nas previsões científicas, houve verificação independente por outros cientistas, a metodologia dos trabalhos foi arduamente criticada e melhorada ao longo do tempo, novos testes e experimentos foram feitos, e assim sucessivamente.

Graças a esse trabalho complexo e necessário, conhecido por ciência, temos leis que tratam das relações entre distância, velocidade e tempo de viagem. Ou relações entre termodinâmica de gases, pressão, temperatura, calor, composição e efeitos da nossa atmosfera. Ou relações entre a massa do Sol e dos planetas e as influências delas sobre o movimento da sonda enviada para Marte.

Então, seguindo esse ponto de vista, quais leis da natureza explicam a relação entre o futuro do indivíduo em seus relacionamentos e carreira profissional e um conjunto de cartas sorteadas em um baralho ilustrado? Ou a relação entre esse futuro e as posições dos astros no céu? Bom, até onde sabemos atualmente, nenhuma lei da natureza explica esse tipo de relação. Mas isso, por si só, significa que essas práticas não funcionam?

A resposta é NÃO. Não é porque a ciência não sabe como algo funciona que ela vai afirmar que esse algo, necessariamente, não funciona. Há exemplos: a física usa o termo "matéria escura" para se referir a uma grande parte da massa de um aglomerado de galáxias, mesmo ainda não sabendo o que, de fato, ela é e como estudá-la em um laboratório. Porém, quando se mede a massa de aglomerados de galáxias, o resultado obtido é muito maior do que aquela proveniente apenas dos objetos astronômicos conhecidos contidos ali, como estrelas, poeira, gás, etc. Veja, então, que a ciência ainda não sabe explicar o que é "matéria escura", mas não se nega o fato de haver uma anomalia entre a massa medida e a massa esperada para um conjunto de galáxias.

Em outras palavras: a ideia de haver matéria escura (ou algum outro mecanismo que faça seu papel) é aceita, mesmo sem ainda a ciência saber explicar como isso funciona.

O que isso tem a ver com as práticas pseudocientíficas para prever o futuro? É simples: caso alguém consiga produzir um experimento que mostre que os acontecimentos futuros guardam relação com um conjunto de cartas ou com as posições dos astros no céu, então a ciência terá que aceitar esse fato, mesmo sem ainda ser plenamente compreendido o porquê ou como isso funciona.

O problema é que esse "experimento" para mostrar essa relação precisa ser rigoroso o suficiente para ser aceito pelos cientistas: precisa ser reprodutível por diferentes cientistas trabalhando independentemente, precisa ter um número estatisticamente significativo de previsões e critérios objetivos sobre qual a margem de interpretação para uma previsão ser considerada concretizada ou não, etc.

Além disso, depois que esse experimento for feito, é necessário que outros grupos de cientistas analisem se as previsões são em número suficientemente grande, se os critérios de acerto das previsões foram escolhidos corretamente, se não há tendência por parte dos pesquisadores em interpretar os resultados de modo a favorecer seus interesses pessoais, etc. Somente depois de todo esse processo extenso e árduo é que essas práticas poderiam, caso passassem com sucesso por todas as etapas, ser consideradas cientificamente válidas, até que, talvez um dia, experimentos novos e melhores demonstrassem o contrário.

Então, apesar de termos dito que a falta de uma lei ou teoria que explique essas previsões não científicas não é um motivo para simplesmente relegá-las à categoria de pseudociências, ainda assim relegamos: e é exatamente pela ausência de uma validação pelos processos rigorosos de investigação científica. É importante notar que essa validação foi buscada – por exemplo, no caso da astrologia – inúmeras vezes. O fato é que os pesquisadores sempre retornaram ou de mãos vazias, ou com resultados inválidos.

Bom, se essas práticas não têm validade científica, por que muitas pessoas ainda acreditam nelas ou se baseiam em suas conclusões para encaminhar suas vidas e ações? Essa é uma ótima pergunta, e pode-se pensar em algumas possibilidades de respostas: a primeira é que uma grande parte da população não tem, ou teve ao longo da vida, contato significativo com a ciência para entender como ela funciona e para identificar práticas pseudocientíficas.

A segunda é que o desconhecido gera ansiedade. O “não saber” incomoda muita gente... O futuro faz parte do desconhecido, do mistério, do incerto. Então, se alguém afirma ter condições de nos oferecer vislumbres sobre o que nos espera pela frente, é fácil deixar a ciência de lado para atender à nossa necessidade de saber e, eventualmente, ter mais controle sobre os eventos futuros.

Uma terceira razão é a ilusão da certeza de que essas previsões funcionam, pelo fato de a própria pessoa já ter recebido uma previsão e ela se concretizado. O famoso argumento do “já aconteceu comigo”.

Vamos tentar resumir o problema desse argumento: para cada pessoa que julga que teve sucesso em uma previsão, é possível encontrar outra que viu uma previsão falhar. Isso sem contar o fato de que a previsão pode ser genérica o suficiente para se encaixar em uma série de eventos. Experiências pessoais de sucesso ou fracasso podem ser consideradas pela ciência como parte do material a ser estudado, mas uma experiência pessoal única, sem análise, sem comparação dentro de um grupo estatístico suficientemente grande, sem critérios e métodos bem estabelecidos e debatidos cientificamente, não tem validade científica.

Quando recebemos uma previsão, e parece razoável aceitar que ela foi concretizada com base na análise de algum evento das nossas vidas, ainda assim é preciso ter cuidado para não defendermos esse julgamento, muito pessoal, como uma evidência incontestável e inquestionável de funcionamento do mecanismo que gerou a previsão.

Marcelo Girardi Schappo é doutor em Física, professor do Instituto Federal de Santa Catarina e coordena um projeto de divulgação científica.

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